O álbum Ânsia Eterna é o primeiro trabalho publicado da quadrinista Verônica Berta. A obra lançada pela editora SESI – SP adapta para o formato de história em quadrinhos três contos da escritora e cronista carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Segundo Berta, sua vontade de fazer quadrinhos surgiu enquanto fazia um curso de desenhos na França, durante seu período de graduação na faculdade. Empolgada com a possibilidade de produzir uma HQ e sem experiência com roteiros, ela passou a trabalhar com a ideia de fazer um projeto em parceria com alguma escritora. A ideia de uma adaptação surgiu após a descoberta de que os textos de Júlia Lopes de Almeida estavam em domínio público.
Com uma belíssima paleta de cores, Ânsia Eterna apresenta uma artista nova, com um traço original e perspicaz ao mostrar como questões do século 19 ainda se fazem extremamente presentes nos dias de hoje. No papo a seguir, a quadrinista fala sobre o trabalho de adaptação dos textos que deram origem ao seu álbum, os métodos utilizados por ela durante a produção do quadrinho e os dilemas decorrentes da fidelidade a uma obra concebida há mais de um século.
Você se lembra quando teve contato pela primeira vez com o trabalho da Júlia Lopes de Almeida? E quando surgiu a ideia de adaptar os textos dela?
Eu encontrei a Júlia fuçando no site do domínio público. Tinha ido lá fazer uma coisa que não tinha nada a ver com um projeto de quadrinhos mas acabou que ele foi acontecendo. Primeiro eu vi que não tinha quase nenhuma mulher na lista de obras literárias em português, isso me despertou a vontade de procurá-las. Tinham muitas na categoria errada (em vez de literatura era trabalho acadêmico) e muitos dos textos literários eram poemas. A Júlia estava entre as pouquíssimas romancistas. Aí quando comecei a ler a obra dela, fui ficando inspirada para fazer quadrinhos. É que lá no fundo eu já tinha um sonho de fazer um projeto em parceria com alguma escritora porque eu não tinha praticamente nenhuma experiência com escrita de roteiro. Então a ideia da adaptação seria algo mais próximo de uma parceria. Acabou que eu fui desenvolvendo o projeto até entender que ele poderia ser muito mais do que um jeito de camuflar minha insegurança, relembrando as pessoas da existência de uma das autoras que marcou a história da nossa literatura e buscando despertar a reflexão sobre as diferentes posições da mulher na sociedade, assim como a própria Júlia fazia.
Você poderia falar um pouco sobre os seus métodos e cada etapa desse processo de adaptação? Você trabalhou com um roteiro fechado? Como foi o processo transformar textos em imagens e determinar o que entraria ainda como texto no quadrinho?
Eu fui aprendendo enquanto fazia, porque minha experiência com quadrinhos até então tinha sido os trabalhos para entregar no curso de desenho. Na maior parte do trabalho eu quebrei a cabeça, porque o texto já está muito bem sozinho, ele é autossuficiente, né. E eu precisava ter um motivo para tirar essas narrativas de onde estavam e colocá-las num quadrinho. Por isso eu acabei viajando mais na narrativa visual, nas possibilidades plásticas, e até onde dava para ir com os textos sem modificar a essência do original. Tive ajuda de várias pessoas também. Algumas partes precisavam ser escritas e outras eu não conseguia pensar sem fazer esboços. Aí você saca o quanto texto e imagens, nos quadrinhos, são de fato interdependentes. A maioria dos trechos descritivos ou narrativos eu me aventurei em transpor diretamente para imagem. Mas às vezes usei narração como recurso, por exemplo, para encurtar uma parte que ficaria longa demais em quadrinhos sendo que no conto é apenas uma pequena passagem.
Eu queria saber um pouco mais sobre as suas cores. Quais são as suas técnicas? Como você definiu a paleta de cada conto?
Por eu gostar muito de pintura, acabo fazendo a pintura digital meio que do mesmo jeito que eu faria com tinta acrílica. Aí fica mais intuitivo.
No Ânsia Eterna eu usei três paletas diferentes: uma para o momento presente, uma para a história que é contada dentro da história, e outra para a imaginação do personagem principal e o que ele idealiza. A intenção é que tivessem três tipos de espacialidade diferentes e a cor foi fundamental para essa busca. Já Os Porcos e A Caolha são contos que potencialmente despertam emoções mais pesadas no leitor. Então usei as cores buscando representar os sentimentos dos protagonistas, já que não tinham as palavras da Júlia para descrevê-los.
Também me chamou muita atenção os designs das páginas do livro. Como você determinou a disposição dos quadros ao longo de cada página? Como foi pensar a estética de contos autônomos que compõem um mesmo livro?
Essa foi a parte mais sofrida. Faz uns anos que eu venho estudando composição e sinto que estou apenas começando a entender algumas coisas; para mim é um assunto muito cabuloso e fascinante ao mesmo tempo. É estimulante pensar em como você vai fazer para atingir determinado efeito e passar determinada mensagem a partir da composição, mas isso é um desafio. E para mim é fundamental pensar nas interações entre os elementos visuais. As relações entre pontos e linhas, os espaços negativos, os contrastes, esse tipo de coisa. Também penso nuns conceitos do Scott McCloud, às vezes.
Acho que entre Os Porcos, que foi a primeira que fiz, e A Caolha, que foi a última, já tem muita diferença na estética. Levei isso como mais um passo no processo de aprendizado.
-X-
“Além de abordar questões que diziam respeito à mulher branca, a Júlia considerava relevante representar a situação de uma camponesa cabocla que sofria as consequências do patriarcado, ou desromantizar a maternidade com uma trabalhadora negra”
-X-
No posfácio do livro você trata um pouco da história da Júlia Lopes de Almeida, fala como a obras dela tinham como proposta tratar do “universo feminino e tudo o que ela considerava politicamente relevante dentro desse universo”. Ainda assim, como você mesmo lembra no texto, se trata “de uma pessoa branca e feminista nascida em 1862”. Quais foram as principais reflexões e os maiores desafios surgidos durante esse processo de adaptação de Ânsia Eterna levando em conta todo esse contexto da autora?
O que mais me deixou surpresa, e consequentemente envolvida, foi o fato de eu ter me identificado com as histórias. Como que eu, uma pessoa da “geração y”, poderia me identificar com personagens e situações que foram narradas dentro de um contexto de mais de um século atrás? E depois eu acabei concluindo que mais de um século é pouco tempo. Porque hoje ainda vemos uma diferença muito grande entre uma história que foi contada sob um ponto de vista feminino e outra que foi contada sob o ponto de vista masculino. E ainda se fala sobre questões internas, ou seja, questões sobre ser mulher, muito parecidas. Naquela época falava-se muito sobre emancipação feminina e isso desencadeou as primeiras críticas à desigualdade salarial e outras injustiças que acontecem dentro do mercado de trabalho. Mas essa evolução do feminismo não significa que as pautas mais antigas, relativas à emancipação, foram resolvidas; essa questão permanece atual.
Além de abordar questões que diziam respeito à mulher branca, como a de ser idealizada pelos homens como a mãe perfeita dos seus filhos (Ânsia Eterna), a Júlia considerava relevante representar a situação de uma camponesa cabocla que sofria as consequências do patriarcado (Os Porcos), ou desromantizar a maternidade com uma trabalhadora negra (A Caolha). Mas sabemos que o feminismo negro só foi surgir um século depois do nascimento da Júlia, lá nos Estados Unidos, então a perspectiva dela não tinha como ser muito interseccional no sentido como entendemos hoje.
No posfácio acabei mencionando a posição social da Júlia para criar um link com o assunto da construção de personagens, mais especificamente da Caolha.
No posfácio você também fala sobre a sua decisão de “não limpar a barra” da autora em relação a algumas ideias racistas expressas por ela. Você poderia falar um pouco sobre os diálogos que teve e as reflexões que a levaram a seguir essa decisão?
Se as características físicas da caolha são descritas sob um ponto de vista racista e eu faço a personagem do mesmo jeito, eu simplesmente reproduzo essa ideia. Era essa a pulga que estava atrás da minha orelha, então abri uma discussão sobre isso no grupo de facebook do Minas Nerds. Nada melhor que minas nerds para falar sobre isso. Uma moça me disse que seria muito mais enriquecedor deixar a personagem como é descrita no conto original e adicionar um posfácio ou uma nota de rodapé que apontasse esse problema. Eu concordei e resolvi adotar essa abordagem.
Ânsia Eterna é o seu primeiro quadrinho, certo? É o seu trabalho de estreia e ele já está saindo por uma das editoras que mais tem colocado novos títulos a cada mês. Tendo em mente novos autores que também gostaria de publicar por grandes editoras, você pode falar um pouco do seu caminho das pedras até chegar ao Sesi?
Uma coisa positiva que eu fiz foi escrever o projeto. Quando eu estava bem no comecinho da produção, me inscrevi no Proac. O projeto não passou, mas o fato de ter escrito e pensado muito sobre ele organizou bem as ideias na minha cabeça. Sem isso eu não saberia muito bem justificar minhas escolhas nem compreender a relevância da HQ. E depois eu queria investir em divulgação, então publiquei um dos capítulos para leitura online, gratuitamente. A partir daí eu tinha mais segurança para fazer uma apresentação do projeto. Mandei e-mail para três editoras e a SESI me respondeu 5 meses depois para fecharmos o contrato. Foi um dia de champanhe rs.
Em relação ao período em que você passou estudando e pesquisando quadrinhos na França, eu fico curioso sobre as expectativas que tinha de publicar seu primeiro trabalho e a repercussão dessa obra. Desde o seu retorno ao Brasil, qual leitura você tem feito da cena local de quadrinhos? Você vê muito diálogo entre o que viu e viveu na França e o que tem vivido por aqui hoje (em festivais, feiras e debates sobre quadrinhos)?
Para ser sincera o que aconteceu foi que eu saí do armário como quadrinista, porque antes do curso eu tinha certeza absoluta de que nunca faria quadrinhos. As aulas lá na França fizeram com que eu me apaixonasse por fazer quadrinhos, mas a ideia de fazer o Ânsia Eterna surgiu depois que já tinha voltado para o Brasil. E também foi quando voltei que comecei a conhecer a nossa cena, e eu leio devagar, ou seja, ainda tem muitas obras essenciais que eu não li. Mas a minha impressão geral é que nossa cena ainda é jovem e fresca, ainda mais podendo comparar com a França, que tem uma tradição pesada (no bom sentido) de quadrinhos. Lá o mercado é mais consolidado e os quadrinhos fazem parte da vida dos franceses, no geral. Sempre conto a história do dia em que eu peguei o jornalzinho do metrô e tinha uma notícia anunciando o lançamento de um gibi. Isso para a gente é meio fora da realidade. Estudando em uma escola de lá e lendo os quadrinhos de lá eu percebi por exemplo um academicismo no desenho que não temos por aqui, e justamente por causa disso, aqui existe uma liberdade criativa muito maior.
Muito sucesso esse quadrinho! e ótimos apontamentos da entrevistada
Comprei o álbum e amei o tratamento de imagens, paletas, movimentos…Show de HQ.
Já estou esperando o próximo!!!
O quadrinho é tão instigante e inteligente quanto à entrevista da autora sobre a construção da obra. Parabéns! Tenho certeza de que essa autora já começou com os dois pés e chegará longe…