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Posts por data maio 2020

Entrevistas / HQ

Papo com Panhoca, editor da revista Pé-de-Cabra: “A televisão nos permite sair da nossa bolha e ter contato com o Brasil de verdade”

Os trabalhos dos 44 artistas responsáveis pelas 108 páginas da revista Pé-de-Cabra tem como foco televisão. O curador e editor da publicação, Carlos Panhoca, disse ter escolhido o tema porque acredita que a TV permite acesso ao “Brasil de verdade”.

“O campo de batalha REAL, político e social, é todo ali”, diz Panhoca. “Presidentes tomam golpes, carreiras são arruinadas, Geisy Arruda é alçada ao estrelato. Tudo acontece ali”.

Lançada anualmente desde 2018, a revista teve a capa de sua edição de estreia assinada pelo francês Pochep, a capa do segundo número com arte de Emilly Bonna e agora a ilustração da capa ficou com Benson Chin, membro do coletivo O Miolo Frito.

Assim como fiz às vésperas do lançamento da primeira e da segunda edições, volto a entrevistar Panhoca. Falamos principalmente sobre o tema escolhido por ele para esse terceiro número, mas também sobre o impacto da pandemia na cena brasileira de HQs e sobre as investidas dele como entrevistador na série De Frente com Panhoca.

Compartilho a seguir os nomes dos artistas participantes da nova Pé-de-Cabra e, depois, a minha conversa com o editor. Ó:

Benson Chin, Bernardo França, Karina D’Alessandre, Fralvez (responsável pelo quadro que abre o post), Andre Nicolau, Victor Bello, Bruna MZF, Beatriz Shiro, Adriane Palmira, Renan Cesar, Fabio Lyra, João B. Godoi, Emilly Bonna, Señor Gualda, Moletom Fantasma, Arame Surtado, Bruno Nascimento, Mari Sori, Chico Feliz, Pietro Soldi, Guilherme Caldas, Olavo Rocha, Kellen Carvalho, Iara Darkka, Leonardo Prado, Paulo Patrocinio, Thiago Souza, Victor Stephan, Marco Viera, Pedro D’Apremont, Lobo Ramirez, Fabio Zimbres, Kainã Lacerda, Sama, Adriano Janja, Batista, Carambola, Eme Podre, Jadiel Jorake, Carlos Carcasa, Cynthia B., Braian Malfatti e Galvão Bertazzi.

Qualquer um que esteja assistindo De Férias com o Ex sabe o que o brasileiro pensa

Quadro da HQ de Fabio Lyra presente na Pé-de-Cabra #3

Queria começar dizendo que me sinto intimidado em entrevistar aquele que se tornou o maior entrevistador dos quadrinhos nacionais. Como tem sido para você a experiência como entrevistador na série De Frente com o Panhoca?

Hahahaha, são seus olhos, Ramon. Isso aí tem sido interessante. Na realidade a maior parte das entrevistas foram feitas em quatro dias, num momento de extremo tédio e pouca paciência de checar se os amigos estavam bem perguntando um por um “e aí, tudo bom?”. Paralelamente a isso, aumentou a quantidade de amigos que não são leitores assíduos de gibi nacional e me perguntavam por recomendações de leituras. Acho que funciona um pouco como divulgação e forma de mostrar que estamos relativamente bem.

E como você tá? Como a pandemia e o cenário político horrendo que estamos vivendo tão influenciando a sua rotina e a sua produção? Aliás, foi difícil para você optar por lançar a revista mesmo com a pandemia?

Cara, eu tô fodido, né? Eu pego pelo menos quatro ônibus por dia pra ir pro meu trabalho porque eu trabalho na cidade vizinha. Aqui em Curitiba eles reduziram a frota (?) pra evitar aglomerações. Aí quando me mandaram voltar pro trabalho eu pedi férias. Em algum momento isso vai acabar e eu vou ter que contar a sorte pra sobreviver à rotina. Mas voltando pra produção: eu fico em casa e desenho sempre que vem uma ideia boa (às vezes a ideia boa é ruim). Então o ritmo é bem maior, antes eu desenhava só na hora do almoço do meu emprego ou no ônibus. A decisão de lançar a revista no meio de uma pandemia é totalmente kamikaze, eu fico dependente unicamente de tentar vender a revista com postagens nas redes sociais. Não sei ainda se dessa vez ela vai se pagar. Espero que sim. Eu planejava vender toda a tiragem dela esse ano e fomentar as outras publicações e, quem sabe, realizar um sonho de ter um felino de porte grande no meu apartamento. Vamos ver o que tem por aí.

“UBA, UBA, UBA, Ê!”

Quadro da HQ de Kellen Carvalho presente na Pé-de-Cabra #3

Por que televisão como o tema dessa terceira edição?

Direto ao ponto: eu sou um viciado. Eu acho a televisão fascinante porque ela nos permite sair da nossa bolha e ter contato com o Brasil de verdade. A gente fala muito sobre furar a nossa bolha e não temos noção nenhuma da forma como a lavagem cerebral se dá com todos aqueles canalhas humilhando classes mais pobres em auditórios para reformar seus carros ou tunnar a sorveteria da família, etc. A televisão, assim como as equipes de vôlei, são instrumentos antropológicos extremamente subestimados como estudo de sociedade. Qualquer um que esteja assistindo alguma temporada de De Férias com o Ex sabe o que o brasileiro pensa e como ele se comporta. O campo de batalha REAL político e social é todo ali. Presidentes tomam golpes, carreiras são arruinadas, Geisy Arruda é alçada ao estrelato. Tudo acontece ali.

