Comentei por aqui semana passada da entrevista que fiz com o Tom Rachman, autor de Os Imperfeccionistas. Nossa conversa saiu no Segundo Caderno do Globo. Como não dá pra imprimir na íntegra a nossa conversa, segue por aqui a entrevista completa. As capas que ilustram o post são das edições inglesas e norte-americana do novo livro do autor, The Rise & Fall of The Great Powers, e a foto dele é de autoria de Alessandra Rizzo.
Você acha que hoje ainda existem muitas pessoas que optam por serem tão desconectadas e distantes do mundo virtual como os protagonistas do livro?
Elas existem apenas em livros (risos) No começo do livro ela até digita alguns nomes no Google, mas ela vive uma forma estranha de vida. Ela não só não faz uso de tecnologias do presente, como também não possui registros do seu passado, como documentos.
Acho que há algumas pessoas optando por limitar a quantidade de tempo que passam online. Buscando encontrar formas de viver com o mínimo e terem períodos de completo afastamento do mundo virtual. Mas algo tão radical é extremamente difícil para pessoas que queiram ter uma vida normal. Existe um certo paradoxo. A vida digital afeta nossa existência profundamente de várias formas, algumas delas são boas e outras nem tanto.
Na verdade é muito difícil se livrar dessas coisas mesmo que você queira. Existem várias indústrias bilionárias no mundo da tecnologias que vivem exclusivamente para descobrir as formas perfeitas de satisfazer os interesses das pessoas. Elas trabalham com todas as formas mais fundamentais e primárias de respostas humanas, para que estejamos sempre checando alguma coisa. É obviamente uma reação animal: você fica minimamente excitado a cada nova mensagem e está condicionado a reagir dessa maneira. Progressivamente fica cada vez mais difícil se livrar dessa realidade, mas acho que todo mundo que viveu nos últimos, talvez, sete anos e experimentou essas duas formas de existência, admite que há ótimas mudanças e outras nem tão boas assim. Todo mundo está um pouco mais agitado e distraído e é cada vez mais difícil concentrar. Sendo possível, eu acredito que talvez seja uma boa ideia tentar controlar a extensão que deixamos nossas vidas dissolverem na internet, pois isso definitivamente nos transforma internamente.
Um dos temas mais constantes do livro é a relação dos personagens com seus passados. Hoje os nossos passos estão registrados no Facebook, Google e em câmeras de segurança. É possível fugir dessa realidade? Ainda podemos escolher uma vida fora dessa vigilância constante?
Até determinado ponto, sim. Deve ser uma escolha feita de forma bastante consciente. Se uma pessoa não age para controlar como as mídias digitais estão presentes em sua vida, ela pode ser totalmente dominada. Pois elas são extremamente atraentes, sexy e sedutoras. Afetam a gente da mesma forma como um whisky afeta um alcoólatra. Se você sabe que possui essa fraqueza, e todo nós possuímos, então não tenha muito whisky em casa. Você precisa tomar essa decisão cedo e pensar: “eu não vou ter essa tentação em casa, preciso remodelar minha vida para ter outras coisas nela”. Não estou sendo radical e recomendando cortar todas as nossas ligações com tecnologias. Há várias coisas ótimas que compõem esse universo, mas acho que é melhor ter algumas taças de vinho do que mandar uma garrafa inteira pra dentro de uma vez só.
Todos nós aprendemos a História a partir da perspectiva de alguém. A protagonista do livro tem diferente perspectivas a medida que ela conhece novas pessoas. A internet vai ajudar futuras gerações a ter uma perspectiva mais ampla e complexa da história?
É uma boa questão. Pense na Wikipedia, por exemplo. As pessoas usam a Wikipedia como fonte básica de conteúdo. É apenas uma fonte, então você pode pensar: “Bem, no futuro, todos vão concordar muito mais pois há uma referência básica em comum”. Mas, pelo menos agora, apesar de toda onipresença da mídia digital, eu tenho a impressão que as pessoas não estão com opiniões mais unificadas e compartilhando de uma mesma percepção da história, estamos mais divididos. Uma das características da internet no momento é que ela acaba concentrando determinados pontos de vista semelhantes em pequenos grupos. Então, se você acredita que o Homem nunca pisou na Lua e foi tudo uma conspiração, você vai encontrar várias informações online que vão comprovar que você está certo. Existe uma tendência de confirmação comprovada pela psicologia, as pessoas tendem a preferir perspectivas que comprovem informações nas quais elas já acreditam. E a internet é a fonte perfeita para isso. Acho que há um risco de, no futuro, as pessoas simplesmente encontrarem, nessa fonte infinita de informações, apenas aquelas que confirmem aquilo em que elas já acreditam e fazem com que elas se sintam melhores. No entanto, elas também terão acesso a informações que vão permitir um outro ponto de vista. É difícil prever o que vai acontecer. Provavelmente teremos ótimas melhorias e outras grandes decepções. No final das contas, talvez o problema seja que os usuários dessas tecnologias sejam seres humanos, sempre falhos e defeituosos apesar de qualquer evolução e melhoria feitas em suas tecnologias.
