Papo com Marcelo D’Salete, autor de Mukanda Tiodora: “Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder”

Como escrevi na minha reportagem sobre Mukanda Tiodora, é provável que o novo quadrinho de Marcelo D’Salete seja a grande HQ brasileira de 2022. O álbum de 224 páginas recém-lançado pela editora Veneta é uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na cidade de São Paulo do século 19.

A obra é baseada na história de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria. D’Salete criou ficção a partir de uma das cartas, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Você lê o meu texto sobre a HQ clicando aqui.

Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com D’Salete. Ele fala sobre o desenvolvimento de seu novo trabalho, mas também expõe suas expectativas para o governo Lula a partir de 2023, reflete sobre os rumos de suas técnicas de desenho e revela sua saudade de desenhar cidades e centros urbanos modernos. Papo massa, saca só:

“Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos”

Quadro de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Hoje é 4 de novembro de 2022, cinco dias depois da vitória do Lula nas eleições presidenciais. Queria começar sabendo como você recebeu esse resultado? Quais expectativas você tem em relação a esse novo governo?

Foi com grande esperança, alívio e alegria que veio a notícia da última eleição, no domingo, em relação à Presidência. Imagino que romper esse ciclo destrutivo e extremamente prejudicial ao Brasil, ao mundo, aos trabalhadores, da política atual, do Bolsonaro, é algo urgente e necessário. Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer. Haja visto o número de votos que eles conseguiram na última eleição.

Agora, por outro lado, não deixa de ser extraordinário ver, mesmo com tantas empresas gastando muito dinheiro para eleição do atual presidente, utilizando a máquina pública para isso, a gente tenha o Lula sendo eleito presidente. É uma vitória popular muito grande contra o interesse dessas oligarquias endinheiradas. Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos, mas também criar estratégias para que isso não volte a acontecer. Isso é possível com muita organização popular, com a população negra, indígena, de mulheres, LGBTI e outros grupos, se fazendo ouvir. Precisamos de diálogos efetivos com esses grupos.

Em meio aos vários retrocessos do governo Bolsonaro, quais são aqueles que você acha que devem ser encarados com maior atenção a partir de 1º de janeiro de 2023?

Olha, são muitos os retrocessos do atual governo. Não tem como você pensar no futuro do país tendo cortes tão bruscos nas áreas da educação, saúde e cultura. Eu acho que qualquer sonho de um país possível, com menos desigualdade e, de fato, por uma outra sociedade, passa necessariamente pela formação, pela instrução e por melhores condições para sua população. Diria que esses são apenas alguns dos temas que precisam ser tratados a partir do próximo ano. Mas é claro, é uma realidade muito complexa, de enormes problemas, que iremos enfrentar. Com certeza. Principalmente em relação ao discurso negacionista e extremamente conservador da extrema direita, diferente daquele de 20 anos atrás.

Superar a política da indiferença e do negacionismo é algo fundamental. Nós precisamos realmente colocar em pauta, novamente, uma política de solidariedade e de mudança social, que é urgente e necessária no Brasil.

Você pode me falar, por favor, sobre o seu primeiro contato com a história da Tiodora? Quando você soube pela primeira vez da existência dela? O que mais te impactou na história dela?

O meu novo livro trata da história da Tiodora. Ela foi uma mulher, negra, escravizada que em 1866 escreveu algumas cartas com ajuda de outro escravizado, o Claro. Eu tive contato com os registros dessas cartas a partir do livro Sonhos Africanos, da Cristina Wissenbach. Ele trata de São Paulo no século 19 e principalmente da população negra naquele período. É um livro incrível. Ele revela uma São Paulo, no século 19, com uma presença forte da população negra, com pessoas escravizadas e livres. As cartas da Tiodora foram enviadas para diversas pessoas. Uma era para o “senhor”, outra para um irmão do “senhor”, outra para seu esposo – Luís, que estava no interior de São Paulo – e outra para o seu filho, Inocêncio. A Tiodora queria ter contato com seus parentes e ter ajuda para conseguir a sua carta de alforria.

Elas revelam muito também sobre a própria trajetória da Tiodora. Ela vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso.

Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora. Eu lembro que chorava ao ler as cartas dela, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período.

“Pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Você definiu para mim Angola Janga como “uma ficção que dialoga com fatos históricos”. Você também vê Mukanda Tiodora dentro desse mesmo “gênero”?

Eu vejo Mukanda Tiodora, assim como meus outros livros, como ficção. Mas há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período. Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção.