Nós dois temos mais ou menos a mesma idade, acho que grande parte da sua infância também foi nos anos 90, sendo o Gugu uma figura muito emblemática do imaginário televisivo brasileiro. A morte dele no final do ano passado pesou de alguma forma na escolha desse tema?

UBA, UBA, UBA, Ê!! hahahahahaha Eu não sei quantos anos você tem, mas eu to nos meus 30 já. O Gugu fez parte da infância desde os hits ridículos do Pintinho Amarelinho até toda a pornografia disfarçada de quadro vespertino. O tema já tinha sido escolhido na época da morte dele, mas acho que uma coisa acabou se mesclando à outra. Por algumas semanas todos nós falamos muito do Gugu. Eu tenho uma tatuagem do Gugu (do gibi, o Gugu Punk) na perna. O Gugu fez pela televisão brasileira algo que os outros não fizeram: ele extrapolou todos os limites da sanidade testando até onde o brasileiro acredita em qualquer merda que passe na televisão. A autopsia do ET de Varginha, a entrevista dos falsos membros do PCC, quando ele desenterrou o corpo de Dercy Gonçalves para verificar se ela realmente havia sido enterrada de pé. Eu acho isso tudo fascinante. Pra mim, foi como se eu tivesse perdido um amigo, um irmão.

“Costumo ver o Fofocalizando pra me antenar no mundo dos famosos”

Quadro da HQ de Pietro Soldi presente na Pé-de-Cabra #3

Eu queria saber sobre a sua relação com televisão. Quais foram os programas de TV que marcaram a sua infância? Quais são as suas séries preferidas? Você tem algum apresentador de TV preferido?

Eu adoro televisão. Quando eu era pequeno eu gostava muito de Supermarket, de O Mundo de Beakman, das propagandas do Walter Mercado e do Chaves. Hoje em dia eu costumo ver, sempre que posso, o Fofocalizando pra me antenar no mundo dos famosos e ver o programa do Rodrigo Faro, onde aprendo incríveis cantadas e conhecimentos para relacionamentos duradouros. Eu gostei muito da participação do João Kleber em A Fazenda, mas depois dele fazer propaganda pra Havan eu não consegui mais olhar para ele. De séries eu assisti recentemente todo o Bojack Horseman (série incrível, recomendo demais), eu assisto sempre que sai temporada nova Kobra Kai (que é uma continuação com os atores originais do Karate Kid, um dos melhores Sessão da Tarde existentes) e eu também vejo sempre que possível Largados e Pelados e Todo Mundo Odeia o Cris. Eu também vejo muito desenho animado. Os brasileiros tão apavorando agora. Um abraço pra equipe do Oswaldo e do Irmão do Jorel. E também não posso deixar de fora o De Férias com o Ex e defendo que Jhenyfer Bifão é a grande personagem televisivo dessa década.

Você anunciou a convocatória para esse terceiro número lá em dezembro, quando o coronavírus ainda tava mais ou menos limitado ao território chinês. A revista tá saindo em um momento em que as pessoas estão em quarentena (ou pelo menos não deveriam estar saindo de casa). A sua relação com a televisão mudou de alguma forma desde o início dessa realidade de isolamento social?

SIM. A gente pegou TV a cabo depois de trancafiados. Maratonei com minha namorada o Bojack Horseman e agora estamos viciados no Largados e Pelados. É fascinante como o ser humano consegue vencer grandes desafios na selva só com seus conhecimentos de sobrevivência. Frio, animais selvagens, parceiros veganos, insetos, eles mesmos… O ser humano é testado ao limite nessa série, você devia tentar, Ramon. Assistir a série no caso, não saia pelado no meio do mato.

“Sonhei que estava sendo entubado e o respirador era uma Iogurteira TopTherm”

Quadro da HQ de Arame Surtado presente na Pé-de-Cabra #3

O Pochep assinou a capa da primeira revista, a Emily Bonna fez a capa da segunda e o Benson assina a capa da terceira edição. Por que ele? Você passou alguma instrução ou direcionamento para o que queria?

Eu gosto muito do trampo de toda a rapeize d’O Miolo Frito. Acho uma das melhores revistas do gibi nacional. E a capa de uma revista é onde muita gente vai ter o único contato com ela. Se a capa não for boa, talvez não venda. Aí tu soma as cores vibrantes que o Benson usa nos trabalhos dele com as artes com bastante informação que ele faz. Acho que pesou as artes que ele fez pra loja Monstra em São Paulo e o postal que fez no aniversário de seis anos do teu blog. Aquela arte dele do ELE NÃO também foi a minha favorita da época. Acho que foi isso. Ou talvez eu esteja dando vantagem a ele por ser mais bonito que a maioria dos capistas brasileiros. Nunca saberemos.

Na época do lançamento da primeira edição você comentou como foi uma experiência muito mais complicada do que você esperava. No segundo número você falou do excesso de trabalhos enviados, da sua mudança e da briga com um vizinho. O que você pode contar da produção dessa terceira edição?

