Raphael Salimena e Daniel Lopes vão além de gêneros e linguagens no épico 100 Discos para Conhecer Aguardela

Tenho interesse particular por obras que não deixam às claras seu gênero ou criam ruído sobre as suas linguagens. Um conhecido que trabalha com animação certa vez me disse que Aqui, de Richard McGuire, estava além dos quadrinhos e mais para desenho animado. Eu não poderia discordar mais. Poucas coisas são tão quadrinhos quanto Aqui, mas gosto dessa interpretação. É quadrinho? É animação? É uma criação de Richard McGuire, algo que só ele poderia fazer.

Parceria do editor e agora roteirista Daniel Lopes com o quadrinista Raphael Salimena, 100 Discos para Conhecer Aguardela (Pipoca & Nanquim) tem vários méritos, mas acho que o maior deles está exatamente em sua estranheza. Tem algo de quadrinho, conversa com música, jeito de livro ilustrado e investe pesado na linguagem das capas e encartes de discos.

A excelência de Salimena como quadrinista é conhecida. Ele se supera a cada nova tira da série Linha de Trem e concebeu a ópera espacial Vagabundos no Espaço. Seus múltiplos traços e suas cores singulares somam-se a uma sensibilidade aflorada para captar muitas das nuances e contradições do nosso mundo. Já Daniel Lopes tem em Aguardela sua estreia como autor de ficção. Juntos, eles conceberam algo particularmente original, indo além de gêneros e linguagens.

100 Discos para Conhecer Aguardela narra a história da cidade que dá título à obra e de seus músicos mais célebres em um intervalo de seis décadas, por meio de capas e encartes de discos. Salimena assina as artes e compartilha os créditos dos textos com Lopes.

Página de 100 Discos para Conhecer Aguardela, obra publicada pela editora Pipoca & Nanquim (divulgação)

Perdi o hábito de ouvir discos inteiros do início ao fim nos últimos anos. Também falta tempo para descobrir novidades musicais ou revisitar alguns gostos antigos. Mas sei que algumas capas e encartes de discos célebres podem ser tão reconhecidos quanto as próprias canções neles contidas. A mágica da parceria entre Salimena e Lopes está na concepção de toda uma cronologia para Aguardela por meio dessas imagens.

Arte de Raphael Salimena para 100 Discos para Conhecer Aguardela (divulgação)

Salimena apresenta sua versatilidade e seu virtuosismo com diferentes estilos e técnicas entre cada álbum. Não tem ostentação, nada fora do lugar, tá tudo ali voltado para o enredo. Os textos dos encartes e os títulos das músicas potencializam essa narrativa maior, sobre a passagem dos anos.

Se eu tivesse tempo e alguma habilidade como designer, me proporia a montar um infográfico para mostrar as relações entre os personagens e as diversas vivências da população de Aguardela. Sugiro que alguém faça isso. O livro saiu em novembro de 2024, só quatro meses atrás. São necessárias algumas releituras atentas e certo tempo para captar todas as nuances e detalhes espalhados em cada página. Aposto na longevidade da obra.

Aliás, apostaria também no livro como candidato potencial a indicações nas categorias Ilustração e Projeto Gráfico do Prêmio Jabuti.

Trata-se da obra mais original publicada pela Pipoca & Nanquim em alguns anos. Tem a já tradicional excelência gráfica e editorial do selo, mas destoa do conservadorismo curatorial recente da editora. Torço muito por outras investidas do tipo, com projetos mais experimentais e ousados. Palmas para Salimena e Lopes – e por mais publicações como Aguardela, por favor.

Capa de 100 Discos para Conhecer Aguardela, obra publicada pela editora Pipoca & Nanquim (divulgação)
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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