A quantidade de informação que temos hoje não vai ajudar a esclarecer eventos como o que está acontecendo, por exemplo, na Palestina ou na Ucrânia?
Acho muito difícil disso acontecer, pois mesmo as informações que temos agora dão várias perspectivas e pontos de vistas. Se você olhar para o conflito entre Israel e Palestina, ninguém concorda em relação ao que está acontecendo hoje. Então imagine daqui a 10 anos, com todo mundo já tendo filtrado as informações de acordo com suas crenças ao invés de tentar compreender. Imagine um cenário muito mais simples: você sentado em uma sala junto com outras dez pessoas e começa uma discussão entre outras duas. Todos teriam interpretações muito diferentes dos fatos. Então é difícil esperar a existência de uma compreensão objetiva de quem estava certo ou errado.
A História sempre foi composta por dois lado. De um lado, os fatos objetivos: o Holocausto aconteceu e o homem foi à Lua. Esses são simples fatos e você encontra evidências para eles. Separadamente, há um outro lado, o lado moral da História e as pessoas geralmente estão em busca dele. Estamos sempre em busca das lições, de quem estava errado ou certo, dos culpados, daqueles que precisam pagar e dos que devem ser beneficiados no presente por terem sofrido no passado. Esse é o verdadeiro confronto apresentado na História. Infelizmente, os motivos das pessoas fazem com que elas distorçam os poucos fatos objetivos que temos. Os seres humanos são tão dispostos a manipular dessa forma que acho difícil pensar que no futuro será melhor. Talvez você possa esperar uma melhoria, mas as pessoas tendem a simplesmente não acreditar. Elas não acreditam em fatos que você coloca na frente delas, talvez hoje ainda menos. Nós temos registros filmados do avião acertando a segunda torre do World Trade Center e eu garanto pra você que muita gente ainda acha aquilo falso. Há quem acredite que aqueles prédios não caíram e foi tudo uma invenção. Se não acreditam hoje, imagina como vai ser daqui 50 anos. As pessoas não acreditam no que outros comprovam ser simples fatos.
O livro também fala muito da nossa relação com o presente. Assim como alguns dos personagens, tendemos a achar o passado muito melhor que o presente. A tecnologia pode ser uma arma contra a nostalgia?
Não acredito nisso. No momento parece existir uma febre pela nostalgia. Mesmo antes da chegada desse período tecnológico que vivemos, pelo menos desde quando nasci, as pessoas sempre tiveram eras passadas para referências em relação a música, moda,…Lembro quando era criança, nos anos 80, havia essa referência aos estilos dos anos 50. Depois voltaram os anos 70 e hoje vivemos o culto à década de 80. Isso tudo numa época quando não havia essa obsessão com o retrô como hoje. Hoje você vê pessoas com estojos de Ipads semelhantes a fitas cassetes. Acredito que a nostalgia só tende a crescer, pois as mudanças estão tão aceleradas que coisas novas logo parecerão antigas. Por isso eu acho que haverá uma forma ainda mais intensa, afetuosa e apaixonada de nostalgia. Quanto mais rápido mudarmos, mais nostalgia. Eu apostaria nisso.
E qual a sua opinião sobre o mundo hoje? Estamos melhorando em relação ao nosso passado?
