Está no ar a quarta edição da Sarjeta, minha coluna mensal sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Escrevi dessa vez sobre aquele que considero um dos grandes acontecimentos de 2019 nos quadrinhos mundiais: o protesto de quadrinistas norte-americanos contra o patrocínio da Amazon em festivais de HQs por meio da plataforma ComiXology.
Falei um pouco sobre a dinâmica de funcionamento da ComiXology, sobre alguns dos principais argumentos da carta assinada pelos quadrinistas e sobre a presença crescente da Amazon no Brasil – e também tratei da possível chegada da ComiXology ao país em um futuro próximo. Fechei a coluna com uma entrevista com o quadrinista Rogi Silva, autor de Pedra Pome e Não Tenho uma Arma.
Você lê a quarta Sarjeta clicando no link a seguir: Sarjeta #4: Protesto de quadrinistas contra gigante digital marcou o 2019 das HQs nos EUA. Na imagem que abre o post, arte do quadrinista Michael DeForge, um dos autores da carta assinada por artistas norte-americanas e endereçada aos festivais de quadrinhos. Reproduzo a seguir a íntegra da versão traduzida da carta:
Uma Carta Aberta aos Festivais de Quadrinhos
Esta é uma carta de artistas, escritores, editores, voluntários, trabalhadores e outros membros da comunidade de quadrinhos que exigem que os festivais deixem de aceitar dinheiro de patrocínio da ComiXology, subsidiária da Amazon. A ComiXology, plataforma de distribuição digital e de venda de quadrinhos, foi comprada pela Amazon em 2014. O patrocínio da ComiXology / Amazon à Small Press Expo (SPX), em Bethesda, resultou em controvérsias e questionamentos públicos em 2018, assim como o patrocínio a vários outros festivais de quadrinhos, incluindo o Toronto Comics Art Festival (TCAF), o Cartoon Crossroads Columbus (CXC) e o Thought Bubble. É louvável que o TCAF não liste mais a ComiXology como parceira em seu site, mas o relacionamento entre a empresa e outros festivais permanece obscuro.
A SPX, uma organização sem fins lucrativos, também atua como angariadora de fundos para o Comic Book Legal Defense Fund (CBLDF). O CEO e co-fundador da ComiXology, David Steinberger, ingressou no conselho de administração da CBLDF em junho de 2019.
Os horríveis abusos trabalhistas da Amazon estão bem documentados. A empresa sujeita seus funcionários a condições de trabalho desumanas (exemplo 1; exemplo 2; exemplo 3) e suprime regularmente seus esforços de sindicalização (exemplo 1). Além disso, a presença física da empresa devasta comunidades, bairros e cidades que ocupa, deixando para trás um legado de remoções que afeta desproporcionalmente comunidades marginalizadas (exemplo 1; exemplo 2).
A Amazon também hospeda a Palantir, a empresa de tecnologia que fornece informações sobre imigrantes e autoridades alfandegárias (ICE) sobre pessoas sem documentos, a fim de prendê-las e detê-las, e que está implicada na vigilância de organizadores e ativistas sindicais. Grupos de direitos dos imigrantes, como Mijente, Cosecha e Never Again Action, estiveram na linha de frente para documentar e protestar contra o vínculo entre a Amazon e a ICE. Em 14 de agosto de 2019, um agente da ICE dirigiu um caminhão contra uma multidão de manifestantes do lado de fora do Wyatt Detention Center em Rhode Island. Cartunistas locais estavam entre os manifestantes cujas vidas foram ameaçadas. A SPX se orgulha de sua lista de artistas internacionais, o que torna a parceria com uma corporação que se beneficia do encarceramento de migrantes ainda mais inconcebível.
A arte não é apolítica e os trabalhadores da arte não recebem neutralidade especial como espectadores inocentes. Devemos examinar as maneiras pelas quais a Amazon usa patrocínios para camuflar sua exploração brutal de trabalhadores e os efeitos desastrosos que ela tem nas cidades em que se instala. Devemos examinar nossa culpabilidade em um sistema que imponha e lucre com o tratamento violento e desumano com imigrantes; um sistema de operações de ataque aéreo e campos de concentração que separa famílias e assassinatos de crianças e adultos por negligência. Quando pegamos dinheiro da Amazon e olhamos para o outro lado, estamos permitindo que essas ações aconteçam com o nosso silêncio.
Os quadrinhos e o método ‘faça você mesmo’ das pequenas publicações promoveram uma cultura longa e histórica de independência. Quadrinistas independentes trabalharam para criar comunidades acolhedoras de todas as vozes, especialmente as que estão à margem. A Amazon procura se proteger dentro de nossas comunidades, comprando tanto o comércio quanto a cultura de nosso meio
Depois de uma rodada renovada de objeções públicas à parceria com a ComiXology em agosto, a SPX discretamente removeu qualquer menção da empresa de seu site e a deixou como patrocinadora. Aplaudimos o SPX e seus organizadores por ouvirem essas preocupações e estarem dispostos a trabalhar com a comunidade de quadrinhos para considerar fontes alternativas de financiamento. Pedimos que eles façam uma declaração pública anunciando sua decisão e se comprometam a recusar o dinheiro da Amazon daqui em diante.
Além disso, pretendemos aproveitar esse momento e exigir de todos os festivais de quadrinhos:
-O rompimento total dos laços da Amazon / ComiXology, incluindo os contínuos patrocínios da empresa à CXC e à Thought Bubble.
-Promessa pública de não aceitar futuras parcerias com a Amazon / Comixology.
-Transparência total em relação a patrocínios e alocação de dinheiro. Os artistas devem poder contribuir e tomar decisões informadas sobre o que implica a nossa participação em qualquer festival.
Isso não é uma incriminação a nenhum dos festivais mencionados nesta carta, nem aos seus organizadores. As conexões e o suporte oferecidos por esses espaços raramente foram tão vitais. Os quadrinhos não são uma indústria lucrativa, mas não podemos permitir que a Amazon explore nossa precariedade e instabilidade para comprar nosso silêncio. Quando contribuímos com nosso dinheiro, tempo e trabalho para esses festivais, merecemos saber como eles estão sendo usados e de onde vem o dinheiro do patrocínio dos festivais. Assinamos esta carta para registrar nossa dissidência, exigir mais de nossas instituições e mostrar nossa solidariedade com os esforços de organização liderados por grupos de direitos de imigrantes locais e nacionais.
Os quadrinhos sempre souberam como se virar por conta própria. Não aceitaremos o dinheiro deles em detrimento aos vizinhos, às nossas famílias, às nossas comunidades, aos nossos empregos e a nós mesmos.
Tudo isso é de uma complexidade que não consigo medir.
A Amazon, como tantas outras, torna-se quase essencial e, portanto, tão difícil de ser suprimida. Não só para os produtores – “não podemos permitir que a Amazon explore nossa precariedade e instabilidade para comprar nosso silêncio” – mas também para quem compra. Para muitos é o único preço viável…
Não consigo depositar minha frustração no comprador ou em quem aceita ser garoto propaganda… são, de certa forma, todos vítimas. Meu ódio sempre se voltará às elites e sua tão eficaz manipulação; o que não me impede de desejar e torcer para que todo movimento que lute contra esta norma tenha algum sucesso.
Esta carta, em específico, me parece muito mais conscientizadora do que condenadora, o que me faz ter mais esperança. Obrigada por divulgar (traduzir), seu trabalho é muito importante.