Porra, a gente acha que vai ficar cada vez mais fácil e cada ano que passa é mais complicado. Dessa vez tive de novo o problema de excesso de material bom. Eu tento não pensar muito nos trabalhos que não usei porque eu tenho realmente dúvidas se eu fiz a melhor escolha possível entre eles. Talvez essa versão da Pé-de-Cabra #3 não seja a melhor versão que eu poderia fazer com o que tinha em mãos, mas foram tantas versões nesse espaço de tempo que eu não quero revisitar esse mundo de stress e escolhas difíceis. Além disso eu tava bem estressado com o avanço do coronavírus no Brasil. Ficar martelando quadrinhos sobre televisão e informações sobre o corona em todos os intervalos da TV definitivamente não fez muito bem pra minha cabeça. Houve uma noite em específico que eu sonhei que estava sendo entubado e o respirador do hospital que eu estava era uma Iogurteira TopTherm. Esse tipo de coisa acaba com o dia de qualquer um. Você passa o resto do dia com a voz da Aracy na cabeça pensando em morte. Teve outra coisa complicada: o conteúdo da nossa TV é totalmente inadequado. A TV brasileira (a gringa também, mas tô fazendo um recorte aqui) é totalmente baseada na exploração do cidadão pobre e na ultrassexualização de absolutamente tudo, desde programa infantil até bandeirinha do futebol. É muito arriscada a escolha de materiais com essas temáticas sem dar corda ou moral pra esse lado. É aquele lance do humor ser um lance vetorial, tem de ver pra onde está apontada a piada. Você não vai rir do coitado que tá sendo explorado ali, você pode usar ele em histórias e mostrar o quão cuzão são os apresentadores ou o telespectador que vibra com essas coisas. Fora isso tudo, ainda tem o lance da diversidade: nós temos canais de ABSOLUTAMENTE TUDO e eu tentei fazer o maior apanhado de temas diferentes dentro da TV, para que a revista parecesse mesmo como se você fosse o jovem Carlinhos Panhoca indo para a casa da Vó Carmelina em São José dos Campos e tendo a sua primeira experiência com uma tv com um monte de canais a mais do que a da tua casa. Enfim, muita coisa, muita escolhas e poucas certezas.

“Fiquei bem feliz com a diversidade de temas explorados por todos os participantes”

Quadro da HQ de Marco Vieira presente na Pé-de-Cabra #3

Essa terceira Pé de Cabra é o sétimo título do selo desde o lançamento da primeira edição da revista. O quanto simplificou e facilitou para você o processo de edição e distribuição de uma obra desde a estreia da revista lá em março de 2018?

A gente fica mais esperto, mais ágil, com mais lábia e alguns quilos mais magro. O que não muda é a minha habilidade de fazer um pacote. Os pacotes continuam todos horrorosos, com muita fita desnecessária e formatos não convencionais.

E agora com a revista impressa, que balanço você faz entre o que tinha imaginado entre o instante em que escolheu o tema e agora que já tem a edição em mãos?

Ela é mais bonita do que eu esperava. Ela sempre fica mais bonita do que eu esperava. Eu fiquei bem feliz com a diversidade de temas explorados por todos os participantes. Uma gama incrível de entretenimento, desde final da Libertadores ao Roda Viva (PROGRAMA CHATO PRA CARALHO). A revista também tem dezoito páginas a mais do que o planejado. Não deu pra manter no tamanho da outra.

“Sou movido a grandes expectativas e esperanças que eu aprendi vendo televisão”

Quadro da HQ de Pedro D’Apremont presente na Pé-de-Cabra #3

O que mais te surpreendeu nesse número? Há algum trabalho específico impresso na revista que te marcou de alguma forma?

Eu me surpreendo com a quantidade de gente que publicou pela primeira vez na Pé-de-Cabra. 50% dos autores dessa edição nunca tinham participado antes. Além disso tive o prazer de publicar a primeira página de gente que nunca tinha publicado fora do Instagram. Isso dá uma satisfação bem grande. E ao mesmo tempo que sai material dessa galera dando uns primeiros passos na publicação tem ao lado gente consagrada como o Zimbres. Quanto a trabalhos específicos é difícil escolher porque no final eu escolhi todos ali porque gostei deles. Acho a HQ do Lyra um tapa na cara muito foda. Acho a HQ do Marco Vieira uma das mais bonitas da edição. O trabalho da Bruna MZF e a da Arame Surtado são muito bons também. Temos uma variedade de estilos e técnicas incríveis nessa edição.

“Em algum lugar do futuro o Marcos Pasquim está se preparando para voltar e nos salvar”

Duas páginas da HQ de Fabio Zimbes presente na Pé-de-Cabra #3

Você já tem em mente um quarto número da revista? Aliás, o quanto a pandemia afetou os seus planos para o selo? O seu planejamento para 2020 foi afetado de alguma forma por conta do coronavírus?

Olha, eu acho que dessa vez fodeu. A maior parte das minhas vendas são em feiras e lançamentos presenciais. Não sei se conseguimos recuperar dinheiro o suficiente para lançar a Pé-de-Cabra #4 em 2021, mas você que está nos assistindo aí em casa, você pode comprar uma AirFryer, um George Foreman Grill a menos no Polishop e fortalecer a gente pra continuar com a revista. É isso mesmo. E ligando agora mesmo você leva de brinde um sinceríssimo OBRIGADO, SENHOR CLIENTE. Mas voltando, ainda tem algum dinheiro em caixa e vamos torrar ele com outras publicações que pretendo soltar esse ano ainda. O próximo gibi, do Chico Felix, tá quase pronto. É um gibi em parceria com a Revista Prego e estamos só fechando uns últimos detalhes de logística antes de começar a mandar ver.