Bem, até outro dia tinha a Copa do Mundo, então era muito melhor (risos) Acho impossíve avaliar o mundo dessa forma, pois em todos os momentos há vastas mudanças que fazem o mundo melhor e vastas mudanças que fazem o mundo pior. Tudo depende do lugar em que você está prestando atenção. Você pode focar no fato de que hoje há milhões de pessoas em condições terríveis e famintas. Você também pode lembrar que no passado havia muito menos pessoas nessa situação, no entanto havia muito menos gente no planeta. Dá pra dizer que há 200 ou 500 anos a violência per capita era muito maior e hoje estamos melhores. Sempre depende para onde você está olhando e onde você vive. Se você mora no Ocidente, as coisas estão muito melhores hoje do que em alguma região da África Central, por exemplo. Então não acho que há uma experiência unitária em nenhum momento que você possa dizer se hoje está melhor ou pior que ontem. Mas, se você reduzir a questão para as pessoas prósperas do Ocidente, sim, a vida está mais fácil, há mais conveniências do que nunca. No entanto, para cada vantagem há nova complicações, novos sentimentos de decepção, frustração e cansaço. Mesmo se você olhar apenas para as novas tecnologias. Há novos aplicativos e máquinas criadas apenas para ganharmos tempo, mas ninguém ganha tempo com nada disso. Está todo mundo ocupado, talvez mais do que nunca. Isso significa que vamos nos adequar a qualquer cenário que surja. Seja qual for a razão, sempre teremos a mesma quantidade de tristeza ou felicidade. Claro, desde que não tenha outra grande guerra ou crise. De resto, sempre existirão realidades mais ou menos seguras e as pessoas estarão desesperadas ou sendo prestativas como sempre estiveram e foram.
Mas hoje, nós temos mais notícias tristes nos jornais?
Acho que parte da razão de termos mais notícias ruins é porque elas são mais práticas e úteis. Caso tenha um incêndio no café ao lado, vai ser muito mais importante pra gente saber do que descobrir que duas pessoas acabaram de se apaixonar no mesmo lugar. Más notícias costumam ser mais relevantes. Mesmos nas áreas em que isso não costuma ser verdade, talvez em cadernos de negócios, por exemplo, também há muita notícia ruim. Apenas não nos importamos muito com elas. Há uma preponderância por notícias que sejam úteis para as pessoas e afetem a forma como elas vão viver suas vidas.
Há um diálogo no livro no qual dois dos personagens principais falam como é melhor viver como um observador e não se envolver com nada. Hoje há uma demanda por posicionamentos e opiniões? As pessoas estão se sentindo compelidas a compartilharem suas opiniões?
Provavelmente sim, mas acho que talvez seja algo inato ao ser humano. Em outros tempos talvez apenas não existissem canais para as pessoas se expressarem. Quando tratamos de egocentrismo, acho que é uma verdade fundamental que a maioria dos seres humanos está interessado apenas em si mesmo. Nem todo mundo é assim, mas acredito que a maior força da civilização humana é a crença irracional que você é a pessoa mais importante viva. E acredito que estamos programados a agir dessa forma, pois caso você não se preocupe com você, você vai acabar morrendo. Se vivêssemos há 500 anos e fossemos camponeses trabalhando em uma fazenda, sem Facebook, sem poder escrever, saberíamos que nascemos para aquela vida e iríamos aceitar essa realidade. No entanto, hoje, pelo menos no Ocidente, a crença na meritocracia nos permite acreditar que qualquer pessoa pode ser um presidente ou ser famoso. Então desenvolvemos esse senso de que quem não chega lá, quem não vence na vida, é um perdedor, um derrotado. Não é porque você nasceu um camponês, é porque você não deu conta enquanto todos podem conseguir. Isso é um mito, não é todo mundo que consegue ter sucesso, há várias circunstâncias que atrapalham e são empecilhos. Ainda assim, essa ideia prevalece. A solução, quando percebemos que não somos famosos, não temos um programa de televisão, é engrandecer sua existência escrevendo sobre ela no Facebook ou no Twitter. Ao mesmo tempo, eu acredito que lá no coração dessas pessoas, está claro que elas só têm 400 seguidores, enquanto outra pessoa tem 500 e uma tem cinco mil. Algo incrível desse período do mito meritocrático que vivemos, é que pessoas com grandes talentos podem se dar bem e fazer coisas maravilhosas, algo que não seria permitido em outros tempos. É um avanço fantástico. Só não é verdade que todos vão conseguir. Todos nós temos o mesmo desejo de sermos importantes, mas para uma imensa maioria que nunca vai conseguir, apesar de ter sido criada para acreditar nisso, será uma experiência bastante dolorosa. Então, talvez, essas vias alternativas sejam consolações, apesar de parciais e dolorosas.
O seu primeiro livro foi sobre a realidade de um jornal impresso antigo e o segundo sobre livros. Você está criando um padrão? Registrando os instantes finais da mídia impressa em colapso?
Sim, eu pensei nisso (risos). O primeiro mostra a indústria de jornais em colapso e esse segundo começa numa livraria. Mas acho que há algumas diferenças. O anterior era ambientado no mundo dos jornais, enquanto esse não trata do mundo editorial, apenas começa nesse contexto.
A lógica cultural está mudando e dificultando bastante a existência da mídia impressa. Jornais ainda existem, jornalismo definitivamente continua a existir e livros e livrarias também. Mas o lugar deles na nossa cultura está diminuindo e é uma preocupação para as pessoas dessas áreas até onde eles vão continuar a diminuir. Não acho que jornais e livros ocupem a mesma posição na nossa cultura. Eles possuem objetivos diferentes. Jornais são objetos periódicos descartáveis com informações. Quando eu acabo de ler uma revista, eu jogo fora. Quando termino um livo eu guardo para sempre. Ele vai continuar por perto, na minha coleção de objetos que representa minha história intelectual. Vai estar na minha estante como um artefato do meu passado como nenhum outro objeto. Se jornais são descartáveis, livros aspiram à longevidade, eles aspiram ser algo que dure para além do momento em que foram escritos. Costumo variar entre o extremo otimismo e pessimismo, mas eu espero que os livros não só tenham um papel diferente, como também já ocupem um papel especial na nossa sociedade. Os livros tendem a sobreviver nesse papel pois Informações rápidas e triviais são consumidas de forma muito mais rápida pela internet – e os jornais estão lidando desastrosamente com esse fato. Em um mundo tão acelerado e exaustivo, com atualizações constantes e coisas apitando e piscando o tempo todo, você consegue desligar? Talvez os livros continuem importantes pois eles serão a única coisa que nos farão desconectar.
A indústria editorial está em busca de várias formas de sobreviver digitalmente e muitas delas entram em choque com a essência do livro. Por exemplo, ebooks com links, eles apenas acabam com o efeito que apenas um livro possui. Não existe nenhum outro exercício cultural que exige você doar 25 ou mais horas do seu tempo para pura concentração e envolvimento, que demande tanto da sua mente por um período tão longo e com um efeito tão poderoso. Música, filmes e outros podem afetar tanto ou até mais, mas são experiências diferentes. Eu acho que a profundidade de atenção e concentração exigidas por um livro são muito significantes e uma alternativa ao nosso modo de vida. Eu não sei se essa diferença torna a existência dos livros ainda mais ameaçada ou uma esperança.
Você também está falando do livro como objeto físico, certo? Pois e-readers geralmente estão conectados à internet.
Sim. Escrever pra mim é o reflexo de uma leitura, requer grande concentração e atenção prolongada. Quando escrevo uso um programa chamado Freedom que corta a minha internet. Muitos escritores usam. Quando vocês está entediado, a primeira coisa que faz é olhar emails ou notícias. Mas os momentos mais criativos que existem é quando você não está inteiramente focado em alguma coisa. Quando você está no ponto de ônibus, sem o celular, apenas esperando. Quando você está lavando a louça. Você processa as informações, fica quase vazio e as ideias chegam. Esse estado é o primeiro passo para escrever algo interessante. Você ainda não tem ainda uma história, mas está no caminho, entre o tédio e a criatividade. Também é um processo estressante, pois você se pressiona, questiona se seu trabalho é bom, se vai dar certo, se vale a pena. Sua cabeça está apenas vazia e você tenta criar algo a partir desse vazio. É extremamente tentador apenas abrir o email, mas você não pode, precisa continuar trabalhando…
É engraçado, acho incrível a sensação quando ligo o Freedom. O programa me pergunta quanto tempo quero. Geralmente coloco 180 minutos e ele me pergunta: “Você tem certeza?”. Sim. Então eu sinto uma mudança quase fisiológica em mim, tudo fica mais sereno e me sinto aliviado. Mesmo quando estou na dúvida e digo sim, me sinto melhor (risos). Aí produzo bastante, os 180 minutos passam, o programa me avisa, eu nem percebo e continuo trabalhando. Consigo desligar e é maravilhoso. Isso oferece diferentes níveis de produção e criatividade, coisas que as vezes não estamos nos permitindo.
Estar offline resulta em mais criatividade?
Com certeza. Geralmente, quando estou trabalhando com ficção, o instante que consigo ideias realmente interessantes e úteis são quando estou indo dormir. Não quando estou dormindo ou sonhando, mas quando estou deitado e me sinto distante de tudo. Estou distraído e de repente me sinto vazio e o estado de consciência que inibe a criatividade começa a enfraquecer e algo brota na sua mente. “Opa, isso é interessante…”. Aí você esquece (risos). Mas o ponto é, ocorre quando estou andando, na academia ou lavando a louça. Tenho pedaços de papeis pela casa inteira para que possa escrever sempre que isso acontecer. Infelizmente, a janela para instantes potencialmente criativos é cada vez menor, o impulso imediato costuma ser de ocupar com algo mais divertido.