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Entrevistas / HQ

Papo com Marcelo D’Salete, autor de Mukanda Tiodora: “Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder”

Como escrevi na minha reportagem sobre Mukanda Tiodora, é provável que o novo quadrinho de Marcelo D’Salete seja a grande HQ brasileira de 2022. O álbum de 224 páginas recém-lançado pela editora Veneta é uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na cidade de São Paulo do século 19.

A obra é baseada na história de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria. D’Salete criou ficção a partir de uma das cartas, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Você lê o meu texto sobre a HQ clicando aqui.

Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com D’Salete. Ele fala sobre o desenvolvimento de seu novo trabalho, mas também expõe suas expectativas para o governo Lula a partir de 2023, reflete sobre os rumos de suas técnicas de desenho e revela sua saudade de desenhar cidades e centros urbanos modernos. Papo massa, saca só:

“Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos”

Quadro de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Hoje é 4 de novembro de 2022, cinco dias depois da vitória do Lula nas eleições presidenciais. Queria começar sabendo como você recebeu esse resultado? Quais expectativas você tem em relação a esse novo governo?

Foi com grande esperança, alívio e alegria que veio a notícia da última eleição, no domingo, em relação à Presidência. Imagino que romper esse ciclo destrutivo e extremamente prejudicial ao Brasil, ao mundo, aos trabalhadores, da política atual, do Bolsonaro, é algo urgente e necessário. Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer. Haja visto o número de votos que eles conseguiram na última eleição.

Agora, por outro lado, não deixa de ser extraordinário ver, mesmo com tantas empresas gastando muito dinheiro para eleição do atual presidente, utilizando a máquina pública para isso, a gente tenha o Lula sendo eleito presidente. É uma vitória popular muito grande contra o interesse dessas oligarquias endinheiradas. Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos, mas também criar estratégias para que isso não volte a acontecer. Isso é possível com muita organização popular, com a população negra, indígena, de mulheres, LGBTI e outros grupos, se fazendo ouvir. Precisamos de diálogos efetivos com esses grupos.

Em meio aos vários retrocessos do governo Bolsonaro, quais são aqueles que você acha que devem ser encarados com maior atenção a partir de 1º de janeiro de 2023?

Olha, são muitos os retrocessos do atual governo. Não tem como você pensar no futuro do país tendo cortes tão bruscos nas áreas da educação, saúde e cultura. Eu acho que qualquer sonho de um país possível, com menos desigualdade e, de fato, por uma outra sociedade, passa necessariamente pela formação, pela instrução e por melhores condições para sua população. Diria que esses são apenas alguns dos temas que precisam ser tratados a partir do próximo ano. Mas é claro, é uma realidade muito complexa, de enormes problemas, que iremos enfrentar. Com certeza. Principalmente em relação ao discurso negacionista e extremamente conservador da extrema direita, diferente daquele de 20 anos atrás.

Superar a política da indiferença e do negacionismo é algo fundamental. Nós precisamos realmente colocar em pauta, novamente, uma política de solidariedade e de mudança social, que é urgente e necessária no Brasil.

Você pode me falar, por favor, sobre o seu primeiro contato com a história da Tiodora? Quando você soube pela primeira vez da existência dela? O que mais te impactou na história dela?

O meu novo livro trata da história da Tiodora. Ela foi uma mulher, negra, escravizada que em 1866 escreveu algumas cartas com ajuda de outro escravizado, o Claro. Eu tive contato com os registros dessas cartas a partir do livro Sonhos Africanos, da Cristina Wissenbach. Ele trata de São Paulo no século 19 e principalmente da população negra naquele período. É um livro incrível. Ele revela uma São Paulo, no século 19, com uma presença forte da população negra, com pessoas escravizadas e livres. As cartas da Tiodora foram enviadas para diversas pessoas. Uma era para o “senhor”, outra para um irmão do “senhor”, outra para seu esposo – Luís, que estava no interior de São Paulo – e outra para o seu filho, Inocêncio. A Tiodora queria ter contato com seus parentes e ter ajuda para conseguir a sua carta de alforria.

Elas revelam muito também sobre a própria trajetória da Tiodora. Ela vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso.

Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora. Eu lembro que chorava ao ler as cartas dela, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período.

“Pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Você definiu para mim Angola Janga como “uma ficção que dialoga com fatos históricos”. Você também vê Mukanda Tiodora dentro desse mesmo “gênero”?

Eu vejo Mukanda Tiodora, assim como meus outros livros, como ficção. Mas há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período. Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção.

Você faz uso de várias referências bibliográficas, mas construiu a HQ a partir das sete cartas de Tiodora. São cartas curtas, mas com muitas informações sobre a realidade da personagem e também sobre as origens e a personalidade dela. Como foi criar a trama dessa HQ tendo essa base como ponto de partida?

O livro da Tiodora passou por diversos estágios. É um livro atualmente com 224 páginas. Mas no início, quando comecei a elaborar o roteiro, pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil, falando da população negra, de cartas, de escrita, um livro quase sem texto. Seria um livro bem menor, com cerca de 40 ou 60 páginas. Aos poucos essa ideia foi crescendo, cada vez mais, como é bem comum de acontecer com meus trabalhos. E foram entrando ali novos personagens, novas ideias e isso fez com que eu tivesse que aprofundar um pouco mais em algumas pesquisas sobre o período.

As cartas da Tiodora são um ponto de partida, um documento potencial que serviu como um grande gerador de novas imagens, de novos personagens, de narrativas possíveis. Aos poucos eu fui pensando na Tiodora e como trazer esses personagens todos para narrativa, tudo inspirado no que tem ali nas cartas da Tiodora.

Aos poucos eu fui tentando entender, também, o Brasil e São Paulo em 1866. E aí nós temos a Guerra do Paraguai; a Guerra Civil nos Estados Unidos, que já tinha acabado nesse período. Nós temos um momento em que as pessoas estão sendo pegas, principalmente pobres e negros, e sendo mandados para morrer na guerra. Por isso foi muito importante dialogar também com outros historiadores e quadrinistas – como o André Toral, que me deu dicas excelentes para pensar nesse contexto. A guerra do Paraguai é um dos temas muito bem discutidos pelo André Toral em diversos livros.

