Vitralizado

high quality https://www.iapac.to/ with swiss movement.

Posts com a tag Zarabatana

Entrevistas / HQ

Papo com Nina Bunjevac, autora de Terra-Pátria e Bezimena: “Sempre procurei maneiras de expor nossas semelhanças, não nossas diferenças”

As 160 páginas em preto e branco de Terra-Pátria narram parte da infância da autora canadense Nina Bunjevac. A obra é focada principalmente no choque de identidades e ideologias que culminou tanto na existência dela quanto na dissolução da Iugoslávia e nos conflitos bélicos nos Bálcãs nos anos 1990. Entrevistei a quadrinista e transformei esse papo em matéria para o jornal Folha de S.Paulo, noticiando o lançamento da edição brasileira da obra, pela Zarabatana Books, em tradução de Claudio R. Martini. Você lê o meu texto clicando aqui.

No meu texto para a Folha escrevi sobre o ponto de partida do livro, as reflexões de Bunjevac durante a produção da HQ e os paralelos entre a realidade vivenciada por ela na infância e a invasão russa à Ucrânia. Volto a deixar o link para a minha matéria e compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com a autora. Papo massa, saca só:

“O questionamento de uma herança ancestral permeou o zeitgeist da minha geração”

Quadros de Terra-Pátria, obra de Nina Bunjevac publicada pela Zarabatana Books (Divulgação)

Você poderia me contar, por favor, sobre a origem de Terra-Pátria? Houve algum ponto de partida ou incentivo em particular para o início da produção desse quadrinho?

Eu publiquei um conto chamado August 1977 no meu primeiro livro, Heartless, no qual encaro o legado de meu pai e o rejeito. Quando o livro foi lançado na Sérvia, essa história em particular recebeu várias resenhas, tanto na Sérvia quanto na Croácia. Um autor e figura cultural conhecida, Miljenko Jergovic, escreveu uma resenha brilhante e poderosa em um dos principais jornais croatas. Miljenko também foi um autor que lidou com o legado de sua avó paterna, implicada em crimes de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Logo aprendi que esse tema, o questionamento de uma herança ancestral, permeou o zeitgeist da minha geração, especialmente aqueles que cresceram na antiga Iugoslávia. Após a dissolução do país, nossas culturas individuais foram profundamente enraizadas em nacionalismo e tribalismo. ‘Ou você está conosco ou está contra nós’, passou a ser o lema do dia. Fazer um indivíduo deixar o coletivo e questionar o status quo – sejam seus ancestrais, seus líderes ou as autoridades da igreja – era visto como o maior dos pecados. As pessoas que fizeram isso foram incrivelmente corajosas. Terra-Pátria foi a minha contribuição para esta causa que, neste momento particular da história, se tornou uma questão existencial. 

Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

Foi na casa da minha avó, quando esbarrei com um quadrinho da [editora] Bonelli chamado Dr. No. Era uma versão em quadrinhos do filme. Cada página tinha dois quadros panorâmicos, um embaixo e outro em cima. Eu fiquei hipnotizada. Como tínhamos uma televisão em preto e branco, vi as duas coisas [quadrinho e filme] como uma só, eu devia ter quatro anos. Ainda assim, até hoje, me inspiro mais em filmes do que em quadrinhos. Os primeiros quadrinhos que comecei a comprar regularmente foram os quadrinhos de Carl Barks, publicados na [revista] Disney Digest e na Disney Almanac, lançadas semanalmente e quinzenalmente. A Iugoslávia tinha uma cena rica de quadrinhos. Jornaleiros e livrarias tinham em média cerca de dez publicações diferentes de quadrinhos, italianas, americanas e franco-belgas.

Tenho curiosidade em relação às suas técnicas e rotinas como autora. Com quais materiais você trabalha? Você tem alguma rotina em particular enquanto está trabalhando em uma HQ? Você teve alguma rotina em particular enquanto estava trabalhando em Terra-Pátria?

Minha rotina é muito simples e nada emocionante. Eu esboço, desenho e redesenho, escaneio, desenho outra vez, aí levo três dias para arte-finalizar cada página. Cerca de 40% do meu tempo reservado para os projetos é ficar sentada sem fazer nada, esperando a ideia certa, ou a resposta certa, vir à mente. É como pescar, mais do que qualquer coisa. Para fazer isso bem e ter um suprimento constante de ideias, passo longos períodos alimentando a mente, lendo livros, ouvindo podcasts e fazendo cursos online.

Você tem um traço muito pessoal e identificável. Como você chegou nesse estilo? Quais tipo de leituras e práticas a levaram a fazer quadrinhos e desenhar da forma como você faz quadrinhos e desenha?

Minha formação é em design gráfico e, depois, em artes plásticas. Antes de começar a desenhar quadrinhos, aos 30 anos, fazia pinturas a óleo, principalmente figurativas, e esculturas. Mudar para o Canadá aos 16 anos foi uma experiência traumática, pois não compreendia a língua, mas queria escrever. Naquela época, eu dava muita ênfase à língua, não à narrativa. Trabalhar com esculturas me parecia como um diálogo entre objetos e conceitos e, o mais importante, uma forma de contar histórias. Isso foi uma revelação para mim. Logo comecei a experimentar com quadrinhos, a fim de colocar em ação o meu contador de histórias interior. O estilo levou um tempo para se desenvolver. Eu acho que ainda está em desenvolvimento, e está constantemente sendo influenciado por filmes, livros, quadrinhos, arte.

“Se não fosse por minha avó, eu nunca teria me tornado uma contadora de histórias”

Página de Terra-Pátria, obra de Nina Bunjevac publicada no Brasil pela Zarabatana Books (Divulgação)

Terra-Pátria é não apenas sobre a sua família e sua infância, mas também sobre memórias, guerra, extremismos, ódio, amor, política e por aí vai… Fico curioso em relação à forma como você conciliou todos esses temas enquanto desenvolvia o livro. Foi desafiador para você administrar todos as experiências pessoas que você retrata no livro com todos os fatos e ocorrido históricos e políticos que também se fazem presentes na obra? 

Bem, antes de começar a trabalhar em Terra-Pátria fui convidada a participar de um workshop organizado pelo Center for Peace Studies de Zagreb e pelo Centre for Cultural Decontamination de Belgrado. O workshop se chamava Artists in Exile [Artistas em Exílio], e reunia artistas, autores e cineastas de ex-repúblicas iugoslavas, que fugiram da região por causa da guerra e se estabeleceram em outras partes do mundo. A experiência foi quase mística, compartilhando comida, histórias, músicas, chorando e rindo juntos. Apaziguou algo em mim. Até então, eu pretendia escrever com emoção e com um ponto de vista político definido. Depois dessa experiência, mudei meu ponto de vista para uma perspectiva mais pacífica, como uma contadora de histórias neutra, que expõe os fatos e conta com a inteligência do leitor para tirar suas próprias conclusões. Eu não queria usar sentimentalismo para manipular o leitor e não queria ofender ninguém. Sempre procurei maneiras de expor nossas semelhanças, não nossas diferenças.

Bezimena também é uma obra muito pessoal, mas que você optou por conta de forma completamente diferente de Terra-Pátria. Como você estabeleceu a forma como iria contar cada uma dessas histórias?

Comecei Bezimena sem esperar que ele chegasse em mim. Ou seja, não fui pescar como costumo fazer. Eu pretendia fazer um livro pornográfico, ou erótico, baseado em diferentes fetiches. No entanto, o livro, ou meu lado direito do cérebro, tinha outras ideias. Essas idéias me vieram inicialmente como sonhos, ou como ocorrências sincronísticas, que desenvolvi posteriormente por meio de exercícios de imaginação ativa. Um dos símbolos que surgiu foi o de Ártemis, e passei muito tempo contemplando isso. Ao longo de seu domínio sobre rios, portos, montanhas e caça, ela também é uma deusa que pune os predadores sexuais e protege as virgens. Bezimena tornou-se essencialmente uma releitura do mito de Ártemis, ou Diana, e Acteon.

Qual foi a recepção da sua família em relação a Terra-Pátria?

Ficaram todos satisfeitos e me apoiaram.

Você conta no livro como a sua avó era uma grande contadora de histórias e como você gostava de estar na companhia dela. O quanto essa relação com a sua avó influenciou a sua carreira como autora e contadora de histórias? 