Você faz uso de várias referências bibliográficas, mas construiu a HQ a partir das sete cartas de Tiodora. São cartas curtas, mas com muitas informações sobre a realidade da personagem e também sobre as origens e a personalidade dela. Como foi criar a trama dessa HQ tendo essa base como ponto de partida?

O livro da Tiodora passou por diversos estágios. É um livro atualmente com 224 páginas. Mas no início, quando comecei a elaborar o roteiro, pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil, falando da população negra, de cartas, de escrita, um livro quase sem texto. Seria um livro bem menor, com cerca de 40 ou 60 páginas. Aos poucos essa ideia foi crescendo, cada vez mais, como é bem comum de acontecer com meus trabalhos. E foram entrando ali novos personagens, novas ideias e isso fez com que eu tivesse que aprofundar um pouco mais em algumas pesquisas sobre o período.

As cartas da Tiodora são um ponto de partida, um documento potencial que serviu como um grande gerador de novas imagens, de novos personagens, de narrativas possíveis. Aos poucos eu fui pensando na Tiodora e como trazer esses personagens todos para narrativa, tudo inspirado no que tem ali nas cartas da Tiodora.

Aos poucos eu fui tentando entender, também, o Brasil e São Paulo em 1866. E aí nós temos a Guerra do Paraguai; a Guerra Civil nos Estados Unidos, que já tinha acabado nesse período. Nós temos um momento em que as pessoas estão sendo pegas, principalmente pobres e negros, e sendo mandados para morrer na guerra. Por isso foi muito importante dialogar também com outros historiadores e quadrinistas – como o André Toral, que me deu dicas excelentes para pensar nesse contexto. A guerra do Paraguai é um dos temas muito bem discutidos pelo André Toral em diversos livros.

Nesse período, nós temos uma confluência de intelectuais e artistas que atuam juntos na criação de alguns jornais importantes em São Paulo. Nós temos o Luís Gama, que é uma pessoa que vem de Salvador, um jovem que foi escravizado, passa pelo interior e depois fica na cidade de São Paulo. Ele consegue a sua liberdade e se torna um escritor. Além disso, se torna também advogado, tendo lutado em diferentes causas e participado da libertação de mais de 500 pessoas. Enfim, o Luís Gama é uma pessoa que teve conhecimento do processo da Tiodora. Porque as cartas dela foram apreendidas pela polícia depois que o Claro, quem escreveu as cartas, é suspeito de um crime. E o Luís Gama foi uma das pessoas que relatou todo esse caso da Tiodora, então ele tinha conhecimento do que estava acontecendo ali. Inicialmente ele não estaria na história, mas depois ele foi se impondo. Porque a relação do Luís Gama com o Ferreira Menezes, que também era um jornalista e escritor abolicionista, começa em São Paulo, quando o Ferreira Menezes vem estudar na Faculdade de Direito. Ele conhece o Luís Gama e eles trocam diversas cartas ao longo da vida deles, até 1880. Então esses dois personagens entraram. 

Nesse período, 1860, aqui em São Paulo também estava o Ângelo Agostini. Ele publicou jornais em São Paulo junto com o Luís Gama, dentro do contexto de luta abolicionista também de luta pela República. Enfim, tem todo esse contexto político contra os poderosos. O Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa “distorção”, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vem da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais.

O que essas cartas trouxeram de mais revelador para você sobre o Brasil do século 19?

É muito interessante pensar que, nas primeiras décadas de 1800, no interior de São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, havia uma população enorme de pessoas africanas escravizadas. Chegava a ser 50% em alguns locais, durante algumas décadas foi maior do que a população livre. Isso chamava atenção de muitas pessoas que viajavam, que vinham para o Brasil também.

Havia uma produção de café enorme no interior do Rio e essa produção, depois, passa pelo interior de São Paulo, região de Campinas, Limeira. Há um fluxo enorme de pessoas escravizadas da África, de Angola principalmente, vindo para o Rio de Janeiro e depois indo diretamente para o interior de São Paulo. Campinas e região era o local mais brutal do escravismo nesse período. No início de 1800, muitos países estão abolindo o tráfico no Atlântico. Inglaterra, França, Estados Unidos e vários outros países aqui na América Latina, quando se tornam independentes, acabam com a escravidão. Isso não acontece no Brasil. O Brasil se tornou independente e reforçou a instituição cruel da escravidão. Existe um verdadeiro pacto das elites para que a independência aconteça, mas com a continuidade e o incremento da escravidão, trazendo ainda mais pessoas para cá.