Nesse período, nós temos uma confluência de intelectuais e artistas que atuam juntos na criação de alguns jornais importantes em São Paulo. Nós temos o Luís Gama, que é uma pessoa que vem de Salvador, um jovem que foi escravizado, passa pelo interior e depois fica na cidade de São Paulo. Ele consegue a sua liberdade e se torna um escritor. Além disso, se torna também advogado, tendo lutado em diferentes causas e participado da libertação de mais de 500 pessoas. Enfim, o Luís Gama é uma pessoa que teve conhecimento do processo da Tiodora. Porque as cartas dela foram apreendidas pela polícia depois que o Claro, quem escreveu as cartas, é suspeito de um crime. E o Luís Gama foi uma das pessoas que relatou todo esse caso da Tiodora, então ele tinha conhecimento do que estava acontecendo ali. Inicialmente ele não estaria na história, mas depois ele foi se impondo. Porque a relação do Luís Gama com o Ferreira Menezes, que também era um jornalista e escritor abolicionista, começa em São Paulo, quando o Ferreira Menezes vem estudar na Faculdade de Direito. Ele conhece o Luís Gama e eles trocam diversas cartas ao longo da vida deles, até 1880. Então esses dois personagens entraram. 

Nesse período, 1860, aqui em São Paulo também estava o Ângelo Agostini. Ele publicou jornais em São Paulo junto com o Luís Gama, dentro do contexto de luta abolicionista também de luta pela República. Enfim, tem todo esse contexto político contra os poderosos. O Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa “distorção”, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vem da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais.

O que essas cartas trouxeram de mais revelador para você sobre o Brasil do século 19?

É muito interessante pensar que, nas primeiras décadas de 1800, no interior de São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, havia uma população enorme de pessoas africanas escravizadas. Chegava a ser 50% em alguns locais, durante algumas décadas foi maior do que a população livre. Isso chamava atenção de muitas pessoas que viajavam, que vinham para o Brasil também.

Havia uma produção de café enorme no interior do Rio e essa produção, depois, passa pelo interior de São Paulo, região de Campinas, Limeira. Há um fluxo enorme de pessoas escravizadas da África, de Angola principalmente, vindo para o Rio de Janeiro e depois indo diretamente para o interior de São Paulo. Campinas e região era o local mais brutal do escravismo nesse período. No início de 1800, muitos países estão abolindo o tráfico no Atlântico. Inglaterra, França, Estados Unidos e vários outros países aqui na América Latina, quando se tornam independentes, acabam com a escravidão. Isso não acontece no Brasil. O Brasil se tornou independente e reforçou a instituição cruel da escravidão. Existe um verdadeiro pacto das elites para que a independência aconteça, mas com a continuidade e o incremento da escravidão, trazendo ainda mais pessoas para cá.

A primeira lei sobre a abolição do tráfico no Atlântico aconteceu em 1831. Só que a lei virou uma letra morta. Inicialmente há, sim, um momento de fiscalização e de interrupção do tráfico no Atlântico de escravizados africanos. Mas logo depois os poderosos da época, grandes fazendeiros, apoiadores do escravismo, acabam fazendo com que a lei seja ignorada e o tráfico continue acontecendo de modo ilegal.

Então, é muito interessante compreender esse período e o Luís Gama foi uma das pessoas que mais soube perceber e lutar contra isso. Ele sabia: quem vinha para o Brasil a partir de 1831 era a partir do tráfico ilegal. Essas pessoas não poderiam ser escravizadas. O Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar esse termo naquele período: ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo.

“Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E você vê diálogo entre a realidade da Tiodora e o Brasil contemporâneo?

Olha, acho que a Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil. Ela serve também para a gente relacionar com outras personalidades à margem da sociedade brasileira em diferentes períodos. Eu sempre lembro da história da Tiodora e, 100 anos depois, na história da Carolina de Jesus, por exemplo. E nós poderíamos pensar na história de muitas outras mulheres que utilizaram a escrita como uma estratégia de resistência e de sobrevivência.

Os seus primeiros livros, com ambientações mais contemporâneas, têm forte presença da realidade urbana de São Paulo. Em Cumbe e Angola Janga você se afastou desses cenários, tanto em termos geográficos quanto temporais. Em 2017, quando Angola Janga saiu, você falou como foi difícil essa transição. Em Mukanda Tiodora você volta para São Paulo, mas no século 19. Como você vê a São Paulo escravocrata dessa época influenciando a formação da cidade que existe hoje?

Imagino que as cartas da Tiodora são importantes para mostrar a São Paulo daquele período. São registros únicos para compreender certos espaços negros na cidade de São Paulo naquele período, antes de todo o processo de imigração. Por exemplo, o Bairro da Liberdade, local onde a Tiodora morou e onde ficava a forca. A Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que inicialmente ficava na praça na Praça Antônio Prado, onde hoje existe a bolsa de valores de São Paulo. É muito emblemático que uma igreja com forte presença negra e afro-brasileira no século 19 tenha sido destruída, sobre ela, foram construídos os principais prédios da cidade naquele período, inclusive da bolsa de valores. Aquele solo foi local de grande importância negra, afro-brasileira e africana, em São Paulo no século 19.

E curiosidade minha: você sente falta de desenhar prédios e pichações e cenários mais contemporâneos?

(Risos) Sim, às vezes sim. Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava “é importante que isso seja contado de algum modo”. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas, como fazia com Encruzilhada e Noite Luz.

Apesar de Cumbe ter saído antes de Angola Janga, você já me disse que vê Cumbe como uma extensão de Angola Janga, por um ter surgido das pesquisas do outro. Mukanda Tiodora também é desdobramento dessas pesquisas?

Olha, Mukanda Tiodora, de certo modo, acaba sendo um desdobramento, mas bem diferente para pensar na história do Brasil. Em Mukanda Tiodora eu abordo um outro momento e contexto da escravidão. Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os “senhores”, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora, como aconteceu com a Esperança Garcia também. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade.

É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista. Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista.

“Desenvolvi uma outra relação com o desenho”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Também queria saber um pouco mais sobre as suas técnicas nesse livro novo. Você usou caneta nanquim e pincel com nanquim no Angola Janga e evitou tinta acrílica, uma constante nos seus trabalhos prévios. E agora? Quais materiais você usou?

No livro Tiodora eu trabalhei bastante com nanquim e papel. Eu desenvolvi uma outra relação com o desenho. Eu mudei o estilo para algo que eu sempre persegui de certo modo, nessa relação com o preto e branco, com o cinza, o contraste, algo que lembra um pouco a gravura.

Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo. Gostei bastante do resultado. Tem sido uma outra forma de pensar desenho e composição. Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. Me agradou bastante. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz.

As minhas lembranças de aula de história no colégio sobre o fim da escravidão são de uma narrativa em torno do movimento abolicionista como uma iniciativa de líderes políticos brancos. Tanto Cumbe, quanto Angola Janta e Mukanda Tiodora reforçam para mim a versão pouco difundida da abolição decorrente muito mais de lutas e empenhos de escravizados e ex-escravizados. Como você vê o contraste entre essas duas “narrativas”?

Em Mukanda Tiodora aparece um pouco o início desse movimento abolicionista, nas figuras do Luís Gama e do Ferreira Menezes e do jornal O Cabrião – com participação do Ângelo Agostini, indiretamente. É sempre importante compreendermos que, nesse período da abolição, houve aí um verdadeiro movimento popular, talvez um dos primeiros e mais importantes no Brasil do século 19, que chegou em grande parte da sociedade. Então nas últimas décadas, a partir de 1870 e 80, a escravidão começa a ficar insustentável.  Há uma grande comoção popular de pessoas que não compactuam mais com esse tipo de regime. Apesar disso, o Brasil, infelizmente, foi um dos últimos países a abolir a escravidão, justamente pelo poder que esses grandes fazendeiros, tinham na manutenção desse sistema e a partir sempre de muita violência.  

Nesse momento temos Luiz Gama, Ferreira Menezes, José do Patrocínio e diferentes levantes negros acontecendo em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e outras proximidades. Há uma tentativa de levante, por exemplo, em 1832, em Campinas, que foi organizada por um barbeiro, um tropeiro e centenas de escravizados do interior. 

Enfim, nós temos aí diversos exemplos que mostram que havia um agenciamento, uma luta, muito forte de alguns grupos negros organizados pelo fim do escravismo e pela abolição de fato. Isso influenciou muito para que esse tipo de política acabasse. Não podemos esquecer também que tivemos, no final do século 18 e início do século 19, a revolução no Haiti. Isso causou um temor muito grande dos senhores.

Esse momento do século 19 foi extremamente tenso para quem defendia a manutenção da escravidão, não era algo tranquilo, por mais que no Brasil tenha demorado muito tempo para decretar a abolição. Há inúmeros casos de violência, de revoltas, levantes ou outras formas de negociação empreendidas também por pessoas negras livres que também compunham boa parte da população nas cidades no Brasil a partir de 1850.

Eu queria saber o que mais te interessa hoje no uso da linguagem das histórias em quadrinhos? O que mais te atrai no uso da linguagem das HQs para contar uma história?

Eu ainda quero fazer uma narrativa praticamente sem falas, só com imagens. Eu adoro a possibilidade de contar histórias com imagens, de elaborar novos quebra-cabeças com o desenho, o texto, a composição do layout, símbolos e conceitos. E claro, ainda quero me desenvolver em relação ao meu próprio desenho e à minha forma de contar histórias.

“É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além do universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E quais HQs você acha que mais impactaram a produção de Mukanda Tiodora? Aliás, quais autores, artistas e obras de ficção estiveram mais presentes ao seu redor durante a produção desse trabalho novo?

Algumas obras serviram de inspiração. Por exemplo, A Infância do Brasil, do Zé Aguiar; os quadrinhos e as pesquisas do André Toral; o Província Negra, do Kris Zullo e do Kaled Kanour; o livro Avenida Paulista, do Luiz Gê, que inicia falando de uma São Paulo de séculos atrás. Essas foram apenas algumas narrativas que revisitei. E claro, nesse período, diferente do Angola Janga e Cumbe, já tinha à disposição alguns trabalhos em fotografia, de artistas como o Militão Azevedo. Essas fotografias de São Paulo, em 1862 e 1880, foram muito interessantes para compreender o crescimento da cidade nesse período.

A primeira vez que te entrevistei foi em 2013. Na época, você celebrou uma ampliação do “contexto temático das HQs” nacionais, mas disse ainda considerar “pequenas as iniciativas com temáticas mais sociais, que exploram os muitos universos de uma cidade grande a partir de personagens comuns”. Quase 10 anos depois, você vê mais iniciativas do tipo nas HQs nacionais?

Hoje eu percebo mais iniciativas nesse sentido. Mas, claro, é uma impressão. Pude acompanhar um pouco mais disso anos atrás. É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além desse universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas. Continuo achando que isso é essencial. Não é essencial apenas para falar, vamos dizer assim, de pessoas negras, indígenas, das mulheres e outras condições. É essencial para a própria continuidade das histórias em quadrinhos poderem mostrar todo o seu potencial para grande parte do público. A gente não vai conseguir isso se ficarmos restritos apenas a alguns tipos de formatos e narrativas. O público merece, ele precisa disso, assim como a linguagem dos quadrinhos precisa disso para sobreviver.

Lá em 2017, você me falou que seus 11 anos trabalhando em Angola Janga alteraram o seu “modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos”. Você teve alguma lição ou reflexão maior do tipo durante os anos em que passou trabalhando em Mukanda Tiodora?

Mukanda Tiodora é um livro para pensar em São Paulo, cerca de 150 anos atrás. Ele é relevante para repensar os diferentes espaços físicos, e mesmo simbólicos, em São Paulo, e como a cidade se transformou, bruscamente, nesses últimos séculos. 

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)
HQ / Matérias

Marcelo D’Salete fala sobre Mukanda Tiodora: “Mostro outras estratégias da população negra em busca da liberdade”

Quando o quadrinista Marcelo D’Salete deu início aos seus trabalhos em Mukanda Tiodora (Veneta), ele tinha em mente um projeto menor. Seriam entre 40 e 60 páginas, possivelmente uma obra juvenil e quase sem texto. Eram propostas distintas de seus dois trabalhos prévios, os premiados Cumbe (2014) e Angola Janga (2017). O projeto cresceu, novos personagens surgiram e os temas tratados por ele exigiram novas pesquisas. Às vésperas de sua chega às livrarias nacionais, o livro ficou com 224 páginas. É uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na São Paulo do século 19.

Possivelmente a grande HQ brasileira de 2022, Mukanda Tiodora aprofunda temas presentes nos trabalhos anteriores de D’Salete, amplia as reflexões propostas por eles sobre o Brasil contemporâneo e soa como um novo capítulo da verdadeira história brasileira sob a perspectiva e o nanquim de seu autor.