Se não fosse por minha avó, eu nunca teria me tornado uma contadora de histórias. Eu costumava praticar a minha escrita escrevendo as memórias de guerra dela. Ela era uma criança-soldado e se juntou aos guerrilheiros iugoslavos aos dezesseis anos. E, poxa cara, como ela sabia contar uma história! Ela mantinha uma sala inteira sob seu feitiço!

Você começa o seu livro contando como as memórias da sua mãe são seletivas e como a memória da sua avó era boa. Como é a sua relação com as suas memórias?

Eu definitivamente me apego às minhas memórias. Às vezes, eu gostaria de poder apagar algumas Um dos desafios da minha vida é viver o momento, e me esforço muito para isso.

“Enquanto houver ‘eles’ e ‘nós’, teremos outra pessoa em quem projetar nossos demônios”

Página de Terra-Pátria, obra de Nina Bunjevac publicada no Brasil pela Zarabatana Books (Divulgação)

Terra-Pátria mostra como ódio e extremismos fomentam mais ódio e extremismos. Estamos vivendo em um mundo que parece cada vez mais extremista e cheio de ódios. Você vê muitos paralelos entre a realidade vivida pelo seu pai, a família dele e a sua família e a nossa realidade atual?

Acho que o que aconteceu na Iugoslávia foi apenas a amostra de monóxido de carbono que matou o canário. Estamos agora experimentando toda a explosão disso. O filósofo austríaco Rudolf Steiner teria chamado isso de “a guerra de todos contra todos”. Então, deve ser algo que vem da natureza humana, como agora está se manifestando globalmente.

Quais são as suas principais reflexões sobre a invasão russa à Ucrânia?

Um amigo meu, o astrólogo Ray Grasse, me enviou um artigo que escreveu em 1982, sobre a relação entre EUA e Rússia (na época União Soviética), que ele vê como a repetição da mesma dinâmica estabelecida pela divisão do Império Romano em as partes ocidentais e orientais, ou o Cristianismo no Catolicismo e na Igreja bizantina. Enfim, ele vê o mundo ocidental e os EUA representando o Império Romano do Ocidente e a Rússia representando o Império Romano do Oriente. Isso está enraizado em suas mitologias, costumes, seu senso de significado ou pertencimento. Ambas as contrapartes são expansionistas e tendem a colonizar. Essa dinâmica ocorreu ao longo da história e durante a Guerra Fria. Eu tendo a concordar com isso, e o que estamos testemunhando agora [com a guerra na Ucrânia] é o mais recente na disputa global, entre as encarnações mais recentes desta divisão, a OTAN e a Rússia.

Você vê alguma relação entre a invasão russa à Ucrânia e a história que você conta em Terra-Pátria?

Com certeza. Em nenhum lugar estão as réplicas dessa divisão no Império Romano, e o Cristianismo em Catolicismo e Ortodoxia Oriental, tão evidentes quanto nos Bálcãs, já que a península balcânica tem sido uma fronteira histórica entre os dois. É tão irônico que todos parecem perder a mensagem dos Evangelhos: crer em Cristo é amar o próximo. Ivan Dominic Illich, padre católico romano, filósofo e crítico social, escreveu sobre como, nos primeiros séculos do cristianismo, cada casa teria um colchão extra pronto, um pedaço extra de pão e água, caso um estranho batesse à porta precisando de abrigo. A caridade, ou a crença em Cristo, era uma questão de escolha pessoal. Quando o cristianismo chegou aos Bálcãs, já havia se tornado romanizado, institucionalizado e expansionista; o poder de escolha e discernimento pessoal foi sacrificado perante às instituições. Misturar a mentalidade de tribo de guerra, com religiões institucionais impostas pelas culturas guerreiras dominantes, e a subsequente divisão do cristianismo em catolicismo e ortodoxia oriental, foi uma receita para o desastre. Então, irmão lutou contra irmão, porque um apoiou Roma, ou OTAN, e outro apoiou Constantinopla, ou Ortodoxia Oriental, ou seja lá o que for.

Lembro da primeira vez que li o Palestina do Joe Sacco. Eu era muito novo e fiquei com a impressão que faltava uma página no fim da minha edição, porque era um final muito abrupto. Depois compreendi o ponto dele: são conflitos que não acabaram e não tem um fim em vista. O final de Terra-Pátria não chega a ser tão abrupto quanto o de Palestina, mas fiquei com a mesma impressão de não ter acabado. Os conflitos em torno da realidade da sua família também não parece ter chega ao fim. Essa leitura faz sentido para você? 

Totalmente. Isso continua acontecendo porque continuamos recontando a mesma história várias vezes. Enquanto houver “eles” e “nós”, teremos outra pessoa em quem projetar nossos demônios, em vez de nos voltarmos para dentro. Mas para conhecer a si mesmo adequadamente, é preciso separar-se do coletivo, física ou espiritualmente, e isso pode ser um processo muito doloroso para a maioria das pessoas.

“Acho que os leitores brasileiros vão entender meu trabalho. No fundo, somos todos iguais”

Página de Terra-Pátria, obra de Nina Bunjevac publicada no Brasil pela Zarabatana Books (Divulgação)

Fico curioso em relação à sua visão de mundo no momento. O Trump era o presidente dos Estados Unidos até outro dia e Bolsonaro – provavelmente mais estúpido, xenófobo, conservador e pior de todas as formas que Trump – é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você consegue ser de alguma forma otimista em relação ao nosso futuro? 

Muitas vezes penso em algo que Peter Ouspensky, o filósofo e místico russo escreveu em seu livro In Search of the Miraculous. O livro é um relato abrangente e extenso das idéias do professor de esoterismo grego armênio Georges Gurdjieff. O texto em questão vem das reflexões de Gurdjieff sobre a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Ele afirma que, em tempos em que grandes civilizações caem, as pessoas se tornam como autômatos, rejeitam o conhecimento e são facilmente manipuladas por seus líderes através do medo. Nesses momentos, escreveu Gurdjieff, o planeta reage a padrões psíquicos negativos e provoca mudanças climáticas. Isto foi escrito em 1915. Sinceramente, não vejo esperança, a menos que os indivíduos saiam da colméia e comecem a pensar por si mesmos.

Ainda sobre o Brasil: quais os seus sentimentos ao ver o seu trabalho publicado em um país como o Brasil? Você fica curiosa em relação à forma como seu livro vai ser lido e interpretado em um contexto tão diferente do seu?

Fico extremamente feliz por ser publicada no Brasil, e fiquei extremamente triste que a pandemia de COVID-19 começou quando eu planejava para participar de um festival por aí. Eu estava animada para conversar com as pessoas, aprender mais sobre as suas culturas e apenas respirar seu ar. Acho que os leitores brasileiros vão entender meu trabalho. No fundo, somos todos iguais.

Você pode recomendar, por favor, algo que está lendo, ouvindo e assistindo no momento?

Gostei muito do Ethos, minissérie turca da Netflix. Belo texto, especialmente para os conhecedores das ideias junguianas. Ouço regularmente o podcast This Jungian Life, apresentado por analistas junguianos que também são amigos. Recentemente, re-assisti alguns dos meus filmes favoritos. Dois me pegaram com mais força do que antes: Il Decameron, de Pasolini; WR Mysteries of The Organism, de Dusan Makavejev; e Seven Beauties, de Lina Wertmueller. Sempre recomendo esses.

Você está trabalhando em algum projeto novo no momento? 

Agora estou trabalhando em um quadrinho mudo de 25 páginas, inspirada em [Frans] Masereel, para uma editora francesa. Deve ser publicado em outubro deste ano.

A capa de Terra-Pátria, obra de Nina Bunjevac publicada no Brasil pela Zarabatana Books (Divulgação)
HQ / Matérias

Nina Bunjevac fala sobre família, pertencimento, guerra e Terra-Pátria

Conversei com a quadrinista canadense Nina Bunjevac sobre Terra-Pátria, obra recém-lançada em português pela Zarabatana Books (com tradução de Claudio R. Martini). O álbum conta a história da família da autora e a juventude dela na antiga Iugoslávia. A HQ é centrada principalmente na vida do pai dela, membro de um grupo nacionalista sérvio, e da avó materna, sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e apoiadora do então presidente iugoslavo Josip Broz Tito (1892-1980). Bunjevac falou comigo sobre família, memória, pertencimento e guerra. Transformei essa entrevista com a artista em matéria para a Folha de S.Paulo e você lê o meu texto clicando aqui.