A primeira lei sobre a abolição do tráfico no Atlântico aconteceu em 1831. Só que a lei virou uma letra morta. Inicialmente há, sim, um momento de fiscalização e de interrupção do tráfico no Atlântico de escravizados africanos. Mas logo depois os poderosos da época, grandes fazendeiros, apoiadores do escravismo, acabam fazendo com que a lei seja ignorada e o tráfico continue acontecendo de modo ilegal.

Então, é muito interessante compreender esse período e o Luís Gama foi uma das pessoas que mais soube perceber e lutar contra isso. Ele sabia: quem vinha para o Brasil a partir de 1831 era a partir do tráfico ilegal. Essas pessoas não poderiam ser escravizadas. O Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar esse termo naquele período: ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo.

“Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E você vê diálogo entre a realidade da Tiodora e o Brasil contemporâneo?

Olha, acho que a Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil. Ela serve também para a gente relacionar com outras personalidades à margem da sociedade brasileira em diferentes períodos. Eu sempre lembro da história da Tiodora e, 100 anos depois, na história da Carolina de Jesus, por exemplo. E nós poderíamos pensar na história de muitas outras mulheres que utilizaram a escrita como uma estratégia de resistência e de sobrevivência.

Os seus primeiros livros, com ambientações mais contemporâneas, têm forte presença da realidade urbana de São Paulo. Em Cumbe e Angola Janga você se afastou desses cenários, tanto em termos geográficos quanto temporais. Em 2017, quando Angola Janga saiu, você falou como foi difícil essa transição. Em Mukanda Tiodora você volta para São Paulo, mas no século 19. Como você vê a São Paulo escravocrata dessa época influenciando a formação da cidade que existe hoje?

Imagino que as cartas da Tiodora são importantes para mostrar a São Paulo daquele período. São registros únicos para compreender certos espaços negros na cidade de São Paulo naquele período, antes de todo o processo de imigração. Por exemplo, o Bairro da Liberdade, local onde a Tiodora morou e onde ficava a forca. A Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que inicialmente ficava na praça na Praça Antônio Prado, onde hoje existe a bolsa de valores de São Paulo. É muito emblemático que uma igreja com forte presença negra e afro-brasileira no século 19 tenha sido destruída, sobre ela, foram construídos os principais prédios da cidade naquele período, inclusive da bolsa de valores. Aquele solo foi local de grande importância negra, afro-brasileira e africana, em São Paulo no século 19.

E curiosidade minha: você sente falta de desenhar prédios e pichações e cenários mais contemporâneos?

(Risos) Sim, às vezes sim. Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava “é importante que isso seja contado de algum modo”. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas, como fazia com Encruzilhada e Noite Luz.

Apesar de Cumbe ter saído antes de Angola Janga, você já me disse que vê Cumbe como uma extensão de Angola Janga, por um ter surgido das pesquisas do outro. Mukanda Tiodora também é desdobramento dessas pesquisas?

Olha, Mukanda Tiodora, de certo modo, acaba sendo um desdobramento, mas bem diferente para pensar na história do Brasil. Em Mukanda Tiodora eu abordo um outro momento e contexto da escravidão. Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os “senhores”, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora, como aconteceu com a Esperança Garcia também. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade.

É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista. Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista.

“Desenvolvi uma outra relação com o desenho”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Também queria saber um pouco mais sobre as suas técnicas nesse livro novo. Você usou caneta nanquim e pincel com nanquim no Angola Janga e evitou tinta acrílica, uma constante nos seus trabalhos prévios. E agora? Quais materiais você usou?

No livro Tiodora eu trabalhei bastante com nanquim e papel. Eu desenvolvi uma outra relação com o desenho. Eu mudei o estilo para algo que eu sempre persegui de certo modo, nessa relação com o preto e branco, com o cinza, o contraste, algo que lembra um pouco a gravura.

Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo. Gostei bastante do resultado. Tem sido uma outra forma de pensar desenho e composição. Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. Me agradou bastante. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz.

As minhas lembranças de aula de história no colégio sobre o fim da escravidão são de uma narrativa em torno do movimento abolicionista como uma iniciativa de líderes políticos brancos. Tanto Cumbe, quanto Angola Janta e Mukanda Tiodora reforçam para mim a versão pouco difundida da abolição decorrente muito mais de lutas e empenhos de escravizados e ex-escravizados. Como você vê o contraste entre essas duas “narrativas”?