O novo álbum de D’Salete começou a ganhar forma quando ele leu Sonhos Africanos, Vivências Ladinas (Hucitec Editora), obra da pesquisadora e historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach. O livro trata da cidade de São Paulo no século 19 e, principalmente, sua população negra, tanto sua parcela escravizada quanto a livre. Um trecho da obra é dedicado às cartas de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria.

As sete cartas de Tiodora estão reproduzidas na íntegra nos extras da HQ – além de textos complementares de D’Salete e Maria Cristina Cortez Wissenbach, fotos e mapas da cidade de São Paulo do fim do século 19 e uma linha do tempo da luta contra a escravidão no estado de São Paulo.

“Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora”, me disse D’Salete sobre seu primeiro contato com aquele que viria a ser o foco de seu mais novo quadrinho. “Eu lembro que chorava ao ler as cartas, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período”.

Na avaliação do autor, as cartas ainda são reveladoras sobre a história de vida de Tiodora e o passado recente do país: “Tiodora vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso”. 

Documentos potenciais

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Em 2018, Marcelo D’Salete teve um ano de repercussão inédita para um quadrinista brasileiro. Por Angola Janga, lançado no ano anterior, pela editora Veneta, ele levou o Prêmio Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos, quatro troféus HQMix (Melhor Edição Especial, Melhor Desenhista Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Destaque Internacional) e o Prêmio Grampo de Ouro. Ele ainda recebeu o Prêmio Eisner, o mais importante da indústria de quadrinhos dos Estados Unidos, na categoria Melhor Edição de Material Estrangeiro, pela versão em inglês de Cumbe (Veneta). As duas obras foram publicadas nos EUA pela lendária editora Fantagraphics, casa de alguns dos nomes mais célebres das HQs locais.

Tanto em Cumbe quanto em Angola Janga, D’Salete criou tramas ficcionais a partir de suas pesquisas sobre o Brasil escravocrata do fim do século 16. Em Mukanda Tiodora ele criou ficção a partir de uma das cartas de Tiodora, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Segundo o autor, as cartas foram como um ponto de partida: “documentos potenciais” que resultaram em imagens, personagens e todo um enredo.

“Há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período”, refletiu o autor sobre seu novo trabalho. “Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção”.

A mescla de ficção e história e a apresentação de uma nova trama sobre resistência e enfrentamento ao poder escravista enfatizam o diálogo entre Tiodora, Cumbe e Angola Janga. No entanto, o salto temporal, do século 16 nos dois álbuns prévios, para a segunda metade do século 19 nesse trabalho mais recente, expõe outro contexto da escravidão e outro período da história de resistência da população negra contra o poder escravista.

“Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os ‘senhores’, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade”, explica ele.

“É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista”, ressalta D’Salete. “Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista”.

Libertos escravizados

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

D’Salete focou Mukanda Tiodora no percurso de uma das cartas de Tiodora. Ele mostra a jornada de um jovem que se propõe a fazer a entrega da mensagem em meio a todos os perigos e ao ambiente hostil da São Paulo escravocrata. A trama simples é cercada por uma ambientação reveladora em relação ao seu contexto. O terceiro capítulo da obra, por exemplo, é protagonizado por Luís Gama e Ferreira de Menezes, figuras icônicas e fundamentais do movimento abolicionista. Os dois aparecem no quadrinho em discussão sobre os vários levantes de escravizados que vinham ocorrendo e o fim inevitável da escravidão, mas como o sistema resistia e a escrita poderia ser uma estratégia de combate.

Nascido livre em Salvador, Luís Gama foi escravizado durante a infância. Já adulto, ele conseguiu na Justiça sua liberdade. Depois, como advogado, foi fundamental na libertação de mais de 500 pessoas. D’Salete conta que a presença de Gama acabou se impondo em Mukanda Tiodora – também por ter sido uma das pessoas que relatou o caso de Tiodora na imprensa da época.

“Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa ‘distorção’, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vêm da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais”.

D’Salete também lembra que, no contexto da HQ, o tráfico de escravizados no Oceano Atlântico estava proibido há mais de 30 anos. Mas a prática seguiu sob a vista grossa das autoridades e da igreja católica: “Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar o termo ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo”.

Brasil contemporâneo

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Além do salto temporal de 300 anos, Mukanda Tiodora também se distingue dos trabalhos prévios de D’Salete em relação à sua arte. Seu preto e branco segue em alto contraste, à base de papel e nanquim, mas dialoga ainda mais com a xilogravura. Ele assume ter se empenhado para alcançar um “novo estilo” e “outra forma de pensar desenho e composição”.

“Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo”, me explicou o quadrinista. “Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz”.

E após três álbuns ambientados no Brasil colonial, D’Salete assume sentir saudade dos cenários mais urbanos e modernos de seus primeiros livros, como Encruzilhada (Veneta) e Noite Luz (Via Lettera): “Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava ‘é importante que isso seja contado de algum modo’. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas”.

Já sobre o Brasil contemporâneo ele se diz esperançoso. Focado na produção de Mukanda Tiodora durante grande parte dos quatro anos de presidência de Jair Bolsonaro, D’Salete está aliviado com a vitória de Lula nas eleições do último mês de outubro, mas também lamentou o número expressivo de votos conquistados pelo atual presidente.

“Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer”.

A capa de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)
HQ

Marcelo D’Salete fala sobre Sunny, de Taiyo Matsumoto: “É um trabalho bem sensível, diferente de algo mais dinâmico e de toda a ação do Tekkon Kinkreet”

Conversei com os quadrinistas Marcelo D’Salete e Rafael Coutinho sobre o lançamento do primeiro dos três volumes da editora Devir para a coleção brasileira de Sunny, obra do artista japonês Taiyo Matsumoto, também autor de Preto e Branco/Tekkon Kinkreet. Essas entrevistas viraram matéria na Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista com Marcelo D’Salete sobre os principais méritos do trabalho de Taiyo Matsumoto e o impacto de obras como Sunny e Tekkon Kinkreet no trabalho do autor de Cumbe e Angola Janga. Saca só:

“O que mais me chama atenção é a forma de trabalhar o desenho”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Você lembra do seu primeiro contato com o trabalho do Taiyo Matsumoto? Quando foi?