HQ

Uma conversa com Carlos Neto sobre Fugir – O Relato de um Refém e os quadrinhos de Guy Delisle

Já escrevi por aqui como Fugir – O Relato de um Refém é um dos melhores quadrinhos publicados no Brasil em 2018. Eu entrevistei o autor da obra, o canadense Guy Delisle, e escrevi sobre a HQ pro UOL. Agora sentei para conversar sobre o álbum com o Carlos Neto, editor do canal Papo Zine. Chamamos atenção para o que consideramos de mais interessante na HQ e apresentamos algumas relações entre Fugir e trabalhos prévios de Delisle. Papo massa. Dá o play:

Entrevistas / HQ

Papo com Guy Delisle, o autor de Fugir – O Relato de Um Refém: “Você não sabe o que faria em uma situação tensa que nem aquela”

Fugir – O Relato de Um Refém é o mais recente trabalho do quadrinista canadense Guy Delisle publicado em português. Eu escrevi sobre a obra lançada por aqui pela Zarabatana Books para o portal UOL. No texto eu apresento algumas aspas da minha entrevista com o autor, tratando principalmente do processo de adaptação para quadrinhos do relato do trabalhador humanitário francês Christophe André sobre seus 111 dias como refém de uma milícia no Cáucaso no ano de 1997. Com 432 páginas, o livro oferece uma experiência de leitura angustiante, sempre propondo ao leitor possíveis questionamentos em relação a quais escolhas ele faria no lugar do protagonista da HQ.

Quinto livro de Delisle publicado no Brasil, Fugir é o primeiro não protagonizado pelo autor. Ao contrário dos diários de viagem Shenzhen – Uma Viagem à China, Pyongyang – Uma Viagem à Coreia do Norte, Crônicas Birmanesas, Crônicas de Jerusalém e do bem-humorado Guia de Um Pai Sem Noção, Delisle se faz presente apenas na primeira página de Fugir, entrevistando Christophe André. Ainda assim, após ambientar seus trabalhos mais conhecidos em locais com governos ditatoriais ou conhecidos pelas restrições impostas aos seus cidadãos, Fugir soa como o mais recente capítulo de uma série sobre pessoas em contextos de falta de liberdade – tópico obrigatório para um Brasil em meio a uma disputa presidencial protagonizada por um candidato militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista.

Recomendo demais a leitura de Fugir – O Relato de Um Refém e da minha matéria sobre o quadrinho para o UOL. Depois volte aqui e leia a íntegra da minha entrevista com Delisle, conversa muito interessante sobre a construção de sua HQ mais recente, a dinâmica de seu trabalho com Christophe André e as reflexões que vieram à mente dele enquanto desenvolvia o álbum. Com vocês, papo com Guy Delisle:

[A entrevista a seguir foi traduzida pelo jornalista, crítico, pesquisador e tradutor Érico Assis. Valeu pela ajuda, Érico!]

“Tínhamos que transformar isso em história em quadrinhos. E ele falou: ‘Claro, por que não?'”

Você lembra do momento em que teve a ideia de contar a história do Christophe André em HQ? Aliás, você lembra como a mídia francesa noticiou essa história?

Eu tinha lido o diário de Christophe no jornal e depois tive oportunidade de encontrá-lo num dia que ele estava com amigos da Médicos Sem Fronteiras, que me avisaram: ‘Ele vem almoçar conosco.’ Como eu já conhecia a história, comecei a fazer perguntas, mas pensei que uma pessoa que tivesse passado por uma experiência daquelas não ia gostar de contar. Fui pensando: que trauma, ele não vai falar muita coisa. Só que, na verdade, ele foi muito aberto. Contou a história inteira a todos nós, com detalhes, e aquilo foi tão fascinante que eu pensei: Uau, tínhamos que transformar isso em história em quadrinhos. E ele falou: ‘Claro, por que não?’ Levei bastante tempo, mas desde ali, desde o princípio, eu percebi que embora a maioria das pessoas que é sequestrada não goste de contar a experiência, esse cara era diferente porque ele tinha fugido. Como ele mesmo disse: ‘Fugir é a melhor terapia’. Por isso ele não se sentia vítima nem nada do tipo. Se sentia inclusive mais forte que antes do sequestro. Por isso que não tinha problema em contar.

Você poderia falar um pouco da dinâmica do seu trabalho com o Christophe André? Como ele recebeu a sua proposta de transformar a história dele em quadrinho?

Passamos só um dia juntos, mas ficamos em contato durante os 15 anos que eu levei para fazer o álbum. Ficamos muito amigos porque temos muito em comum. Acho que é por isso que o quadrinho está aí, pois de outro modo acho que teríamos perdido o contato. A partir da gravação eu fiz várias anotações, coloquei em ordem e comecei a trabalhar. Eu enviava as páginas pra ele, pois foi a primeira vez que coloquei palavras na boca de alguém e no começo achei muito difícil. Ficava pensando: o Christophe vai ter que ler isso aqui. Se não eu vou ficar num bloqueio constante. Então eu fazia 10 ou 15 páginas, enviava pra ele, ele me dava um retorno e eu seguia adiante. Eu não queria que ele tivesse surpresas negativas no final, quando recebesse o livro. Queria que ele soubesse o que estava no livro e concordasse com tudo.

“Um amigo tirou fotos minhas seminu na cama e no chão, que na época deu uma sensação muito esquisita, mas ajudou bastante porque optei por um desenho mais realista que o meu normal”

Uma grande diferença entre o Hostage e os seus livros de viagens é que você não teve a experiência de estar presente no local em que a sua história é ambientada. O processo de criação desse livro foi muito diferente desses outros? Você usou muitas referências fotográficas? Como decidiu o que desenhar?

Bom, a maior parte do livro se passa em uma sala onde não tem nada, e isso é bem fácil de desenhar. No resto, tirei fotos de mim mesmo amarrado a um radiador no meu estúdio. Tenho algemas que comprei porque sabia que era uma coisa que ia desenhar por 400 páginas. Um amigo tirou fotos minhas seminu na cama e no chão, que na época deu uma sensação muito esquisita, mas ajudou bastante porque optei por um desenho mais realista que o meu normal. Foram boas referências. Depois disso, quando ele foge e estamos na Chechênia, procurei imagens vilarejos na Inguchétia e na Geórgia porque na internet, quando se procura Chechênia, só se encontra lugares fechados, nada externo.

Você poderia falar um pouco das suas técnicas?

Desenho tudo no papel e depois escaneio. Eu desenhava em folhas avulsas em vez de ter uma prancha final, porque queria chegar no aspecto de rabisco. Não apagava nada. Saía desenhando e ficava com o que me deixasse satisfeito, e no fim do dia escaneava tudo e deixava a montagem da página para depois, no computador. Sombreamento e tons de cinza também foram no computador. Ou seja, metade do dia era desenhar e escrever, isso pela manhã. Aí no fim do dia eu escaneava e montava. Em um dia normal de trabalho, costumo fazer uma página.

“Christophe dizia: ‘Com uma pressão dessas, você vira uma pessoa bem diferente.'”

Mesmo não tendo tantas variações de cores, Hostage é o seu livro mais colorido, certo? Como você chegou nessa paleta específica de tons azulados e cinzas?

O desenho é simples, as cores são simples. Ele me dizia que ficou numa penumbra cinzenta. Não havia luz total no quarto. Era sempre meia luz, o tempo todo. Então resolvi mostrar isso com variações de cinza e um tom de azul. Foi isso.

Eu acho que o maior mérito do livro está em colocar na cabeça do leitor a dúvida do que ele faria no lugar do seu personagem. Você costuma especular sobre o que teria feito no lugar do seu protagonista?

Não sei. Christophe dizia: ‘Com uma pressão dessas, você vira uma pessoa bem diferente.’ Ele é um cara bem tranquilo e, quando pensa no que fez, é uma coisa que vai quase além da imaginação. Mas ele fez. E, como ele diz, você não é mais o mesmo. Você vira outra pessoa. Ou seja, você não sabe o que faria em uma situação tensa que nem aquela.

O quadrinho saiu em inglês como Hostage e em francês como S’Enfuir. Você que decidiu as duas versões do título? Aliás, foi difícil determinar qual seria o título?

Só escolhi o título em francês e deixei os outros a cargo de cada tradutor.

Os seus livros tratam principalmente de liberdade e de locais nos quais ela tem alguma restrição. O mundo está cada mais conservador e hostil em relação a liberdades individuais. O que você pensa sobre isso? Você é pessimista ou otimista em relação ao nosso futuro?

Depende do dia.

Entrevistas / HQ

Papo com Fabio Zimbres, coautor de Música para Antropomorfos: “Partimos do zero para criar uma coisa que não sabíamos o que era”

Rola hoje (23/8) aqui em São Paulo o primeiro evento de relançamento do álbum Música para Antropomorfos, HQ assinada pelo quadrinista Fabio Zimbres e pelo grupo Mechanics. O evento está marcado para começar às 18h, na loja da Ugra (Rua Augusta, 1371, loja 116), e contará com a presença de Márcio Jr., vocalista do Mechanics e um dos coautores do projeto. Eu estarei por lá pra mediar essa conversa com o quadrinista/músico, que depois participará de uma sessão de autógrafos. Você encontra outras informações sobre esse relançamento na página do evento no Facebook.

Eu escrevi sobre esse relançamento de Música para Antropomorfos pela Zarabatana Books para o caderno de cultura do jornal O Globo. Na matéria eu conto a trajetória do livro até aqui e falo sobre o desenvolvimento da obra, um clássico moderno das HQs brasileiras. Ontem eu publiquei por aqui a íntegra da conversa com Márcio Jr que deu origem ao meu texto e agora eu compartilho a minha entrevista com Zimbres. Então faz assim: leia o meu texto, leia a entrevista com o Márcio Jr., retorne para essa aqui com o Fabio Zimbres e apareça no evento de hoje à noite. Combinado?

“Era mais ou menos como se aquela música fosse trilha de algum filme, por exemplo. Eu ouvia a música e, com os olhos fechados, imaginava o que podia estar acontecendo”

Você lembra do convite do Mechanics para entrar no projeto que viria a ser o Música para Antropomorfos? Como você recebeu essa proposta?

Eu não tinha uma ideia definida de como seria o trabalho em si. Geralmente eu gosto desse tipo de proposta, você meio que sai do normal. Justamente por não saber exatamente que tipo de coisa seria, era mais atrativo ainda. Estávamos partindo do zero para criar uma coisa que não sabíamos o que era. E eu também gosto de me envolver com música, então existia esse outro atrativo.

A proposta do Márcio foi: ‘O Mechanics tem um disco novo e eu quero misturar com quadrinhos de alguma maneira, não sei como’. Ele deixou aberto para que eu imaginasse o que poderia ser isso. Eu perguntei se era um disco que vinha em um encarte. Aí ele disse: ‘Não. Pode ser isso, pode ser outra coisa, pode ser o que você imaginar. Pode ser o contrário, um livro que vem com um disco’. Então tava bem aberto no começo e eu achei isso legal. Na verdade, aos poucos a ideia foi se formando e virou um livro. Eu nunca tinha feito nada perto de uma graphic novel, com várias páginas. Uma vez que achamos um caminho as coisas foram se juntando aos poucos, a maneira de usar a música, como integrar o quadrinho com o disco, essa coisa de ouvir a faixa e ir imaginando alguma coisa e tal… Isso tudo foi sendo feito aos poucos, só a partir do momento em que eu pensei que poderia ser mesmo um livro autônomo, tipo uma graphic novel. A estrutura das faixas transformadas em capítulos foi mais ou menos o ponto de partida que orientou como fazer o resto.

“Os diálogos e os personagens foram surgindo em função da necessidade. Existia um certo improviso que é muito presente em tudo o que eu faço”

Você pode contar um pouco sobre a dinâmica de produção do quadrinho? Você já tinha em mente uma história que queria contar antes de dar início ao livro ou veio tudo enquanto você ouvia as músicas?

Eu acho que teve um pouco das duas coisas. O processo mesmo era ouvir faixa por faixa e imaginar uma relação entre imagens e músicas. Era mais ou menos como se cada música fosse trilha de algum filme, por exemplo. Eu ouvia a música e, com os olhos fechados, imaginava o que podia estar acontecendo ali. Muitas vezes eram paisagens, desertos ou qualquer outra coisa. Eu conseguia imaginar aquela música como trilha para algo que estava rolando, uma câmera se movendo em algum lugar. A partir da música eu imaginava um clima e dentro daquele clima uma história se desenrolando. Eu não tinha uma história ainda, eu tinha uma série de imagens abstratas ou soltas, que não significavam muita coisa, apenas o que a música me sugeria. Daí eu anotava essas ideias que vinham em cada faixa.

Ao mesmo tempo, eu tinha uma série de coisas anotadas ou na minha cabeça a respeito de ideias que poderiam virar histórias. Há um tempo que eu vinha lendo as histórias do Hércules na mitologia grega e pretendia aproveitar certas trechos como tema para uma história em quadrinhos. Também queria trabalhar com aparições inexplicáveis – ao longo do livro ocorrem várias aparições inexplicáveis que mudam o rumo da história. Eram coisas que estavam mais ou menos na minha cabeça, como essa ideia dos robôs, meio de ficção científica, mas que não tinha nada a ver com o trabalho em geral, a ideia de um monte de gente vivendo dentro desses robôs. Em geral eu faço coisas meio intimistas, personagens pensando consigo mesmo, e eu queria que essa história, tendo algo a ver com rock, fosse mais pop, mais próxima de uma aventura, mais próxima de algo de ação do que as histórias que eu costumo fazer. Então eu estava empurrando pra ficção científica. Essa ideia de que um robô poderia abrigar várias pessoas acabou caindo bem.

Eram coisas que eu ia pensando e juntando com histórias abandonadas e consegui achar um espaço pra elas dentro de cada capítulo. Eu tinha a ideia da estrutura, com capítulos mais ou menos independentes que construíam uma ideia única, como um romance formado por contos. Pra esses contos eu tinha uma ideia geral e ao longo do tempo fui criando uma espécie de plot. Eu sabia o que poderia acontecer naquele conto, mas eu realmente fazia no momento em que sentava e ‘bom, vamos fazer esse capítulo agora’. Os diálogos e os personagens foram surgindo em função da necessidade. Existia um certo improviso que é muito presente em tudo o que eu faço. Eu geralmente imagino uma coisa geral na minha cabeça, começo a desenhar e as coisas vão surgindo.

Então apesar de ter uma estrutura que eu fui criando e orientando pra fazer essa espécie de romance, na hora de sentar e produzir ainda tinha muito espaço pra improvisar. Surgiu das músicas, das ideias bastante abstratas que elas me sugeriram, e coisas um pouco mais concretas em termos de ação foram sendo estabelecidas aos poucos. O resultado final ainda teve um input de criar ali na hora, diálogos e mudanças de plot que acabavam surgindo no momento de desenhar.

“Eles me pressionaram, ‘Pô, tá demorando’. Acho que levei uns três anos pra fazer o livro, uma coisa mais ou menos do meu ritmo. Imaginando um livro tão grande, três anos tá bom até”

Em qual momento você apresentou para banda o que havia produzido? Você já estava com o quadrinho finalizado?

Desse detalhe eu não me lembro. No momento que surgiu a ideia de ser essa espécie de romance, eu falei: ‘Ó, quero fazer um livro, vão dar umas 10 páginas por capítulo, com umas cento e tantas páginas, é isso que tô imaginando’. O Márcio deu liberdade total, eu não tinha dado nenhuma ideia prévia e ele topou na hora. ‘Ah, beleza, se é isso que você quer fazer, vamos fazer, não se preocupa se dá pra fazer, se temos dinheiro ou não’. Ele tinha a estrutura das músicas e eu fiz a minha primeira ‘leitura’ delas, a partir da qual eu anotei algumas palavras-chave. Eu devolvi essas palavras-chaves pra eles terminarem as letras, que surgiram dessa minha viagem inicial nas músicas. As letras só foram completadas depois, a partir dessas ideias meio genéricas que eu tive.

Era uma coisa meio paralela, eles sabiam o que eu estava fazendo, mas não me lembro quando apresentei alguma coisa para eles. Acho que foi só quando eu terminei tudo. Não sei se eu gostaria de mandar em pedaços. Depois eles iam começar a criticar, então… Talvez eu tenha mandado o livro todo pronto, não tenho certeza se fui mandando aos poucos, acredito que não. Até por eu não ter começado pelo capítulo um, comecei pelo segundo e queria fazer o primeiro já imaginando um pouco o que ia acontecer nos outros, por ser uma história meio cíclica. Iam ter coisas do capítulo um que eu precisaria referenciar em trechos que eu não havia desenvolvido ainda. Com certeza não fui mandando capítulo por capítulo, mas eu não me lembro realmente do processo. Eu lembro que demorou muito. Eles reclamavam, o disco já estava pronto e eles se dedicaram bastante em termos de produção, fizeram a mixagem, já tava pronto e eu ainda tava no meio do livro. Eles me pressionaram, ‘Pô, tá demorando’.

Acho que levei uns três anos pra fazer o livro, uma coisa mais ou menos do meu ritmo. Imaginando um livro tão grande, três anos tá bom até, e não era uma coisa que eu podia me dedicar o tempo todo. Eu fazia nos intervalos. A minha parte demorou bastante. Tô chutando três anos, mas talvez tenha sido mais. Realmente demorou e acho que só mandei o final. Eu prefiro assim. Se você mostra aos pedaços, as pessoas começam a imaginar coisas, a sugerir, e eu gosto de ter liberdade de fazer e mudar.

Eu queria saber mais sobre a sua relação com as músicas. Como foi criar a partir de trabalhos tão abstratos como essas músicas sem letras?

O ponto inicial foi imaginar como se fosse um filme. A música era a trilha de alguma coisa e essa coisa poderia ser qualquer coisa. Eu fechava o olho e via um deserto e uma câmera se movendo nele como se fosse um carro. Ou então um quarto ou uma pessoa morta. Cada faixa era como se fosse um mini-trilha pra um curta. Pelo menos nesse primeiro momento eu não estava muito preocupado com uma certa unidade. Eu pulava de curta pra curta e achava alguma coerência entre a música que eu ouvia e a imagem que eu estava vendo. Uma coisa sugeria a outra. Tinha uma certa unidade com as faixas, mas eu sabia que no final das contas queria ter peças de uma coisa maior. De certa forma, fui ouvindo e forçando a barra pra que certas faixas se comunicassem.

Eu inclusive mudei a ordem das músicas. Eles me mandaram numa certa ordem e não sei se era a ordem que eles já tinham previsto pro disco. Eu ouvi e anotei aquelas ideias e percebi que mudando um pouco a ordem poderia criar essas peças que via como um conjunto. A parte abstrata, a música, acabou entrando assim, imaginando como filme, como cinema. Depois da atmosfera e do clima, eu fui imaginando personagens e ações que poderiam estar ocorrendo dentro desse contexto. As ações foram sugeridas por esse ambiente, que foi sugerido pela música. Aí nessas ações entraram essas ideias prévias que eu tinha a respeito do Hércules e coisas que eu gostaria de desenhar, como um robô andando em um cenário destruído e coisas assim, bem abstratas, bem abertas e que eu tinha vontade de desenhar. Eu tinha que imaginar que tipo de história está ocorrendo por trás disso que justifique um robô passando por um robô destruído. São coisas que fui juntando na cabeça e dando forma aos poucos.

Qual a origem dessas referências que você fez à história do Hércules?

Eu procurei os textos clássicos sobre ele. Os textos clássicos que descreviam as aventuras e os trabalhos dele, sobre a relação dele com Hera – de onde veio o nome dele, Herácles vem de Hera, a mulher de Zeus. A Hera perseguiu o Hércules, o atormentou a vida inteira por ciúmes, por ele ser o filho de Zeus com uma mortal. Ele vive uma série de situações interessantes, até a morte dele, uma espécie de… Bem, não chega a ser um sacrifício. No Música o personagem cai do robô que tá voando, fica em chamas pelo atrito com o ar e cai num poço de petróleo. E o Hércules originalmente morreu com um unguento que queimou a pele dele. Ele foi pro Olimpo sem a pele, ardia tanto que ele mesmo arrancou.

Eu não fazia questão de fazer uma descrição tão literal das coisas. Eu gostava das histórias que aconteciam com ele. Tem um personagem no livro que é Hera, alguns dos trabalhos estão citados ali, esse final dele pegando fogo e tal. Isso tá no livro.

“São dois robôs, dentro de um robô eu usei um estilo de desenho, fora desse robô um segundo estilo, no segundo robô a mesma coisa, no interior um estilo e no exterior outro”

Você poderia me falar um pouco sobre as técnicas que utilizou no livro? Como você determinou a estética do livro e qual material utilizou?

Cada capítulo foi feito em um estilo. São seis distintos, mas existem quatro momentos que formam a estrutura. São dois robôs, dentro de um robô eu usei um estilo de desenho, fora desse robô um segundo estilo, no segundo robô a mesma coisa, no interior um estilo e no exterior outro. Tem um capítulo intermediário e um capítulo inicial que usam outros estilos também. Cada estilo eu fiz de uma maneira diferente. Em um eu desenhei a lápis e ampliei o desenho pra ficar bem estourado, em outros eu desenhei na mesma proporção que seria impresso, com caneta. Ah, tem aquele capítulo em homenagem ao Jack Kirby, que também não tá dentro dessa estrutura que falei, é um capítulo à parte, com outro estilo ainda, seria um sétimo. Nele eu usei um outro tipo de caneta.

De certa maneira eu usei vários estilos que já dominava, eu já tinha feito várias histórias usando aquele material – lápis ampliado com contraste aumentado, nanquim e pincel, nanquim e bico de pena, desenho com canetinha um pra um e caneta grossa pra fazer o Jack Kirby -, então tinha uma série de coisas que eu já tinha lidado antes, não inventei nada de novo. Na verdade, as histórias que têm o desenho muito miudinho, bem pequenininho, que se passam dentro de um segundo robô, eram uma coisa que eu não tinha feito antes. Quando eu cheguei nessa parte, como seria dentro do segundo robô, do SF, eu meio que empaquei, não sabia pra onde ir. Foi mais ou menos a primeira vez que fiz essa coisa de diálogo pesado e desenho muito pequenininho e miúdo. Mas a técnica de desenho era coisa com que eu já lidava há bastante tempo.

O quadrinho foi lançado há mais de dez anos e está ainda mais atual. São sociedades capitalistas e industriais em crise, com as populações locais sendo exploradas por um sistema e por governos ditatoriais. Você também fica com essa impressão que ele ficou ainda mais atual com o passar dos anos?

Sim. É difícil eu me classificar como um autor político. Eu nunca fiz charge política. Já me envolvi como eleitor ou como apoiador de uma política ou outra, mas não com o meu trabalho. Não como outros autores, como o Dahmer, por exemplo. O meu trabalho não se insere na política dessa maneira, não acontece. Mas eu tenho trabalhos que no final das contas acabam lidando com os temas que tenho na minha cabeça e muitos deles são políticos.

Tem a história do Apocalipse Segundo o Dr Zorg, o primeiro Minitonto, que foi republicado agora pela Fantagraphics [nota do editor: a HQ mencionada por Zimbres foi publicada no segundo número da revista NOW], com o pessoal dizendo que ainda é relevante, é coisa de 20 anos atrás. Em geral, cada quadrinho que eu faço é um projeto em que eu me envolvo, crio certas coisas novas e depois vou pra um próximo. Não fico muito tempo envolvido com nada depois de lançar. Sai e eu já tô mais ou menos indo pra uma outra coisa.

Quando eu li a introdução que o Gerlach escreveu, falando que no quadrinho tem um golpe, em que derrubam a rainha e matam ela… (risos) Ele ficou surpreso e eu fiquei ainda mais por essas coisas ainda reverberarem hoje em dia.

De certa forma, eu não sou uma pessoa pessimista, mas o meu trabalho, de certa maneira, é pessimista e o mundo realmente está piorando. É horrível ter razão nesse sentido. Você desenha uma distopia e essa distopia vai ser ultrapassada pela realidade que tá ainda pior, isso é horrível. Mas no final das contas, se você é pessimista e vê as coisas dessa maneira meio sombria, você não pode negar, tem que trabalhar aquilo, desenhar aquilo. O que não quer dizer que eu não tenha humor, que eu não brinque. Algumas pessoas até se referem ao meu trabalho como um trabalho de humor. De qualquer maneira, eu sou meio pessimista em relação às coisas e as coisas estão piorando mesmo…

Eu pensei exatamente nessas figuras ditatoriais do começo da história. Elas estão se proliferando na nossa realidade…

Sim, pois é. É um golpe mesmo, personagens matando pessoas que estavam anteriormente apoiando pra ocuparem o poder. Os objetivos deles são bem escusos e é isso que a gente vê hoje em dia. Quando o Gerlach comentou isso eu falei: ‘Na época eu achava que era só uma ficção científica’ (risos). Eu não tava fazendo um comentário de política na época.

E sobre esse interesse recente crescente no livro. Ele tem uma edição colombiana, certo?

Tá sendo organizada agora uma edição em Portugal, pela Chili com Carne. Já tem um tempão que eu tava falando de fazer na França, mas sempre acontece alguma coisa. A gente não consegue produzir, fica sendo adiado e ainda não chegou a rolar. Mas é legal que saiu em espanhol, uma língua que circula mais fácil que o português. Na Colômbia eles tinham interesse no meu trabalho e não sabiam muito bem o que fazer e eu tinha o livro já pronto. Eles acharam interessante começar uma relação fazendo uma coisa que já tava pronto, no caso o Música.

O livro já foi bastante comentado e falado, mas como não tem uma edição em inglês a disseminação é lenta. O desenho também é mais atraente pra quem curte essa coisa autoral, que gosta do Gary Panter e essas coisas do tipo. Mesmo as pessoas não sabendo do que se trata acham divertido, mas enquanto história precisa de uma tradução pra pessoa poder entrar nela. É um momento interessante, acho que tem uma certa confluência com o Música estar saindo agora e com essa história ter sido traduzida na Now #2. Saíram críticas comentando e o pessoal gostou, o editor ficou empolgado.

Na verdade, a carreira internacional do Música, se pode ser chamada de carreira, tá acontecendo agora. Na Colômbia foi publicado no ano passado, em Portugal deve sair no próximo ano. E acredito que ainda tenha alguma tradução pra rolar aí.

Mesmo aqui no Brasil, eu fico com a impressão que vai chegar em um público que sempre ouvir falar no livro, mas nunca leu.

É, a tiragem original foi pequena mesmo. O Márcio fez o que dava na época. Ele disse que ia sair e realmente saiu, mas não tinha tanta estrutura pra distribuir e aumentar a tiragem. Me lembro até que, como a encadernação era meio artesanal ele tinha um amigo dentro da gráfica, o amigo comprou a ideia e caprichou na produção. Eu tenho inclusive a impressão que ele tinha até mais páginas rodadas, mas não tiveram condição de montar e encadernar. Então foi uma coisa meio artesanal, feita na raça.

E o título? Quem definiu?

Fui eu que dei. Eu tava escrevendo e não tinha a mínima ideia. Demorei bastante pra achar um título que me agradasse. Daí ficou esse aí, mas foi uma das últimas coisas. Acho que a história já estava pronta. Demorou muito pra fecharmos.

Entrevistas / HQ

Papo com Márcio Jr., coautor de Música para Antropomorfos: “O que buscávamos era uma troca contínua no processo de criação”

Está marcado para amanhã (23/8), na loja da Ugra, aqui em São Paulo, a partir das 18h, o primeiro evento de relançamento de Música para Antropomorfos, álbum assinado pelo quadrinista Fabio Zimbres e pelos músicos da banda Mechanics publicado originalmente em 2007 e recém-retornado às livrarias pela editora Zarabatana Books. Eu estarei presente no evento para bater um papo com um dos coautores do projeto, o músico e também quadrinista Márcio Jr. Vamos?

Eu escrevi sobre o relançamento de Música para Antropomorfos para o jornal O Globo, contando a trajetória do livro, a dinâmica da relação entre Zimbres e o Mechanics durante o desenvolvimento do projeto e o produto final – um clássico moderno das HQs brasileiras. Eu recomendo a leitura do meu texto e, em seguida, a entrevista a seguir, uma conversa com Márcio Jr. sobre a jornada de Música para Antropomorfos até aqui. Prometo para amanhã a entrevista com Zimbres, contando a versão dele para essa mesma história.

“A atmosfera das músicas – sem letra – trabalhadas pelo Mechanics serviria de catalisador para a criação de uma HQ pelo Zimbres. O feedback do Zimbres, por sua vez, ajudaria a banda a definir o disco”

Qual a memória mais antiga que você tem dos conceitos que culminariam no Música para Antropomorfos/Music for Anthropomorphics? Você consegue lembrar da origem exata desse projeto?

É difícil precisar isso. Mas para entender o processo todo, tenho que ir ainda mais longe. Minha graduação é em Engenharia Civil. Entrei moleque na Universidade Federal de Goiás. 17 anos, cabaço de tudo. Era bom em matemática, passei de primeira no vestibular e tinha aquela mentalidade completamente infantil de fazer um curso que me garantisse financeiramente. Uma tolice de criança sem orientação. Meu lance sempre foi arte, música, quadrinhos, cinema. Terminei a faculdade em 1994 – ano em que montei o Mechanics. Em 1995, fui um dos criadores do Goiânia Noise Festival – atualmente em sua 24ª edição consecutiva. Tive uma loja de discos que reunia a nata da malandragem roqueira de Goiânia. Em 1998 fui um dos criadores da Monstro Discos – cujo primeiro título lançado é justamente um compacto do Mechanics chamado Sex, Rockets and Filthy Songs. Dava aulas de Matemática e Física em supletivos de 2º grau pra levantar uma grana e, no resto do tempo, me dedicava à Monstro e à banda. Quem conhece o rock alternativo brasileiro sabe o que a Monstro e o Goiânia Noise representam nacionalmente. Transformar Goiânia num pólo e referência para esta cena independente é algo de que me orgulho muito. Só que, passados cerca de dez anos, resolvi voltar a estudar – agora numa área mais próxima ao que eu já fazia. Queria pesquisar Rock e Quadrinhos, minhas maiores paixões. Parti então para um mestrado na Comunicação da UnB, já que em Goiânia, àquela altura, seria impossível lidar com esse tipo de objeto de pesquisa. O Mechanics, como banda, sempre teve a pretensão de lidar com hibridação de linguagens. O nosso primeiro álbum, Psycho Love (2001), já teve toda a concepção gráfica criada pelo Zimbres. Pensei então em radicalizar esse trânsito entre Rock e quadrinhos como a experiência empírica do mestrado. Foi aí que surgiu a ideia do Música para Antropomorfos. Na época, além da Monstro, eu tinha um outro projeto com dois amigos, os irmãos Thiago e Eliseu Xavier. Tratava-se de uma editora chamada Livros Voodoo. Lançamos, ali por 2005, a revista Voodoo!, que de certa forma antecipou essa coisa de publicação metida a besta, com impressão em pantone, páginas quádruplas, stêncil, etc. Zimbres também foi o astro da parada, com capa, entrevista e HQ inédita. Uma coisa que considero legal é que o Música foi o primeiro produto gerado no programa de pós-graduação em Comunicação da UnB.

O livro Música para Antropomorfos e o disco Music for Anthropomorphics saem em 2007. O seu mestrado de 2005 tem como título Histórias em Quadrinhos e Música Pop: Possibilidades de Interface. Qual a relação entre esse trabalho e o projeto que culminaria no quadrinho do Zimbres e no disco do Mechanics?

O lançamento oficial do Música foi em 2007 e ele foi justamente a experiência empírica do meu mestrado, que se dispôs a pesquisar as interfaces entre Rock e Quadrinhos. Me intrigava muito as razões pelas quais duas linguagens tão distintas (uma, gráfica e estática; a outra, sonora e efêmera) buscavam frequente diálogo. Uma coisa que a pesquisa revelou é que, além das capas de disco, o contato mais usual entre HQs e Rock se dá por dois caminhos próximos: a quadrinização de uma música; ou a transformação de uma HQ em canção. O que o projeto Música para Antropomorfos propôs foi algo de outra natureza. A atmosfera das músicas – sem letra – trabalhadas pelo Mechanics serviria de catalisador para a criação de uma HQ pelo Zimbres. O feedback do Zimbres, por sua vez, ajudaria a banda a definir o disco. Todo o processo criativo encontra-se registrado em um capítulo da dissertação que você mencionou. Em 2015, atualizei este capítulo – com todos os desdobramentos ocorridos no projeto desde então – e ele faz parte do livro que eu lancei, o COMICZZZT! Rock e Quadrinhos: Possibilidades de Interface.

“Existe uma autonomia possível na fruição do projeto: você pode ouvir o disco sem ler a HQ, e vice-versa. Mas seria impossível disco e HQ ser o que são sem a determinante interferência de suas contrapartes”

Eu tô aqui falando no “projeto Música para Antropomorfos/Music for Anthropomorphics” e “no quadrinho do Zimbres/no disco do Mechanics”, mas eu queria saber quais são as suas definições sobre isso tudo. Você chama de projeto? Que nome você dá pra essa empreitada conjunta? E o disco é do Zimbres tanto quanto o quadrinho é de vocês? Como partiu a decisão de como cada obra seria assinada? Aliás, você vê o disco e a HQ como obras autônomas ou é tudo uma mesma coisa?

Esta é uma questão interessante. A bem da verdade, nunca tentamos categorizar rigorosamente o projeto. Essa tentativa de encapsular a experiência proposta pelo Música para Antropomorfos/Music for Anthropomorphics é antagônica à sua própria natureza – híbrida, transmidiática e que lida com a dissolução de fronteiras entre linguagens. Havia, à época do lançamento, uma dificuldade em lidar com o material. Em uma loja (ou uma coleção), aquilo ficaria entre os livros ou entre os discos? Em uma revista, em que seção iriam resenhar o trabalho? De qualquer forma, era usual nos referirmos ao produto como disco/livro. Para mim, é um projeto que tem vários desdobramentos, como o COMICZZZT!, a exposição do Zimbres, os shows e agora o filme O Evangelho Segundo Tauba e Primal. Assinamos o livro como uma criação conjunta Zimbres/Mechanics – ainda que todos saibamos que ali o trabalho do Zimbres seja absolutamente preponderante. No disco ocorre o inverso, com uma predominância do trabalho da banda. Mas o álbum tem o Fabio creditado como co-autor de todas as letras. Como eu já disse, existe uma autonomia possível na fruição do projeto: você pode ouvir o disco sem ler a HQ, e vice-versa. Mas seria impossível disco e HQ ser o que são sem a determinante interferência de suas contrapartes. Esta foi a experiência proposta e levada a cabo. O nosso desinteresse em nomear e hierarquizar essa experiência diz muito de sua matéria-prima – móvel e, de certa forma, inclassificável.

Durante muito anos, antes que eu pudesse ler o Música Para Antropomorfos, sempre que ouvia o nome do quadrinho, pela sonoridade, eu pensava no Music for Airports do Brian Eno. Aí depois eu li o quadrinho e vi todo o peso da ambientação da HQ do Zimbres e no diálogo que vocês criaram entre as canções e o quadrinho… Enfim, essa ideia da Música Ambiente teve algum peso na origem do projeto?

O projeto Música para Antropomorfos jamais usou o conceito de música ambiente como referência. A ideia não era criar uma ambiência sonora para a leitura da HQ, tampouco criar uma narrativa em quadrinhos que materializasse imageticamente as músicas do Mechanics – que, por sua vez, nunca teve vocação para músicas incorporadas harmoniosamente a qualquer ambiente. O que buscávamos era uma troca contínua no processo de criação. As músicas – ainda sem letra, mas já com melodias vocais numa letra ininteligível – afetando a produção quadrinística do Zimbres; e seus desenhos, conceitos e páginas nos direcionando para uma formatação definitiva do disco. É possível ler o livro e escutar o álbum isoladamente – mas eles jamais seriam o que são sem processo de criação interdependente que existiu. Fruídos simultaneamente, o que se propõe são novas produções de sentido, nascidas dessa fricção.

De qualquer forma, ainda que o Music for Airports não fosse uma obra de cabeceira do Música para Antropomorfos/Music for Anthropomorphics, a abordagem do Brian Eno sempre foi um dos nortes da banda e, principalmente, do projeto. Aquela coisa da dissolução dos limites entre arte e ciência, ou ainda o processo criativo ao mesmo tempo cerebral e intuitivo sempre estiveram em perspectiva.

Você se lembra do seu primeiro contato com uma obra do Zimbres? Você pode falar um pouco sobre como foi o seu primeiro contato com ele? Como foi a recepção inicial dele para o projeto?

Acho que foi por intermédio da Animal, de longe a melhor revista que já existiu no Brasil – e não estou falando apenas de quadrinhos. O Fabio era uma das mentes por trás daquilo tudo, além de ser o principal artífice do MAU. Ali tinha aquele lance do Maudito Fanzine, que não só articulava os fanzineiros do Brasil, mas tratava os zines não como algo amador, mas como um veículo repleto de infinitas possibilidades. Tudo isso que vemos acontecendo hoje no Brasil, com publicações e feiras de zines sofisticados – e, em alguns casos, gourmetizados – nasce ali, com o Fabio. Sempre fui fã de sua estética e abordagem. Acho que é um artista sem igual no Brasil – e mesmo no mundo. Depois do final da Animal, acabei me aproximando dele. Distribuía a Coleção Minitonto aqui em Goiás e logo ele topou fazer a capa do Psycho Love. Quando pintou a ideia do Música, apresentei o projeto pra ele e, para minha sorte e felicidade, ele topou.

Que tipo de diálogo vocês mantiveram antes, durante e depois da produção do quadrinho e do disco? Você pode falar um pouco dessa dinâmica?

Trabalhar com o Fabio é um privilégio sem tamanho. Existe um diálogo aberto, tranquilo e fácil o tempo todo. Nada de atritos ou imposições. Em todos os projetos, o que acontece é buscarmos o melhor resultado para aquilo que estamos nos propondo. Já fizemos outras tantas coisas juntos. Convidei o Fabio para criar a arte de uma das edições do Goiânia Noise Festival. Ele participou da Voodoo!. Já compôs algumas exposições aqui. Já trouxe ele para oficinas e palestras. E temos este outro grande trabalho que é O Evangelho Segundo Tauba e Primal, onde foi responsável pela brilhante direção de arte – além de participar ativamente de diferentes aspectos do filme. O Evangelho e o Música foram trabalhos longos, complexos, difíceis de ser realizados. Mas a gente sempre chega ao fim. Acho que pela formação em Engenharia e pela experiência como produtor cultural, acabo por ter esse papel de catalisar e viabilizar o trabalho.

Como foram as suas primeiras impressões do que ele estava fazendo no quadrinho?

Eu fiquei absolutamente chocado! Era incrível ver o Fabio destrinchar as sonoridades que enviávamos e dar as mais improváveis respostas àquilo. Eu tinha algo em mente e ele surgia com perspectivas completamente diferentes. Desfrutei muito de todo esse processo.

Qual foi a recepção do público na época do lançamento? Foi difícil explicar pra imprensa e pros leitores a proposta do que vocês tinham feito? Quais a suas expectativas para esse relançamento?

A recepção, por parte da crítica, foi excelente. Por outro lado, os veículos mainstream – como a Rolling Stone e a Bravo! – não souberam como lidar com o material, por não ser possível classificá-lo de forma convencional. Em pouco tempo, a tiragem se esgotou e uma determinada parcela do público não conseguiu ter acesso a ele. As expectativas com o relançamento é que tanto o pessoal que não conseguiu o Música na época, quanto o novo público de quadrinhos surgido na última década possam ter o material em mãos. Acho que a obra continua tendo um caráter único, mesmo na diversidade do atual panorama de quadrinhos no país.