Em Mukanda Tiodora aparece um pouco o início desse movimento abolicionista, nas figuras do Luís Gama e do Ferreira Menezes e do jornal O Cabrião – com participação do Ângelo Agostini, indiretamente. É sempre importante compreendermos que, nesse período da abolição, houve aí um verdadeiro movimento popular, talvez um dos primeiros e mais importantes no Brasil do século 19, que chegou em grande parte da sociedade. Então nas últimas décadas, a partir de 1870 e 80, a escravidão começa a ficar insustentável.  Há uma grande comoção popular de pessoas que não compactuam mais com esse tipo de regime. Apesar disso, o Brasil, infelizmente, foi um dos últimos países a abolir a escravidão, justamente pelo poder que esses grandes fazendeiros, tinham na manutenção desse sistema e a partir sempre de muita violência.  

Nesse momento temos Luiz Gama, Ferreira Menezes, José do Patrocínio e diferentes levantes negros acontecendo em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e outras proximidades. Há uma tentativa de levante, por exemplo, em 1832, em Campinas, que foi organizada por um barbeiro, um tropeiro e centenas de escravizados do interior. 

Enfim, nós temos aí diversos exemplos que mostram que havia um agenciamento, uma luta, muito forte de alguns grupos negros organizados pelo fim do escravismo e pela abolição de fato. Isso influenciou muito para que esse tipo de política acabasse. Não podemos esquecer também que tivemos, no final do século 18 e início do século 19, a revolução no Haiti. Isso causou um temor muito grande dos senhores.

Esse momento do século 19 foi extremamente tenso para quem defendia a manutenção da escravidão, não era algo tranquilo, por mais que no Brasil tenha demorado muito tempo para decretar a abolição. Há inúmeros casos de violência, de revoltas, levantes ou outras formas de negociação empreendidas também por pessoas negras livres que também compunham boa parte da população nas cidades no Brasil a partir de 1850.

Eu queria saber o que mais te interessa hoje no uso da linguagem das histórias em quadrinhos? O que mais te atrai no uso da linguagem das HQs para contar uma história?

Eu ainda quero fazer uma narrativa praticamente sem falas, só com imagens. Eu adoro a possibilidade de contar histórias com imagens, de elaborar novos quebra-cabeças com o desenho, o texto, a composição do layout, símbolos e conceitos. E claro, ainda quero me desenvolver em relação ao meu próprio desenho e à minha forma de contar histórias.

“É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além do universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E quais HQs você acha que mais impactaram a produção de Mukanda Tiodora? Aliás, quais autores, artistas e obras de ficção estiveram mais presentes ao seu redor durante a produção desse trabalho novo?

Algumas obras serviram de inspiração. Por exemplo, A Infância do Brasil, do Zé Aguiar; os quadrinhos e as pesquisas do André Toral; o Província Negra, do Kris Zullo e do Kaled Kanour; o livro Avenida Paulista, do Luiz Gê, que inicia falando de uma São Paulo de séculos atrás. Essas foram apenas algumas narrativas que revisitei. E claro, nesse período, diferente do Angola Janga e Cumbe, já tinha à disposição alguns trabalhos em fotografia, de artistas como o Militão Azevedo. Essas fotografias de São Paulo, em 1862 e 1880, foram muito interessantes para compreender o crescimento da cidade nesse período.

A primeira vez que te entrevistei foi em 2013. Na época, você celebrou uma ampliação do “contexto temático das HQs” nacionais, mas disse ainda considerar “pequenas as iniciativas com temáticas mais sociais, que exploram os muitos universos de uma cidade grande a partir de personagens comuns”. Quase 10 anos depois, você vê mais iniciativas do tipo nas HQs nacionais?

Hoje eu percebo mais iniciativas nesse sentido. Mas, claro, é uma impressão. Pude acompanhar um pouco mais disso anos atrás. É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além desse universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas. Continuo achando que isso é essencial. Não é essencial apenas para falar, vamos dizer assim, de pessoas negras, indígenas, das mulheres e outras condições. É essencial para a própria continuidade das histórias em quadrinhos poderem mostrar todo o seu potencial para grande parte do público. A gente não vai conseguir isso se ficarmos restritos apenas a alguns tipos de formatos e narrativas. O público merece, ele precisa disso, assim como a linguagem dos quadrinhos precisa disso para sobreviver.

Lá em 2017, você me falou que seus 11 anos trabalhando em Angola Janga alteraram o seu “modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos”. Você teve alguma lição ou reflexão maior do tipo durante os anos em que passou trabalhando em Mukanda Tiodora?

Mukanda Tiodora é um livro para pensar em São Paulo, cerca de 150 anos atrás. Ele é relevante para repensar os diferentes espaços físicos, e mesmo simbólicos, em São Paulo, e como a cidade se transformou, bruscamente, nesses últimos séculos. 

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

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