Por volta de 2001 ou 2002, quando o álbum Preto e Branco foi publicado aqui no Brasil, pela Conrad. Quando vi o trabalho dele achei incrível. Na época eu já tinha tido contato com alguns trabalhos de mangás, mas o dele destoava bastante. Era algo que me lembrava muito o trabalho do Katsuhiro Otomo e outros. Fiquei muito impressionado com a capacidade de desenho e com a capacidade narrativa dele.

O que mais te chama atenção nos quadrinhos do Taiyo Matsumoto?

O que mais me chama atenção é a forma de trabalhar o desenho, o traço, muito sinuoso e bonito. A forma de trabalhar com o preto e branco e a forma como ele consegue criar cenas muito engenhosas, seja pelos ângulos que ele escolhe para cada um dos quadrinhos, seja para os momentos de… Vamos dizer assim, para os momentos mais contemplativos e para os momentos de maior ação dentro de uma história.

“A escolha por trabalhar com caneta nanquim, 0.2 e 0.3, provavelmente veio de artistas como ele”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Como o contato com a obra do Taiyo Matsumoto impactou o seu trabalho? Você consegue pensar em algum influência particular que tenha incorporado da leitura dos quadrinhos dele?

Quando comecei a fazer quadrinhos eu estava trabalhando com diversas técnicas. Isso é bem visível no livro que foi publicado em 2008, Noite Luz. Em alguns momentos eu trabalhava com traço, com caneta, em outros com pincel. Teve momentos, na primeira história do Noite Luz, que eu trabalhei com caneta, pincel chato, criando aquelas manchas negras. E tudo isso em quadros separados, só depois eu juntava tudo. O trabalho do Taiyo talvez tenha me influenciado porque eu o visitava bastante por causa do traço, então a escolha por trabalhar com caneta nanquim, 0.2 e 0.3, provavelmente veio muito por causa de artistas como ele. Foi algo que eu acabei desenvolvendo mais e incorporando no Encruzilhada e depois seguiu no Cumbe e no Angola Janga.

Além disso a forma como ele pensa e estrutura as cenas de ação, também foi alvo que chamou muito a minha atenção. Ele é muito dinâmico, consegue passar uma sensação de diversas ações ocorrendo em um tempo muito curto, com aquelas linhas na diagonal dos quadros.

“Ele me ensinou bastante como trabalhar com cenas concomitantes”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Há uma vastidão de gêneros e estilos quando se fala em mangás, mas há algum aspecto ou elemento em particular, seja no uso da linguagem ou nos métodos de produção, que te chame atenção nas histórias em quadrinhos produzidas no Japão?

Em especial no Preto e Branco acho que tem a forma como o Tayio trabalha muito bem com quadros mais horizontais. Me lembra bastante o cinema, a forma de composição da fotografia no cinema. Além disso, algo que Tayio me ensinou bastante foi como trabalhar com cenas concomitantes, como trabalhar com cenas que acontecem no mesmo tempo. E como seguir uma narrativa desse modo de uma forma eficiente. Isso me chamou muita atenção também, me parece algo muito sofisticado.

Cheguei a ter contato com algumas outras obras do Tayio depois, obras que não foram publicadas aqui no Brasil. Então além de Preto e Branco, e da bela animação que fizeram a partir desse quadrinho, eu li o Ping Pong, que fala sobre um campeonato de pingue-pongue, é incrível o modo como ele consegue trazer as partidas de pingue-pongue e mostrá-las quase como se fossem uma batalha de vida ou morte. É incrível, muito impressionante mesmo. Tive contato também com um outro chamado GoGo Monster, que talvez seja um trabalho que se aproxime mais do Sunny.

Além desses tive contato também com um quadrinho dele mais histórico, sobre samurais, Takemitsuzamurai. Inclusive li bastante esse nos momentos iniciais de produção do Angola Janga, embora seja uma influência bem indireta. 

O que você vê de mais especial em Sunny?

No caso do Sunny eu cheguei a ler o primeiro número dessa publicação. É um trabalho muito bonito graficamente, protagonizado por diversos personagens e você acaba seguindo esses personagens na narrativa. É um trabalho que tem algumas aguadas e meio tom, o que é bem diferente do que ele fazia antes no Preto e Branco. É um trabalho bem atomizado, vamos dizer assim, a partir da perspectiva de algumas crianças e jovens sobre aquele espaço. Um trabalho bem sensível, diferente de algo mais dinâmico e de toda a ação que tem, por exemplo, em um trabalho como o Preto e Branco ou mesmo o Takemitsuzamurai. É um trabalho mais particular e muito delicado, algo muito bonito de se ver também, pela forma como o tempo se dá, de uma forma bem dilatada, pegando cada detalhes de olhar e de expressão dos personagens.

A capa do primeiro volume da coleção brasileira de Sunny, pela editora Devir
HQ

Será apenas justo que Marcelo D’Salete chegue ao final de 2018 com troféus dos prêmios Eisner, HQMix, Jabuti e Grampo

“Cumbe foi uma primeira forma de abordar a história dos povos africanos e negros escravizados no Brasil. Ainda tenho o projeto de elaborar uma narrativa sobre a história do Quilombo dos Palmares. Esse é com certeza o meu projeto mais ambicioso por enquanto. Pretendo ter tudo pronto nos próximos anos. Quando o projeto estiver mais próximo do fim devo começar a me preocupar com a forma de publicação. Além desse, ainda tenho muitas histórias sobre a nossa sociedade atual para contar. Ideias não faltam.”

As aspas aqui em cima foram tiradas da entrevista dada pelo quadrinista Marcelo D’Salete ao blog em setembro de 2014, logo em seguida ao lançamento de Cumbe. A versão norte-americana do álbum foi lançada nos Estados Unidos pela editora Fantagraphics no final de 2017 com o título Run For It: Stories of Slaves Who Fought for Their Freedom. Na noite de sexta-feira passada, dia 20 de julho de 2018, o livro ganhou o Prêmio Eisner de melhor edição americana de material estrangeiro. O Eisner é o maior prêmio da indústria norte-americana de quadrinhos.

