Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #1: “Parecia coisa de ficção científica”

O próximo álbum do quadrinista Thiago Souto será lançado na Comic Con Experience 2018. O título, a editora, a sinopse e as especificações técnicas da obra serão revelados nas próximas semanas. Primeira HQ do artista em seguida a Labirinto (2017), a obra contará com a minha participação no papel de editor.

Sem entregar muito sobre a trama, adianto que o álbum tem como foco a Avenida Paulista e dinâmica de funcionamento da via aos domingos, quando é fechada para a circulação de veículos e fica aberta exclusivamente para pedestres, ciclistas e skatistas. Dou início hoje à série de posts Thiago Souto e a Av. Paulista, na qual o autor fala sobre sua relação com os 2,7 km mais famosos de São Paulo e o desenvolvimento desse seu próximo projeto.

A série seguirá ao longo das próximas semanas, sempre às quintas-feiras. No post de hoje, o quadrinista fala sobre suas memórias mais antigas relacionadas à Avenida Paulista e as lembranças que guarda de suas idas ao local durante a infância. A seguir, aspas de Thiago Souto:

Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #1: “Parecia coisa de ficção científica”

“Super Quadra Morumbi”

“Eu não tenho uma lembrança específica, mais clara e objetiva da minha primeira ida à Avenida Paulista, nada do tipo ‘fui com os meus pais dar uma volta e aconteceu isso, isso e isso’. Tenho uma memória mais antiga, de quando era criança, de ir pra Paulista e andar por aquela região usando o metrô. Eu morava em um bairro afastado do centro, um bairro chamado Super Quadra Morumbi, que ficava… Seguindo a Avenida Giovanni Gronchi, bem pra frente, depois do estádio do Morumbi, você vira numa ruazinha entre o Campo Limpo e Taboão da Serra. Continua sendo um bairro bem residencial, porque fica nesse finalzinho da cidade. Se você dá mais um passo, tá no Taboão, dá outro passo, tá no Campo Limpo, os lugares mais próximos dali. Não leva a lugar nenhum, é o final da cidade. Até hoje tem pouco prédio e as ruas são pouco movimentadas”.

“Eu devia ter por volta de uns seis anos quando mudei pra lá. Antes eu morei no Cambuci, foi lá que eu nasci. Depois passei um ano morando no Arraial d’Ajuda, na Bahia, com os meus pais, que eram de uma vertente hippie. Voltei pra São Paulo, acho que ficamos um tempinho no Cambuci, depois outro período no Sumaré e então fomos pra esse bairro chamado Super Quadra Morumbi. Os meus avós maternos também tinham saído do Cambuci e ido morar lá nesse meio tempo em que ficamos na Bahia. Então fomos pra perto da casa deles e de alguns tios que moravam por lá também. Meus pais trabalhavam fora e deixavam eu e o meu irmão aos cuidados dos meus avós quando precisavam”.

“As estações de metrô pareciam naves espaciais”

“Então eu cresci nessa região muito afastada do centro de São Paulo, era quase como morar numa cidade de interior, inclusive pela distância. Tinham pouquíssimas linhas de ônibus e as linhas que passavam mais perto ainda eram afastadas da nossa casa. O meu pai trabalhava ali perto da Rua Pedro de Toledo e a família dele também morava naquela região, mais perto da Paulista. Aí que começam as minhas memórias mais relacionadas à Paulista. Lembro de quando criança usarmos o metrô e eu ficava muito fascinado, era quase ficção científica. Eu não tinha assistido Akira ou Balde Runner na época, mas quando vi fiz uma relação imediata com essa sensação de andar de metrô. Eu lembro da Linha Azul, ou da Verde, e as estações pareciam partes de naves espaciais. Nessa época, eu com uns oito ou nove anos, quando íamos dar uma volta na Paulista, eu achava estar num lugar meio extraterrestre. Eu ficava muito fascinado. Principalmente depois que descobri que aquele lugar era na mesma cidade que eu morava, embora fosse muito diferente da região em que eu vivia. Passei a sentir até um certo orgulho. ‘Olha, eu também moro aqui!’ (risos)”

“A memória afetiva é nesse sentido. Apesar de não viver naquela região central, onde tudo era ‘mais desenvolvido’ – grandes aspas, por favor -, eu sentia como se aquilo fizesse parte da minha vida também, embora não fizesse. Eu sentia um certo orgulho disso”.