Você é figura constante nas feiras de quadrinhos e publicações independentes ao longo dos últimos anos e esses eventos são fundamentais para a manutenção desse cena de HQs na qual a Pé-de-Cabra está inserida. O quanto você acha que essa nossa atual realidade tende a impactar esse ambiente em um futuro próximo?  

Olha, é difícil imaginar. Eu particularmente fico na torcida por uma vacina já no começo de 2021. Sabe, Ramon, eu sou movido a grandes expectativas e esperanças que eu aprendi vendo televisão. Lembra dos estudos do Dr. Albieri em O CLONE? Lembra das previsões de Eugênio, o menino gênio de Os Mutantes – Caminhos do Coração? Lembra do Esteban do Futuro em Kubanacan? Eu acredito que a realidade imita a ficção e em algum lugar do futuro o Marcos Pasquim está se preparando para voltar e nos salvar.

A capa da Revista Pé-de-Cabra #3, com arte de Benson Chin
HQ

6ª (29/05), 18h: Panorama e perspectivas das HQs brasileiras no HQWeek

Vou participar às 18h de hoje (29/05) de uma conversa com o quadrinista Ricardo Coimbra e o jornalista Júlio Black da mesa Panorama e perspectivas dos quadrinhos brasileiros do evento HQWeek da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

O evento online e gratuito é organizado pelo Laboratório de Mídia Digital da UFJF e tem como proposta debater o uso de tecnologias em histórias em quadrinhos e refletir sobre a presença de HQs no ambiente acadêmico.

Você confere outras informações sobre o evento clicando aqui e assiste à conversa pela conta do HQWeek no Instagram.

Entrevistas / HQ

Papo com Nick Drnaso, autor de Sabrina: “Ninguém acha que está vendo notícia falsa ou distorcida, então, é difícil pensar no que eu mesmo consumo”

É difícil imaginar um quadrinho mais atual e relevante do que Sabrina. Sua repercussão foi muito além do meio dos quadrinhos e a obra de Nick Drnaso se tornou a primeira HQ indicada ao prêmio Man Booker Prize. Sabrina trata de fake news, conspiracionismo e do impacto de boatos e informações falsas nas vidas de cidadãos comuns ao narrar o desaparecimento da mulher que dá título à obra.

Entrevistei Drnaso para escrever sobre o lançamento da edição brasileira de Sabrina, pela editora Veneta, em tradução de Érico Assis (que também traduziu a entrevista abaixo). Esse papo virou matéria para o jornal O Globo. Escrevi no meu texto sobre as origens do livro, o desenvolvimento da obra, as técnicas e métodos do autor e a repercussão da HQ desde sua publicação em 2018. Você lê o meu texto clicando aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha conversa com Drnaso, na qual ele ainda fala sobre seu ambiente de trabalho, sua relação com outros quadrinistas e o suas leituras recentes. Leia a minha matéria, leia o quadrinho e depois leia a minha entrevista com o autor.

“Aconteceu de eu estar pensando em tragédias que ganham grande cobertura”

Quadro de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

Antes de tudo, como você está? Como está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua rotina de trabalho?

Tenho a sorte de conseguir dar continuidade ao meu próximo álbum em casa, em quarentena. Portanto, minha rotina diária não mudou grande coisa. Acho que minha produtividade segue a mesma.

Como você acha que essa realidade que estamos vivendo vai afetar o seu ambiente profissional? Você tem conversado com outros autores e editores sobre essa situação?

Não tenho como especular quanto ao que vem pela frente.

Você pode me contar um pouco sobre o ponto de partida de Sabrina? Você lembra de como surgiu a ideia desse livro?

Aconteceu de eu estar pensando em tragédias que ganham grande cobertura na mídia. Tinha muita coisa acontecendo naquela época, quando houve Sandy Hook aqui nos EUA. A única ideia que eu tinha no começo era que um cara iria morar com um amigo da Força Aérea depois que a namorada do primeiro desapareceu.

“Tudo é desenhado e finalizado no papel, ao modo tradicional, com materiais simples e alguns instrumentos”

Página de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

Você poderia me contar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? Quanto tempo você leva criando um roteiro? E depois quanto tempo você leva no desenho esse roteiro?

Eu escrevo um pedaço do roteiro de cada vez, algumas cenas por vez, aí passo para o desenho até finalizar. Vou e volto nisso até terminar a história. Aí geralmente eu tenho que voltar lá no início, editar e redesenhar algumas coisas que acabaram não fechando como eu gostaria. Desenhar e colorir sempre tomam mais tempo que escrever; acho que umas 20 ou 30 horas por página.

Com quais técnicas você trabalhou em Sabrina? Você tem preferência por alguma técnica em particular? Quais materiais você utiliza?

Tudo é desenhado e finalizado no papel, ao modo tradicional, com materiais simples e alguns instrumentos. A cor é digital. Tentei colorir tudo à mão com canetinha, mas percebi que o processo ficava lento demais e não me dava muita flexibilidade para mexer no final.

Eu gosto muito ritmo de Sabrina. Acho que os grids e quadros que você usa são fundamentais para determinar o andamento da leitura. Você concorda?

Sim, é certo que o grid que eu usei em Sabrina ditou o ritmo. Comecei o roteiro com esse grid em mente. Com essa possibilidade de quebrar um quadro grande em quatro menores, eu consegui muitas cenas de silêncio. O álbum em que estou trabalhando agora tem outro grid que não condiz com quadros pequenos, então o texto e ritmo são mais contidos. É bom fazer essa mudança depois de Sabrina.

“Tenho alguns arrependimentos em relação ao visual”

Página de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

Você pode contar um pouco sobre o desenvolvimento de seus personagens? Você tem algum hábito particular de observar pessoas na sua rotina diária?

Meu primeiro álbum, Beverly, tinha mais personagens baseados diretamente em gente que eu conhecia. A vida e o emprego do Calvin de Sabrina, aliás, vieram de um amigo que trabalha na Força Aérea no Colorado. É um processo muito natural. Ele meio que surge assim que eu começo a trabalhar. Talvez eu só perceba que o personagem é baseado numa pessoa que eu conheço meses depois de entrar na história, o que sempre acho bizarro.

Há um padrão nas cores de Sabrina e Beverly. Qual é a sua abordagem em relação a cores? Por que essa paleta e esse estilo?

Limitar a paleta me ajudou nos dois álbuns. Tenho alguns arrependimentos em relação ao visual. Entendo onde eu queria chegar e como saí do rumo, mas é coisa do meu olho. Colorir no computador foi um processo relativamente novo pra mim quando comecei Beverly, então tentei ser simples e usar um monte de pastel suave. Mas queria poder voltar e aprimorar, em parte.

Vivemos em um período de extremismos crescentes e de conspiracionistas radicais que acreditam que a terra é plana, são contra vacinas e não querem ficar em quarentena durante a pandemia. São questões muito presentes em Sabrina. Esses temas são caros para você? Você passa muito tempo refletindo sobre os rumos da humanidade?

Eu me interessava pela cultura das teorias da conspiração antes de escrever Sabrina. Agora eu não acompanhado nada, nem por curiosidade.

“Não julgo nenhum tema com pressa, mas sei que eu tenho pontos cegos imensos”

Página de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

E como você lida com fake news?

Olha, ninguém nesse mundo acha que está vendo notícia falsa ou distorcida, então é difícil pensar no que eu mesmo consumo de notícia. Tento fazer o que me é possível e não julgo nenhum tema com pressa, mas sei que eu tenho pontos cegos imensos e um nível de atenção menor do que gostaria de admitir

Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?

Não tenho a mínima qualificação para responder essa pergunta, que é muito difícil. Se estivéssemos conversando por telefone, eu ia perguntar a você sobre o Brasil com Bolsonaro. Infelizmente não tenho nada de interessante ou particular a dizer sobre a situação dos EUA com Trump que não seja dito milhões de vezes, todo dia, sem parar.

O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos americanos, mas são culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?

Com certeza! Não tenho noção de como nenhum álbum é lido em outro país, mas tenho curiosidade. Provavelmente eu teria que visitar o país para ter noção, mas não viajei muito na vida, até agora. Quem sabe isso mude.

“Sempre me interessei por desenho e era ávido pelos livros do Shel Silverstein quando era pequeno”

Página de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual Sabrina foi criado?

Comecei a desenhar Sabrina usando o armário do meu apartamento antigo como estúdio. Era o único lugar da casa onde cabia minha mesa de desenho. Aí eu e minha namorada (hoje esposa) mudamos para outro apartamento e consegui montar o estúdio no quarto. Depois nos mudamos para o apartamento atual e, aqui, a mesa de desenho também fica no nosso quarto. É onde estou respondendo essa entrevista.

Eu nunca estive em Chicago, mas sei da relação da cidade com arquitetura, museus, autores de quadrinhos e arte em geral. Você se vê influenciada por esse ambiente tão criativo?

Eu cresci bem perto de Chicago e nunca morei em outra região, portanto é a única que eu conheço. Tive sorte de ver muitos quadrinistas por aqui, assim como escritores, escolas, museus, colégios. Sou muito satisfeito com o ambiente. Gosto da arquitetura e do inverno sombrio. Talvez isso tenha reflexo no jeito como eu desenho.

Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

Eu só passei a ler e pensar sobre HQ depois que acabei o ensino médio. Sempre me interessei por desenho e era ávido pelos livros do Shel Silverstein quando era pequeno. Acho que foram os primeiros desenhos que me causaram uma reação.

“Gosto de muita coisa que não chega nem perto do jeito como eu trabalho”

Eu gostaria de saber sobre a sua relação com a crítica e com esse interesse crescente pelo seu livro por parte da imprensa. O que você sente ao ver o seu trabalho tão analisado e interpretado e tantas pessoas interessadas no seu quadrinho?

Consigo ler resenhas críticas e positivas sem grandes problemas, mas faço o possível para manter distância de menções ao livro no Twitter e lugares assim. Sou grato a todos que tiverem escrito o que quer que seja sobre o álbum, mas tenho uma autocrítica interna que me impede de absorver algo a fundo, seja bom ou mau.

Eu gostaria de saber o que são histórias em quadrinhos para você. Você tem alguma definição pessoal?