Os irmãos e quadrinistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá já haviam vencido o Prêmio Eisner em 2008, pela antologia 5 (junto com Rafael Grampá), em 2011, por Daytripper (melhor série limitada), e em 2016, (melhor adaptação), por Dois Irmãos, inspirado no livro homônimo de Milton Hatoum. Individualmente, Moon ganhou pela HQ online Sugarshock! (escrita por Joss Whedon, para a revista Dark Horse Presents) e Bá, também sozinho, levou pela minissérie The Umbrella Academy (escrita por Gerard Way). A comoção em torno do reconhecimento de Cumbe é maior do que a ocorrida em seguida às vitórias dos gêmeos paulistanos – por parte de quadrinistas, da mídia especializada e de leitores não habituais de quadrinhos. Mesmo ambientado no Brasil colonial, Cumbe trata do Brasil de hoje. O quadrinho de D’Salete dialoga com uma sociedade em crise e expõe a origem de vários de seus principais problemas.

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“Esse lançamento foi um momento de inflexão total na minha trajetória. Na época, pensava seriamente se continuava a produzir e publicar do mesmo modo. Apesar das críticas positivas, meus livros anteriores não tinham chegado a um público muito amplo. Cumbe rompeu todas as expectativas. Não apenas pela premiação atual, mas por ter tido uma ótima recepção pelo público em diversos locais.”

Essa segunda fala foi tirada do Facebook de D’Salete, em mensagem compartilhada por ele algumas horas após o anúncio de sua vitória no Eisner. Entre os trabalhos prévios mencionados por ele constam Noite Luz (2008), publicado pela Via Lettera; Encruzilhada, lançado originalmente em 2011 pela Leya e depois republicado pela Veneta em 2017; e Risco, também de 2014, como parte da coleção Franca da Editora Cachalote.

Ainda há muito a ser redescoberto do trabalho de D’Salete. Obras com forte ambientação urbana mostrando um país moderno com preconceitos e desigualdades em vigor desde o Brasil colonial.

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“Muita coisa mudou nesses últimos 11 anos, desde quando fiz o primeiro roteiro para Angola Janga. Alterou o meu modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos. Os remanescentes de quilombos atuais, com suas diferentes origens, ainda resistem e atestam a violência de nossa história. Ainda hoje, essas pessoas estão sistematicamente ameaçadas por fazendeiros, empreendimentos milionários etc. De certo modo, isso remete a ausência de reforma agrária desde o pós-abolição. Um elemento a mais que agrava brutalmente o desnível social em que vivemos.”

A comoção nacional e internacional em torno de Cumbe é merecida. Mas é Angola Janga a verdadeira obra-prima de D’Salete. Lançada no final de 2017, vencedora do Prêmio Grampo 2018, já publicada na França, a obra até o momento teve seus direitos de publicação vendidos para Alemanha, Itália, Portugal e Estados Unidos – também pela Fantagraphics.

As 432 páginas de Angola Janga tornam o premiado Cumbe uma espécie de prévia desse trabalho maior. Trata-se de uma obra definitiva. Mesmo apenas um ano após sua publicação, já é visto como um dos melhores e mais importantes quadrinhos brasileiros de todos os tempos. Ao contar a história do Quilombo dos Palmares pela perspectiva daqueles que o fundaram e construíram, D’Salete propõe uma releitura sobre a luta de grupos negros, populares e indígenas contra um modelo de sociedade construído a partir de violência, racismo, discriminação, desigualdade e tudo o que há de mais errado na sociedade brasileira.

Caso o livro não ganhe todos os troféus em que foi inscrito no Prêmio HQMix 2018 e também não leve o Prêmio Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos, nada mais fará sentido. Será apenas justo que D’Salete chegue ao final de 2018 com troféus do Eisner, HQMix, Jabuti e Grampo. Um feito que dificilmente voltará a ser alcançado.

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PS: A vitória de D’Salete no Eisner ocorre pouco mais de dois anos após Marcello Quintanilha levar o prêmio de melhor HQ policial no Festival de Angoulême de 2016, por Tungstênio. Ambas as obras foram publicadas no Brasil pela Editora Veneta, casa dos dois autores no país. O selo editado por Rogério de Campos abriga a vanguarda das HQs nacionais, traduz para o português alguns dos títulos mais importantes da história da linguagem e tem alcance fora do nicho de leitores de quadrinhos como nenhuma outra editora especializada. É essencial estar atento ao filtro, à linha editorial, aos autores e às publicações da editora.

*Entrevistas com Marcelo D’Salete publicadas no Vitralizado:
>> Papo com Marcelo D’Salete, o autor Angola Janga: “Temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos”;
>> Marcelo D’Salete e as origens de Angola Janga – Uma História de Palmares;
>> Papo com Marcelo D’Salete – Volume 2;
>> Papo com Marcelo D’Salete;
>> Marcelo D’Salete e as origens de Angola Janga – Uma História de Palmares;

*Leia também:
>> Marcelo D’Salete fala sobre HQs, personagens da periferia e sua relação com a cidade de São Paulo;
>> Rogério de Campos, editor da Veneta: “Precisamos defender como pudermos as livrarias especializadas”;
>> Papo com Rogério de Campos: “O que está aquém no momento é a reflexão sobre quadrinhos no Brasil”;

Entrevistas / HQ

Papo com Marcelo D’Salete, o autor Angola Janga: “Temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos”

Já comentei algumas vezes como considero Angola Janga – Uma História de Palmares o quadrinho brasileiro mais importante publicado em 2017. É um álbum histórico pelos 11 anos que Marcelo D’Salete passou produzindo, por causa dos temas que ele trata e pela qualidade da obra. Para escrever a minha matéria pro UOL sobre a HQ eu fiz duas entrevistas com o autor. Uma delas foi realizada antes que eu tivesse lido o livro, quando ele ainda estava sendo fechado. Nela eu pedi informações sobre o conteúdo do álbum, as pesquisas feitas pelo autor e as técnicas de produção do quadrinho.

A entrevista seguinte foi feita após a leitura do PDF da HQ, com o livro na gráfica, dias antes de sua chegada às livrarias e a publicação da minha matéria. Reúno a seguir as minhas duas conversas com D’Salete. Antes, no entanto, recomendo: leia Angola Janga, depois o meu texto no UOL e então volte pra cá e confira o nosso papo. Combinado?

– Parte 1 –

Eu queria começar sabendo sobre a origem do quadrinho. Você lembra do instante em que teve a ideia de criar Angola Janga?

Angola Janga foi um processo longo. É difícil pensar num começo. Em todo caso, um momento importante foi um curso sobre história do Brasil, focando a população negra, com o professor Petrônio Domingues. Isso cerca de 13 anos atrás. Conheci a história de Palmares com mais detalhes ali.