“Imaginário de realidades alternativas”

“Ir à Paulista naquela época soava como uma aventura, sabe? Pra uma criança de oito ou nove anos, vivendo numa região afastada, era quase uma aventura. Era sair para conhecer um lugar meio alienígena, com esses prédios bem altos, com um monte de gente andando. Não era apenas a infraestrutura, a coisa de concreto e vidro impressionante, mas também a quantidade de gente circulando. Eu estava acostumado com um lugar em que eu via sempre as mesmas pessoas, sempre pouca gente andando pela rua e as coisas tinham horários muito pré-definidos para acontecer, com uma rotina bem pacata. Ir pra Paulista alimentava um pouco a minha imaginação, eu via um monte de gente diferente. Não importava muito o que eu ia fazer, era mais pela experiência sensorial de poder ver aquelas coisas. Toda criança tem esse imaginário de realidades alternativas: você vê um programa de TV e se imagina dentro de uma aventura espacial, por exemplo. Pra mim, pegar o metrô, ir pra Paulista e passear por ela me dava um ambiente real onde eu podia projetar toda essa minha fantasia. Era meio como uma materialização desse universo interno que eu ia criando”.

“O meu pai gosta muito de museus e exposições, então o vão livre do MASP tinha um significado especial pra mim. Lembro de ir ao MASP e tenho memórias muito fortes do vão naquela época, tanto com a feira que rola até hoje por ali quanto sem ela. Aquela construção sempre teve uma proporção muito gigantesca pra mim. Outro lugar era o prédio da Caixa, que tinha umas cadeiras e bancos de concreto, com formato circular. Por algum motivo era um lugar especial, eu também via ali algo de outro mundo. Acho que fecharam a entrada desse prédio e não sei se ainda dá pra circular mais por ali. Indo além da Paulista, todas essas construções de concreto muito grandes, como as estruturas do Memorial da América Latina, acabam sendo meio áridas e com muito vazio ao redor. Senti algo parecido quando fui a Brasília. Não são lugares muito convidativos, não são muitos humanos e nem orgânicos, parecem inclusive afastar um pouco. Não tem árvore, não tem cobertura, você fica muito exposto e é visto por todos os cantos. Tanto no vão do MASP quanto no prédio da Caixa eu tinha essa sensação”.

“Todo mundo sabia chegar na Paulista”

“Esses passeios eram muito com o meu pai, minha mãe e o meu irmão. Depois que eu fiquei mais velho passei a ir mais sozinho. Ia de ônibus e de metrô. Já com uns 14 anos eu ia pra lá com amigos de colégio, pegava ônibus pro centro, pra região da Galeria do Rock. Estudávamos de manhã, saíamos da escola de mochila e tudo, íamos pra [Avenida Professor] Francisco Moratto, perto do nosso colégio, e ali tinha um monte de ônibus, vários atravessavam a [Avenida] Rebouças, em sentido ao centro da cidade. Quando aprendi a fazer esse circuito de ônibus, em direção à Galeria do Rock, comecei a ir com esses amigos ou sozinho mesmo, só pra passear. Mas não era com tanta frequência assim”.

“Depois, já com uns 20 anos, aí sim passei a ir muito na Paulista. Passei a buscar coisas mais distantes daquela realidade do bairro em que eu cresci. Até os meus 16 ou 17 anos, até eu sair do colegial, apesar de ter contatos com algumas pessoas de fora do bairro, o meu círculo de amizade era muito restrito àquela região em que cresci. Depois que comecei a fazer faculdade e a sair mais, passei a ir mais pra Paulista. Acabava sendo um ponto de encontro fácil pra todo mundo. Todo mundo sabia chegar na Paulista. Depois que saí da casa da minha mãe, fui morar na Vila Madalena, próximo da estação de metrô e passei a ir direto pra lá, muitas vezes sem qualquer tipo de programação. Ia pra Paulista só pra andar. Às vezes descia na estação Clínicas e ia andando até a Paulista, andava por ela toda e voltava só pra poder andar mais. Simples assim, gostava de andar por lá e observar. Foi quando a Paulista se tornou algo mais comum pra mim, assim como a própria cidade de São Paulo. De certa forma, isso também me aproximou dos problemas da cidade, que se materializam bastante naquela região, né? Pelo menos para mim, ela é meio que uma síntese do que é a cidade. Se você quiser saber um resumão de São Paulo, é só ir da Consolação até a Bernardino de Campos e você vai ter uma ideia do que é isso aqui”.

CONTINUA…

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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