Não, não tenho opinião forte sobre a mídia. O que eu tenho é uma forma de trabalhar que criei pra mim, mas não é algo que eu colocaria pra outros. Gosto de muita coisa que não chega nem perto do jeito como eu trabalho.

“Tenho ouvido muito mais música nesse ano”

Quadro de Sabrina, HQ de Nick Drnaso publicada no Brasil pela editora Veneta

Você poderia recomendar algo que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento?

Tenho ouvido muito mais música nesse ano. É muita coisa para citar. Estou lendo Praia de Manhatan, de Jennifer Egan, e curtindo. Depois vou ler The Broken Brain, de Nancy Andreasen. Há poucos dias eu e minha mulher assistimos Mal do Século, de Todd Haynes, e achamos ótimo.

Há uma mistura de melancolia e tristeza que está presente no seu trabalho e também nas obras de quadrinistas norte-americanos como Seth, Adrian Tomine, Chris Ware e Daniel Clowes. Você vê esse padrão? Você consegue elaborar alguma justificativa para o predomínio desses temas?

Identifico que há um padrão, mas não sei ao certo qual é. Produto desse ambiente, quem sabe. Ou porque a vida solitária do quadrinista atrai certo tipo de pessoa. Gostaria de ser mais objetivo nesse aspecto, mas me parece difícil, se não impossível.

A capa da edição brasileira de Sabrina, publicada pela editora Veneta
HQ / Matérias

Nick Drnaso fala sobre Sabrina, fake news, Chicago e cenas de silêncio

Entrevistei o quadrinista norte-americano Nick Drnaso, autor de Sabrina, uma das histórias em quadrinhos mais comentadas dos últimos anos. Primeira HQ listada entre as finalistas do tradicional Man Booker Prize, o álbum trata do desaparecimento da personagem-título e a repercussão do ocorrido na vida de pessoas ligadas a ela. O título acabou de ganhar versão em português, pela editora Veneta, com tradução de Érico Assis.

Transformei esse papo com o quadrinista em matéria para o jornal O Globo e o texto está na capa de hoje do caderno de cultura da publicação. Conversamos sobre os pontos de partida de Sabrina; o desenvolvimento da obra; a relação do autor com alguns dos temas tratados no livro, principalmente fake news; e a repercussão da HQ. Você lê a matéria clicando aqui.

HQ

Marcelo D’Salete fala sobre Sunny, de Taiyo Matsumoto: “É um trabalho bem sensível, diferente de algo mais dinâmico e de toda a ação do Tekkon Kinkreet”

Conversei com os quadrinistas Marcelo D’Salete e Rafael Coutinho sobre o lançamento do primeiro dos três volumes da editora Devir para a coleção brasileira de Sunny, obra do artista japonês Taiyo Matsumoto, também autor de Preto e Branco/Tekkon Kinkreet. Essas entrevistas viraram matéria na Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista com Marcelo D’Salete sobre os principais méritos do trabalho de Taiyo Matsumoto e o impacto de obras como Sunny e Tekkon Kinkreet no trabalho do autor de Cumbe e Angola Janga. Saca só:

“O que mais me chama atenção é a forma de trabalhar o desenho”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Você lembra do seu primeiro contato com o trabalho do Taiyo Matsumoto? Quando foi?

Por volta de 2001 ou 2002, quando o álbum Preto e Branco foi publicado aqui no Brasil, pela Conrad. Quando vi o trabalho dele achei incrível. Na época eu já tinha tido contato com alguns trabalhos de mangás, mas o dele destoava bastante. Era algo que me lembrava muito o trabalho do Katsuhiro Otomo e outros. Fiquei muito impressionado com a capacidade de desenho e com a capacidade narrativa dele.

O que mais te chama atenção nos quadrinhos do Taiyo Matsumoto?

O que mais me chama atenção é a forma de trabalhar o desenho, o traço, muito sinuoso e bonito. A forma de trabalhar com o preto e branco e a forma como ele consegue criar cenas muito engenhosas, seja pelos ângulos que ele escolhe para cada um dos quadrinhos, seja para os momentos de… Vamos dizer assim, para os momentos mais contemplativos e para os momentos de maior ação dentro de uma história.

“A escolha por trabalhar com caneta nanquim, 0.2 e 0.3, provavelmente veio de artistas como ele”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Como o contato com a obra do Taiyo Matsumoto impactou o seu trabalho? Você consegue pensar em algum influência particular que tenha incorporado da leitura dos quadrinhos dele?

Quando comecei a fazer quadrinhos eu estava trabalhando com diversas técnicas. Isso é bem visível no livro que foi publicado em 2008, Noite Luz. Em alguns momentos eu trabalhava com traço, com caneta, em outros com pincel. Teve momentos, na primeira história do Noite Luz, que eu trabalhei com caneta, pincel chato, criando aquelas manchas negras. E tudo isso em quadros separados, só depois eu juntava tudo. O trabalho do Taiyo talvez tenha me influenciado porque eu o visitava bastante por causa do traço, então a escolha por trabalhar com caneta nanquim, 0.2 e 0.3, provavelmente veio muito por causa de artistas como ele. Foi algo que eu acabei desenvolvendo mais e incorporando no Encruzilhada e depois seguiu no Cumbe e no Angola Janga.

Além disso a forma como ele pensa e estrutura as cenas de ação, também foi alvo que chamou muito a minha atenção. Ele é muito dinâmico, consegue passar uma sensação de diversas ações ocorrendo em um tempo muito curto, com aquelas linhas na diagonal dos quadros.

“Ele me ensinou bastante como trabalhar com cenas concomitantes”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Há uma vastidão de gêneros e estilos quando se fala em mangás, mas há algum aspecto ou elemento em particular, seja no uso da linguagem ou nos métodos de produção, que te chame atenção nas histórias em quadrinhos produzidas no Japão?

Em especial no Preto e Branco acho que tem a forma como o Tayio trabalha muito bem com quadros mais horizontais. Me lembra bastante o cinema, a forma de composição da fotografia no cinema. Além disso, algo que Tayio me ensinou bastante foi como trabalhar com cenas concomitantes, como trabalhar com cenas que acontecem no mesmo tempo. E como seguir uma narrativa desse modo de uma forma eficiente. Isso me chamou muita atenção também, me parece algo muito sofisticado.

Cheguei a ter contato com algumas outras obras do Tayio depois, obras que não foram publicadas aqui no Brasil. Então além de Preto e Branco, e da bela animação que fizeram a partir desse quadrinho, eu li o Ping Pong, que fala sobre um campeonato de pingue-pongue, é incrível o modo como ele consegue trazer as partidas de pingue-pongue e mostrá-las quase como se fossem uma batalha de vida ou morte. É incrível, muito impressionante mesmo. Tive contato também com um outro chamado GoGo Monster, que talvez seja um trabalho que se aproxime mais do Sunny.

Além desses tive contato também com um quadrinho dele mais histórico, sobre samurais, Takemitsuzamurai. Inclusive li bastante esse nos momentos iniciais de produção do Angola Janga, embora seja uma influência bem indireta. 

O que você vê de mais especial em Sunny?

No caso do Sunny eu cheguei a ler o primeiro número dessa publicação. É um trabalho muito bonito graficamente, protagonizado por diversos personagens e você acaba seguindo esses personagens na narrativa. É um trabalho que tem algumas aguadas e meio tom, o que é bem diferente do que ele fazia antes no Preto e Branco. É um trabalho bem atomizado, vamos dizer assim, a partir da perspectiva de algumas crianças e jovens sobre aquele espaço. Um trabalho bem sensível, diferente de algo mais dinâmico e de toda a ação que tem, por exemplo, em um trabalho como o Preto e Branco ou mesmo o Takemitsuzamurai. É um trabalho mais particular e muito delicado, algo muito bonito de se ver também, pela forma como o tempo se dá, de uma forma bem dilatada, pegando cada detalhes de olhar e de expressão dos personagens.

A capa do primeiro volume da coleção brasileira de Sunny, pela editora Devir
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Rafael Coutinho fala sobre Sunny, de Taiyo Matsumoto: “O autor que realmente me fez ver quadrinho como uma narrativa de romance, algo que eu só encontrava lendo literatura”

Conversei com os quadrinistas Marcelo D’Salete e Rafael Coutinho sobre o lançamento do primeiro dos três volumes da editora Devir para a coleção brasileira de Sunny, obra do artista japonês Taiyo Matsumoto, também autor de Preto e Branco/Tekkon Kinkreet. Essas entrevistas viraram matéria na Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista com Rafael Coutinho sobre os principais méritos do trabalho de Taiyo Matsumoto e o impacto de obras como Sunny e Tekkon Kinkreet no trabalho do autor de Mensur e O Beijo Adolescente. Saca só:

“Ele reintroduziu o conceito de mangá de autor pro mundo”

Quadros do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Você lembra do seu primeiro contato com o trabalho do Taiyo Matsumoto? Quando foi? 

Foi com a publicação do Preto e Branco pela Conrad, não me lembro o ano. Fiquei muito mexido, impressionado, era muito diferente de tudo que eu conhecia.

O que mais te chama atenção nos quadrinhos do Taiyo Matsumoto? 

Além do fato de que ele representa um ponto muito fora da curva do tradicional estilo mangá, um raro caso de desenhista e narrador japonês que sofreu forte contaminação das escolas européias, ele tem uma capacidade muito impressionante de criar relações afetivas entre personagens. O estilo é solto e expressivo, sem perder naturalismo. Pequenos detalhes como mãos e bocas, cenários que quebram o eixo de perspectiva tradicional, quase como se estivéssemos lendo um livro um mangá sob o efeito de uma microdosagem de drogas alucinógenas. Mas depois que li quase tudo dele, entendi que o que tinha me impressionado no começo da carreira dele era um momento que ele se distanciaria muito e que pra mim mudou totalmente minha percepção não só dele autor, como do que eu esperava de quadrinhos em geral. O Sunny foi pra mim o marco dessa ruptura. A relação entre duas figuras crianças, sempre um personagem e seu duplo, ou doppelganger ou um irmão mais novo e um mais velho, representando duas forças positivas e negativas, mas nunca óbvias e dicotômicas, e sim complexas e ricas e sensíveis a sua forma, individualmente, evoluiu com o tempo pra uma mergulho muito bonito e pessoal na psique humana. As histórias pararam de falar de monstros e inimigos, perderam ação explícita e incorporaram situações brutais de intimidade e singularidade. Pra mim ele foi o autor que realmente me fez ver quadrinho como uma narrativa de romance, algo que eu só encontrava lendo literatura. E por ser o desenhista estupendo que ele é, a experiência se torna muito mais impactante do que se fosse só texto. Ele me ensinou também a importância dos silêncios, como apresentar o ambiente como fio condutor, o avião que passa, o cachorro que late, as repetições formando um cotidiano narrativo que apoia e multiplica o drama dos personagens. Sobre os personagens, eu poderia ficar falando aqui infinitamente, porque não há gente boa e má, ou clichês. Nenhum personagem entra de forma bidirecional. E acho importante também ressaltar a habilidade que ele tem de fazer uma cena muito simples se tornar instigante, moderna, um Zeitgeist interno ali que se espalha por todos os livros. Com um desenho muito econômico ele consegue apresentar uma visualidade de vanguarda pra tudo, muito viva e elegante. No desenho, ele propõe uma soltura muito bonita de traço. Um relaxamento e tremor que são característicos na obra dele que pra quem entende um pouco sobre a tradição de mangá, é evidente o tamanho da coragem e da quebra de paradigma. É um autor que reintroduziu o conceito de mangá de autor pro mundo, com um impacto muito grande no próprio estilo europeu.

“Como autor, devo muito ao trabalho do Taiyo”

Página do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela Devir

Como o contato com a obra do Taiyo Matsumoto impactou o seu trabalho? Você consegue pensar em algum influência particular que tenha incorporado da leitura dos quadrinhos dele?

Fui muito influenciado. Quando li pela primeira vez, sinto que quase tudo que fiz naquela época era fruto do desejo de chegar perto do que ele fazia. Enquadramentos, personagens, preto e branco. Minha sorte é que não consegui tão bem, senão teria sido só um feliz copiador dele pelo resto da vida. Minha outra sorte é que naquela mesma época conheci outros autores que tiveram o mesmo impacto em mim, o que acabou diluindo esse desejo de mimetizar ao infinito um autor. Mas sigo muito impactado pelos livros dele, estão cada vez melhores, mais profundos. Acho que o Beijo Adolescente é o meu trabalho que foi mais influenciado por ele. Hoje em dia já mergulhei no meu universo imagético e sinto que essa época de ficar maluco por um autor, característico da juventude de um desenhista, passou. Mas como autor, devo muito ao trabalho do Taiyo.

“Foi a última obra que me fez chorar no banheiro”

Quadro do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela editora Devir

Há uma vastidão de gêneros e estilos quando se fala em mangás, mas há algum aspecto ou elemento em particular, seja no uso da linguagem ou nos métodos de produção, que te chame atenção nas histórias em quadrinhos produzidas no Japão?

Leio pouco mangá se comparado aos meus alunos. Mas sou de uma geração profundamente impactada pelo Katsuhiro Otomo, pela geração 90 autoral japonesa, e posteriormente pelo Suehiro Maruo, Junji Ito, e por diretores de animação como Satoshi Kon e as produções do estúdio Gibli. Mas de uma forma geral, a cultura japonesa nos bombardeou de produções formadoras dos 90 pra cá, seria impossível catalogar. Confesso que acho que minha geração sentia certa vergonha de incorporar explicitamente trejeitos e maneirismos do mangá, embora estivessem ali nas nossas páginas. A geração posterior a minha é menos recalcada, assumiu abertamente. Mas somos todos filhos da cultura pop japonesa, ela esteve e estará presente no nosso cotidiano sempre com esse encantamento perturbador e maravilhoso. Os japoneses são um povo com uma produção artística sem igual, um amor pelo pop e um nível de produção dedicada a dar voz as emoções humanas muito intensa. A forma exagerada com que exprimem essas emoções, a tensão entre uma cultura que reprime extremamente o individuo na mesma medida que explora e se reapropria e avança rumo ao absurdo, à fantasia, aos desejos e tabus, é desigual se comparada ao resto do mundo. E há uma inocência estranha nesse processo que também é encantadora, uma nação em uma ilha, que de império a um povo destruído por duas bombas atômicas se mantém focado em respeitar as tradições, as hierarquias, o espiritual, as emoções humanas, produzir, criar intensamente, sem parar. E quando desconstroem isso ou questionam de forma criativa, fazem com uma força muito grande.

O que você vê de mais especial em Sunny?

Foi a última obra narrativa que me fez chorar no banheiro (porque não conseguia largar nem pra ir ao banheiro). É uma obra completa, os seis livros [três na edição brasileira] são fundamentais para o todo, cada um abre visões desse orfanato por cada criança que vive lá, visões que se complementam. Não há nada de óbvio no livro, é algo muito único. E também é uma história reta, sem experimentações narrativas. É de longe uma das obras mais honestas e inteiras que li. Pros fãs do Taiyo que leram Go Go Monster, ela é um segundo passo bem mais resolvido e rico, como se a anterior tivesse sido um preparo para essa. Não há como não se apaixonar por ele ao ler os seis livros. Descobri depois de ler que Sunny é inspirado nas memórias do próprio autor, que cresceu em um orfanato também. Mas não quero estragar a surpresa, espero que todos se sintam conectados com as histórias do orfanato Star Kids e das crianças como eu me senti.

Página do primeiro volume de Sunny, obra de Taiyo Matsumoto publicada no Brasil pela Devir