Você é pesquisador e sei que investiu muito tempo do desenvolvimento estudando o contexto sobre o qual iria tratar. Como foi esse trabalho de pesquisa pra produção do livro?

O trabalho de pesquisa foi muito longo. Engraçado, pois antes não tinha ideia de como isso seria extenso. É como se cada livro e tema levasse a novas pesquisas. Usei muito a biblioteca do Museu Afro Brasil no início. Foi importante para conhecer textos e imagens do período. Sobre Palmares, algumas das referências foram obras do Flávio Gomes, Décio Freitas, Clóvis Moura, Nei Lopes, Edison Carneiro, João Felício, etc. Mas fora isso, foi necessário muito mais para formar um quebra cabeça mais rico sobre o contexto e o tema.

Como disse, eu ainda não li a HQ. Você pode me falar um pouco sobre as tramas do álbum? Ele é semelhante ao Cumbe, misturando histórias fictícias, apesar de inspiradas em relatos reais?

Angola Janga é uma ficção. Me inspirei em fatos e personagens históricos, mas a narrativa é ficcional. E a ficção, em toda sua potência, pode fornecer instrumentos únicos para ver e imaginar nossa história. Um dos personagens principais é o mulato Antônio Soares. Ele é próximo de Zumbi. Há também o Ganga-Zumba, líder mais antigo de Palmares, Ganga-Zona, irmão de Zumba, Acotirene, Andala, os paulistas Domingos Jorge Velho, André Furtado. A história aborda o contexto de escravidão, as entradas contra os vários mocambos de Palmares, a tentativa de acordo de paz com Ganga-Zumba e o poder colonial, e a guerra final contra Palmares.

Este trabalho tem alguma similaridade com Cumbe. São 11 capítulos ao todo mais o posfácio. Gosto de imaginar que cada parte funciona bem isoladamente, mas eles formam uma grande narrativa no conjunto. Por outro lado, há personagens importantes que atravessam quase todos os capítulos e a narrativa tem mais a forma de um romance do que Cumbe.

Quais técnicas de ilustração você utilizou? Houve algum tipo de material específico que predominou enquanto você produzia o quadrinho?

Usei caneta nanquim e pincel com nanquim. Não usei tinta acrílica para as manchas, que era algo comum nos trabalhos anteriores. Nesses anos todos de processo, precisei rever muitas vezes o desenho, pois ele acabou mudando um bocado.

Você trabalhou com um roteiro? Houve alguma dinâmica específica de criação dos textos e da arte?

Em geral, elaboro um roteiro para começar a desenvolver a HQ. Contudo, a narrativa vai se desenvolvendo e procuro aproveitar as ideias que surgem no caminho. Muita coisa nova surge nesse processo. Em Angola Janga, aliás, muitos dos personagens foram surgindo de modo muito orgânico.

O seu trabalho é muito conhecido pela ambientação urbana e dessa vez, assim como em Cumbe, você sai desse contexto. É mais desafiador pra você trabalhar em uma HQ de época, fora dessa ambientação urbana?

Foi muito difícil, para mim, fazer essa transição. Em Cumbe, algumas páginas cheguei a fazer mais de 5 tratamentos até chegar em algo aceitável. Em Angola Janga, foram menos tratamentos, pois já havia desenvolvido mais familiaridade com o contexto. Por outro lado, foi um aprendizado imenso.

Vi definições do Cumbe como uma coletânea de histórias de resistência no Brasil colonial. O Angola Janga vai por esse mesmo caminho?

Palmares foi um evento incrível para o Brasil e para a América como um todo. Era um local onde milhares de negros e negras buscavam autonomia sobre suas vidas, fora do sistema colonial. Um conjunto de diversos mocambos, na Serra da Barriga, extremamente articulados e implicados entre si. Lá eles cultivavam seus alimentos, criavam aves e porcos, chegaram a ter até locais de forja de metais. Isso, por si só, já é uma forma de resistência enorme quanto ao poder colonial, escravocrata e genocida. Eu penso Angola Janga, do quimbundo “pequena Angola”, como uma extensão de Cumbe. Aliás, de certo modo, o contrário é o correto. Embora tenha sido publicado antes, Cumbe surgiu das pesquisas sobre Angola Janga. Os dois livros têm muito em comum.

Qual você considera ser a importância de tratar de resistência e luta em tempos tão nefastos de conservadorismo aflorado e repressão a minorias como estamos vivendo no Brasil – e no mundo?

Essa onda conservadora (e perda de direitos de muitos grupos) é contra o diálogo e qualquer interpretação diferente dos fatos e do modo de ver as coisas. Precisamos criar pontes e favorecer o diálogo. Há várias formas de tentar resistir a isso, mas não podemos esquecer de dialogar quando possível. E a resistência é imprescindível hoje.

– Parte 2 –

Você conta no fim do livro que um dos objetivos do quadrinho é “conduzir a narrativa a partir do olhar dos palmaristas”. Estamos muito viciados em ouvir e ler a nossa história sempre a partir da perspectiva dos dominantes. Qual você acredita ser a importância de ouvir e ler esse outro lado da história?

Nossa história conta com a presença e luta de grupos negros, populares e indígenas. De formas diferentes, eles se opuseram ou negociaram, quando possível, com um modelo colonial baseado em forte hierarquia social. Conhecemos a perspectiva das elites sobre isso, mas a história pela ótica dos oprimidos ainda é pouco evidente. Explorar esse universo pode ser significativo para a realidade atual. Não apenas para conhecer esses fatos, mas também para gerar novas formas de compreender a sociedade hoje. No Brasil, temos uma subcidadania praticada e reafirmada cotidianamente. O poder permanece na mão de poucos. Isso só é possível a partir de estruturas de poder e discriminação eficientes que permanecem desde o período colonial.

Você ressalta o papel significativo da ficção nesse empenho de narrar a perspectiva dos palmaristas. Ainda assim, mesmo sendo uma ficção, você vê potencial didático no trabalho que produziu?

Em Angola Janga a ficção tem um papel fundamental. Considero que ela é essencial para contar, com a força que espero, uma narrativa como a de Palmares. Os fatos históricos ainda são pouco acessíveis a grande parte da população. Neste sentido, a ficção e os quadrinhos podem tecer pontes interessantes para quem deseja conhecer mais. Se isso pode ser usado para fins didáticos, outras pessoas poderão dizer. Cumbe obteve uma boa aceitação nesse universo. Ele foi indicado para leitura em escolas de Portugal e distribuído em bibliotecas de São Paulo. Angola Janga pode ter uma trajetória semelhante.