“O trabalho impresso do Fabio se aproxima muito do universo mais arrojado das artes plásticas. E o sujeito tem uma visão de mundo absolutamente idiossincrática. Suas narrativas são sempre inusitadas e improváveis, ainda que muito cerebrais”

Você atua em muitas frentes, sendo uma delas como roteirista quadrinhos. Como quadrinista, como você analisa o trabalho do Zimbres? O que você considera de mais singular nas obras dele?

Ele vai negar, mas a real é que o Zimbres é um gênio. Não tenho outro termo para me referir ao Fabio – e acho que muitos dos melhores quadrinistas do país vão concordar comigo. Para começar, tem a coisa da originalidade do desenho. Naquela suposta ‘feiúra’ existe muita sofisticação. De forma orgânica e nada pretensiosa, o trabalho impresso do Fabio se aproxima muito do universo mais arrojado das artes plásticas. E o sujeito tem uma visão de mundo absolutamente idiossincrática. Suas narrativas são sempre inusitadas e improváveis, ainda que muito cerebrais. Se engana quem acha que o que conduz o Zimbres é uma força intuitiva e puramente espontânea. Há muita pesquisa e racionalização naquilo que ele cria. Além disso, há sempre a experimentação com as linguagens às quais se dedica. Nos quadrinhos, por exemplo, o Fabio trabalha tempo e espaço de forma muito singular.

Hoje, mais de 10 anos depois do lançamento desse projeto, quais você considera os principais retornos e as maiores lições que tirou da experiência criando o Música para Antropomorfos?

Em cada projeto que realizo, meu foco é sempre o projeto em si. Não sou muito bom com esse lance de retorno. O que me move é realizar uma obra que tenha fim nela mesma. É claro que tento encontrar o público. Mas isso é outra coisa, depende de um conjunto de variáveis que fogem ao controle de quem cria. O Música para Antropomorfos foi um trabalho que consumiu anos de nossas vidas. Foi realmente difícil finalizarmos e concretizarmos o tal disco-livro. Mas sempre tive muito orgulho do que fizemos. O modo como o Música foi crescendo no imaginário das pessoas foi algo muito interessante de acompanhar. Também houve todos os desdobramentos do projeto, como o livro teórico COMICZZZT! e o filme O Evangelho Segundo Tauba e Primal. Esse, em particular, levou 12 anos para ser concluído desde que tive a ideia de fazer uma animação a partir do Música. E é outro trabalho do qual tenho o maior orgulho. Ou seja, acredito muito naquela máxima: ‘O que é feito respeitando o tempo, o tempo respeita’. Esta reedição da Zarabatana atesta isso, bem como a edição lançada em 2017 na Colômbia e as outras duas que estamos negociando com Portugal e França.

Nesses mais de 10 anos desde o lançamento do Música para Antropomorfos, quais você considera as principais mudanças pelas quais a cena brasileira de quadrinhos passou? Quais os principais avanços e retrocessos que você viu?

Esses dez anos testemunharam uma radicalíssima mudança na cena dos quadrinhos brasileiros. Acredito piamente estarmos vivendo o auge da nossa HQ, no que diz respeito à qualidade daquilo que é produzido. O quadrinho brasileiro contemporâneo está entre os melhores do mundo. Mesmo essa vertente mais ousada e experimental tem mostrado um vigor inaudito. Quando lançamos o Música ou mesmo a Voodoo!, publicações independentes com um design mais arrojado, experimental e artístico não eram nada comuns. De lá pra cá, as publicações têm ficado cada vez mais incríveis – e acho que temos nossa contribuição nisso aí. O que ainda falta é o acesso a um público mais amplo – o que tem a ver com questões estruturais da sociedade brasileira. É duro termos talentos tão geniais que não podem sobreviver exclusivamente de seu trabalho com quadrinhos.

Você vê algum diálogo entre a cena musical brasileira independente e a cena brasileira de quadrinhos?

Esse é um tema que me interessa demais – tanto que fiz um mestrado e publiquei um livro sobre ele. Resumindo, acho que um dos maiores problemas dos quadrinhos brasileiros foi sua dissociação de outras formas de linguagem, especialmente a música alternativa. Demorou a acontecer, por uma série de motivos, um do it yourself para nossos quadrinhos. Por décadas, tudo que os quadrinistas podiam almejar era alguma editora onde pudessem oferecer seus serviços. Esta coisa da auto-publicação, da distribuição independente e do associativismo é muito recente por aqui. Nestes dez últimos anos, o que vimos foi prioritariamente um boom deste fenômeno – que no Rock, mesmo o brasileiro, aconteceu bem antes. Uma experiência como a Ugra Press, por exemplo, não tem background nos quadrinhos, mas na cena punk. Agora, o curioso é o movimento inverso que tem ocorrido no Rock. O público não tem se renovado e o interesse pelo gênero é cada vez menor. Ou seja, quando nossos quadrinhos finalmente assumem uma atitude rock, o Rock perde interlocução com a juventude. São dinâmicas complexas.

O quanto você acha que o choque entre esses diferentes mundos em que você atua contribui para sua formação como artista?

Nunca gostei da ideia de uma formação unicamente especializante. Me interessa o trânsito constante entre diversos conhecimentos e linguagens. A lógica da ultra-especialização é uma lógica neoliberal, de mercado. Para arte e produção cultural, seus resultados são catastróficos. O que um quadrinista que só lê quadrinhos pode produzir senão uma HQ frágil e derivativa? O mesmo vale pra música, literatura, arte plásticas, etc. Por outro lado, tenho uma tendência a ficar entediado com facilidade. Fazer muitas coisas distintas (e não ter tempo pra mais nada) é uma forma de lidar com isso – ainda que não seja das mais inteligentes. Produzir continuamente é meu modo de dar sentido ao mundo e à vida. E é na diluição das fronteiras entre as linguagens que percebo a possibilidade de algo verdadeiramente instigante e, com um pouco de sorte, novo e diferente.

A nova edição de Música para Antropomorfos tem diferenças em relação à original?

A HQ não sofreu alterações, mas a edição traz sim algumas diferenças em relação àquela lançada em 2007. A primeira delas é o formato. O livro agora tem dimensões um pouco maiores, o que facilita seu posicionamento em livrarias. O original era do tamanho de um mangá – que foi uma proposta do Zimbres numa época em que os mangás ainda não haviam atingido a popularidade alcançada hoje. A capa também é diferente – e foi divertido acompanhar o processo de criação desta nova capa, com mais de uma dezena de versões. Por fim, o livro conta com um incrível texto introdutório do grande Diego Gerlach. Coisa fina!

Vocês também pretendem relançar o disco?

Uma das maiores mudanças ocorrida na última década foi a obsolescência, principalmente no Brasil, do CD como suporte físico para música. Quem ainda compra CDs? Parece que só eu mesmo. Então, decidimos não encartar o CD no livro – algo que também aconteceu com a edição colombiana. Quem quiser ter acesso ao álbum “Music for Anthropomorphics” basta dar uma conferida no site www.mechanicsband.com. Mas existe um projeto de relançar o disco em vinil, numa edição luxuosa, com um encarte maravilhoso feito pelo Zimbres. Estou trabalhando nisso e espero que até o final do ano tenhamos o material disponível. E também estamos pensando no Mechanics fazer shows executando o álbum na íntegra.

Quando foi feito a animação O Evangelho Segundo Tauba e Primal? Após a exibição em SP onde o filme estará disponível?

O filme foi produzido e dirigido por mim e pela Márcia Deretti (minha sócia na MMarte e na vida, já que somos casados), tem direção de arte do Zimbres e foi animado pelo monstruoso Wesley Rodrigues – o homenageado deste ano no Animamundi. Foram anos de trabalho – com alguns intervalos no meio, claro. O curta estreou recentemente, em junho, aqui em Goiás. Agora será exibido, ainda em agosto, nas mostras competitivas do 28º Cine Ceará e da 29ª Mostra Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo – dois festivais brasileiros muito tradicionais e importantes. A carreira do filme está apenas começando e espero que ele seja selecionado para diversos festivais mundo afora. Espero que rolem umas vendas para TVs também. No universo do cinema, a vida de um filme em festivais é de 2 anos. Depois disso, iremos disponibilizá-lo na internet. E o filme também fará parte do lançamento da nova edição do Música para Antropomorfos na Bienal Internacional de Quadrinhos de Curitiba.