O editor Márcio Paixão Jr. vê Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor como “uma parceria sem precedentes no quadrinho nacional”. O álbum recém-anunciado pela editora MMarte reúne histórias de terror roteirizadas por Otacílio d’Assunção Barros (1954-2021), mais conhecido pelo apelido Ota, e desenhadas por Flavio Colin (1930-2002). A obra tem lançamento marcado para o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, entre os dias 3 e 7 de agosto. Ela reúne as cinco HQs originais da série Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor, publicada na revista Spektro, no início dos anos 1980, e o primeiro e último número de Hotel Nicanor, publicado pelo selo Ota Comix e originalmente previsto para durar três edições.
O quadrinho mostra a rotina e as interações das criaturas monstruosas que habitam o hotel que dá título à obra. Paixão Jr. diz sempre ter imaginado um livro reunindo a íntegra dessa material, mas viu Ota reticente em relação à iniciativa em um primeiro momento, pois ele e Colin estavam rompidos quando o desenhista morreu. O roteirista acabou sendo convencido e depois veio o aval dos herdeiros de Colin.
“Ao topar, a primeira condição que o Ota impôs foi não ter nenhum envolvimento direto com a produção do livro”, me conta o editor da coletânea sobre o início dos trabalhos no projeto. “À medida que minha pesquisa avançava, ele foi revendo o material, relembrando histórias e, quando deu por si, estava novamente apaixonado por aquele trabalho. Me lembro bem dele surpreso ao perceber, com os olhos de agora, a indiscutível qualidade daquilo que ele e Colin haviam criado décadas atrás. Foi nesse momento que eu o convidei para trabalhar diretamente no projeto, na recuperação e tratamento dos originais”.
“O envolvimento dele com a nova edição era tanto que já falávamos de um outro volume, compilando outras HQs que ele produziu ao lado de Colin. Infelizmente, tão logo enviei um HD para que começasse o tratamento das imagens, Ota veio a falecer. Fiquei completamente arrasado”.
Na entrevista a seguir, Márcio Paixão Jr. dá mais detalhes sobre a edição e os bastidores da produção de Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor. Ele também comenta as habilidades de Ota como roteirista e celebra os dotes de Colin como ilustrador de uma obra de horror – “Ele teve neste gênero sua principal matéria-prima de trabalho. Nesse sentido, o Hotel Nicanor é uma espécie de epítome do que de melhor foi feito no quadrinho de terror brasileiro”. Papo massa, saca só:
“É uma parceria sem precedentes no quadrinho nacional”
Como surgiu o projeto de Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor? Como a MMarte teve acesso a esses trabalhos e começou a produção do álbum?
O Hotel Nicanor foi uma memorável série originalmente produzida pela dupla Flavio Colin e Ota entre 1981 e 1982 nos gibis de terror da editora Vecchi – onde o Ota era editor. Me lembro bem do impacto de ler essas HQs na época e em edições que posteriormente garimpei em sebos. Ota e Colin formavam uma dupla afiadíssima e, naquele momento, estavam no auge. Não existe leitor da Spektro que não se recorde daquelas histórias que eram ao mesmo tempo gore e hilariantes. Nos anos 90 houve uma tentativa de ressureição em uma minissérie em 3 edições que, infelizmente, ficou só na primeira. Desde sempre imaginei um livro que compilasse todo esse material, mas havia um imbróglio a ser contornado: quando Colin faleceu, ele e Ota estavam sem se falar. Sempre que eu sugeria a republicação, Ota rejeitava a ideia. Como ficamos bastante próximos em seus últimos anos, terminei por convencê-lo que uma obra tão incrível não poderia ficar relegada ao esquecimento. Depois de sua autorização, foi a vez de tratar com o querido Flavio Colin Filho, que não se opôs. Muito pelo contrário, Flavinho estava em busca de parcerias que celebrassem a obra de seu pai – sem dúvida alguma um dos maiores quadrinistas que já existiram não só no Brasil, mas no mundo. É bom lembrar que isso foi antes dessa maravilhosa onda de republicações do Colin, articulada com total excelência pelo Ivan Freitas da Costa. A MMarte tem muito orgulho em trazer Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor de volta aos olhos dos leitores – principalmente se considerarmos que este material estava fadado a nunca mais vir a público em virtude das diferenças entre seus criadores.
O Ota era conhecido principalmente pelo trabalho dele como editor. O que você pode falar sobre as habilidades dele com roteirista?
Como editor da Vecchi, Ota estava impedido de contratar seus próprios serviços de roteirista. Para dar vazão à sua imaginação irrefreável – além de levantar um dinheiro extra –, ele passou a adotar um conjunto de pseudônimos, entre eles Juka Galvão, que assina o Hotel Nicanor. A série se caracteriza por misturar humor absurdo, terror sanguinolento e pitadas de erotismo – em um equilíbrio perfeito que só os grandes roteiristas são capazes. Mas o sucesso do Hotel Nicanor se deveu à sinergia única entre Ota e Colin. É um primoroso trabalho a quatro mãos, com dois mestres em seu ápice criativo. Colin não escreveria um roteiro como o de Hotel Nicanor. Por outro lado, nas mãos de qualquer outro desenhista, o texto de Ota jamais teria a mesma força. Com sua imaginação gráfica sem paralelos, Colin amplificou de modo inaudito as ideias de Ota. É realmente uma parceria sem precedentes no quadrinho nacional.
O Ota chegou a trabalhar com vocês da MMarte em Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor?
Foi um custo convencer o Ota a autorizar a republicação do Hotel Nicanor. Ao topar, a primeira condição que ele impôs foi não ter nenhum envolvimento direto com a produção do livro. À medida que minha pesquisa avançava, ele foi revendo o material, relembrando histórias e, quando deu por si, estava novamente apaixonado por aquele trabalho. Me lembro bem dele surpreso ao perceber, com os olhos de agora, a indiscutível qualidade daquilo que ele e Colin haviam criado décadas atrás. Foi nesse momento que eu o convidei para trabalhar diretamente no projeto, na recuperação e tratamento dos originais – a edição da MMarte de Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor é inteiramente escaneada dos originais de Colin. Ao contrário da imagem de maluco que projetava sobre quem não o conhecia mais a fundo, Ota era um profissional primoroso. O envolvimento dele com a nova edição era tanto que já falávamos de um outro volume, compilando outras HQs que ele produziu ao lado de Colin. Infelizmente, tão logo enviei um HD para que começasse o tratamento das imagens, Ota veio a falecer. Fiquei completamente arrasado.
“O Hotel Nicanor é uma espécie de epítome do que de melhor foi feito no quadrinho de terror brasileiro”
Muito da comoção recente em torno do Flavio Colin tem girado em torno da brasilidade dos trabalhos dele. O que você tem a dizer sobre o trabalho dele como autor de obras de terror?
Colin é um gênio superlativo. Quando falo de Colin estou falando de um artista do calibre de Jack Kirby, Milton Caniff, Chester Gould… Pablo Picasso, que seja! Os quadrinhos foram seu meio de expressão e ele fez tudo o que fez em um país que sempre tratou mal seus quadrinistas. A brasilidade foi uma constante pessoal e política em Colin. Por exemplo, ao adaptar o personagem O Anjo do rádio para os quadrinhos, ele substitui os Estados Unidos pelo Brasil como cenário de suas aventuras. Tudo que Colin produziu em sua longa carreira esteve impregnado de brasilidade. A questão é que a atual percepção acerca de sua obra está construída principalmente a partir de seus últimos trabalhos (como Curupira, Estórias Gerais e Caraíba) ou de cânones como A Guerra dos Farrapos e Vizunga (do quais muito se fala, mas pouco se vê). A grande maioria de sua produção, contudo, se deu em gibis de banca, principalmente em títulos de terror – muito difíceis de serem encontrados atualmente. Estamos falando de um autor que começou a publicar na década de 1950 e que teve neste gênero sua principal matéria-prima de trabalho (sem jamais abrir mão da dita brasilidade). Nesse sentido, o Hotel Nicanor é uma espécie de epítome do que de melhor foi feito no quadrinho de terror brasileiro.
A MMarte anunciou Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor chamando atenção para o farto conteúdo extra da obra. O que você acha que há de mais revelador e surpreendente nesse conteúdo inédito que completa a edição?
A republicação das cinco aventuras da Vecchi é, por si só, motivo de comemoração, uma vez que estão longe dos olhos do público há quarenta anos. Mas além delas e do material publicado no primeiro número da minissérie de 1994, temos ainda duas HQs completamente inéditas, ilustrações jamais vistas, diversas páginas a lápis, textos especiais e duas curiosidades incríveis: o último roteiro escrito por Ota para a série, bem como o projeto de RPG que ele começou a desenvolver a partir daquele universo. Estamos nos empenhando ao máximo para que a edição da MMarte de Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor seja a mais completa possível. Afinal de contas, é nossa homenagem a esses dois monumentos das HQs nacionais.