No seu texto no final do livro você também fala da necessidade de administrar ficção e realidade e de suas decisões voltadas para tornar a narrativa mais concisa e interessante. Você poderia, por favor, falar mais sobre essa dinâmica de administrar essa relação entre fatos e ficção?

Angola Janga é uma ficção que dialoga com fatos históricos. Procurei usar a ficção e os quadrinhos da maneira mais eficaz para esse fim. A história dos mocambos de Palmares é enorme e eu precisava ser conciso ao contá-la. Tentei evitar dados desnecessários, repetitivos etc. Se pudesse e tivesse mais tempo, ainda acrescentaria mais capítulos, mas penso que o livro já tem uma boa extensão como está. O personagem Antônio Soares, por exemplo, surge na história conhecida de Palmares apenas como um dos últimos malungos ao lado de Zumbi na Serra dois Irmãos, em Viçosa, Alagoas. Ao fazer a trama, ele me pareceu o personagem ideal para acompanhar a maior parte da história.

Um tema que considerei muito constante no quadrinho tá sintetizado em uma fala que diz “o futuro é mais do que disputa entre nós”. Você considera uma constante história essa estratégia dos opressores de colocar os oprimidos uns contra os outros?

Não saberia dizer se é uma constante. Mas, certamente, isso ocorreu em nossa história. A estratégia portuguesa utilizou esse dispositivo contra indígenas e africanos. Não apenas os portugueses fizeram isso, mas holandeses, espanhóis, franceses etc. Principalmente no período colonial, além das divisões provocadas pelos colonizadores entre diferentes etnias e povos, os grupos negros armados contra outros exércitos foram os primeiros também a serem traídos. Como exemplo, basta lembrar dos lanceiros negros no sul.

Me chamou muita atenção no livro como você trabalha com elementos icônicos e simbolismos no livro. O capítulo 4, Cicatrizes, é repleto desses símbolos e no glossário do livro você explica o significado de alguns deles. Como foi o trabalho de chegar nesses ícones e incluí-los na trama?

Este foi um processo longo e demorado. Meu jeito de contar é com pouco texto. Não queria fazer Palmares de uma maneira muito diferente disso. A narrativa precisava ser contada de modo significativo em termos de imagem. Desconhecemos absurdamente as culturas de origem banto que formaram nosso país, seus conceitos, modo de ver as coisas e símbolos. Por esse motivo, além de autores nacionais, precisei recorrer a estudiosos africanos. Isso me ajudou a conhecer e compreender alguns símbolos. O povo tchokwe, do nordeste de Angola, por exemplo, tem um rico universo de desenhos chamados sona. São antigos desenhos feitos na areia, cheios de mensagens e significados. Além deles, tem os adinkra, de origem ashanti, do centro-oeste africano. Bem, tentei inseri-los na trama de maneira apropriada, condensando ideias, momentos e sentimentos.

Nesse quarto capítulo eu também acho muito interessante um trabalho de você faz que parece o zoom de uma câmera. Você foca em elementos muito específicos, depois vai abrindo o plano e em seguida dá o zoom outra vez. Você pode comentar, por favor, o uso dessa técnica?

Esse é um recurso usado por diversos autores. Talvez seja uma influência do cinema também. Tenho dificuldade em pensar a construção da página de quadrinhos de outro modo. Considero monótono trabalhar com o personagem em plano inteiro. Muitas vezes, num quadro, ideias podem ser sintetizadas a partir do foco em objetos ou pequenas ações. Por outro lado, é preciso abrir o plano para situar melhor a ação e fornecer mais elementos ao leitor. Gosto de usar esses recursos ao construir as páginas.

O sétimo capítulo, Selvagens, é focado principalmente nos bandeirantes. Há uma citação no livro que define os bandeirantes como “uma tropa de choque a serviço do colonialismo português” e essa interpretação tem se fortalecido ao longo dos últimos anos – os protestos constantes feitos no Monumento às Bandeiras em frente ao Parque do Ibirapuera são um bom exemplo disso. Qual você acredita ser a importância de revisitar, questionar e reinterpretar a história como é contada nas escolas?

Monumentos são utilizados para marcar o tempo, o espaço e configurar um modo de ver a história de um grupo. Hoje, os bandeirantes não sintetizam mais uma narrativa nacional significativa para grande parte da população. Eles foram parte responsável pela matança e extermínio de muitos povos indígenas. Precisamos construir uma leitura mais complexa desses monumentos hoje. Um monumento não precisa ser permanente. Ele pode ser retirado, alterado, como já aconteceu em muitos locais. Em todo caso, algo que precisamos muito, imagino, é ter espaço para outros monumentos, evidenciando outros lados da história. Em São Paulo, por exemplo, os monumentos que mostram a história da população negra são pouquíssimos. Com certeza, grande parte das pessoas não consegue nem ao menos citar um deles.

Qual a maior lição que você teve enquanto produzia esse livro? Houve alguma interpretação ou perspectiva sua em particular que mudou profundamente enquanto pesquisava e criava a HQ?

Muita coisa mudou nesses últimos 11 anos, desde quando fiz o primeiro roteiro para Angola Janga. Alterou o meu modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos. Os remanescentes de quilombos atuais, com suas diferentes origens, ainda resistem e atestam a violência de nossa história. Ainda hoje, essas pessoas estão sistematicamente ameaçadas por fazendeiros, empreendimentos milionários etc. De certo modo, isso remete a ausência de reforma agrária desde o pós-abolição. Um elemento a mais que agrava brutalmente o desnível social em que vivemos. Neste ano, os conflitos envolvendo terras aumentaram e tendem a aumentar ainda mais devido aos interesses dos grupos mais poderosos e a falta de uma legislação contra essas ameaças.

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Marcelo D’Salete e as origens de Angola Janga – Uma História de Palmares

Eu e o Lielson Zeni do Balbúrdia batermos um papo breve, mas muito interessante com o Marcelo D’Salete sobre a criação de Angola Janga – Uma História de Palmares. A conversa rolou no dia do lançamento do livro na loja da Ugra, 14 de novembro, aqui em São Paulo, e foi filmada pelo Carlos Neto do Papo Zine. Em breve publico por aqui a íntegra da minha entrevista com o autor que culminou na minha matéria pro UOL. Enquanto isso, dá o play: