Está no ar a 16ª edição da Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Escrevi sobre Carniça e a Blindagem Mística – Parte 1: É Bonito o Meu Punhal, mais recente trabalho do quadrinista Shiko. Aproveitei a deixa do lançamento desse quadrinho novo do autor para lembrar de todas suas HQs até aqui, da coletânea Marginal (2006) ao recente Três Buracos (2019).
Na entrevista que fecha a coluna, uma conversa com a quadrinista Cinthia Saty Fujii, autora da série Maternidade Sincera e da segunda temporada de Charlote Blues (Bruttal).
Você lê a 16ª Sarjeta clicando no link a seguir: Sarjeta #16: Carniça e a Blindagem Mística é brutal, crítica e lírica como as melhores HQs de Shiko.
Posts por data janeiro 2021
Marcello Quintanilha e a criação de uma página de Luzes de Niterói
Já escrevi algumas vezes sobre Luzes de Niterói, HQ mais recente de Marcello Quintanilha, publicada em 2019 pela editora Veneta. Pouco antes do livro ser lançado, entrevistei o editor da obra, Rogério de Campos, sobre o significado do título em meio aos demais trabalhos de Quintanilha. Depois conversei com o autor sobre o quadrinho e transformei esse papo em matéria para a Folha de S. Paulo.
Mais recentemente apresentei na minha coluna no site do Instituto Itaú Cultural algumas reflexões sobre a representação do futebol em Luzes de Niterói. Enfim, não hesito ao listar a obra entre as HQs nacionais mais importantes já publicadas. Acredito que ela será vista como um clássico em um futuro próximo, sendo que ela já consta entre os meus quadrinhos preferidos.
Quintanilha compartilhou hoje (20/01) no Instagram um álbum mostrando o processo de produção da página 178 da HQ. Acho um post revelador e muito valioso para acabar se perdendo nas redes sociais, então pedi para o autor para publicar essas imagens por aqui. Reproduzo as páginas a seguir junto com informações enviadas pelo artista sobre cada etapa e as técnicas usadas por ele. Saca só:

Papo com Rogi Silva, autor de Pumii do Vulcão: “Me cansei de notícias ruins e quis resgatar o meu gosto por histórias fantásticas”
A primeira temporada de Pumii do Vulcão, do quadrinista Rogi Silva, consta entre as minhas leituras preferidas de 2020. Essa leva inicial da série é composta por 50 posts, compartilhados duas vezes por semana pelo autor no Instagram entre 25 de março e 5 de novembro do ano passado. A segunda temporada da HQ tem estreia marcada para 12 de janeiro de 2021, com promessas de novas atualizações sempre às terças e quintas.
Pumii é poesia em quadrinhos protagonizada, ocasionalmente, pelo personagem-título e sua amiga Merapi, habitantes de um vulcão. A série é centrada, principalmente, nas interações da dupla com outras criaturas da fauna e da flora da ilha em que vivem.
“Olha, imagino que seja um quadrinho poético fantástico mesozóico devoniano”, me conta o artista em tom bem-humorado quando pergunto sobre o gênero no qual ele classificaria esse trabalho.
Autor de Não Tenho Uma Arma, Aterro, Mergulhão, Planta e Pedra Pome (vencedora do Prêmio Dente de Ouro 2020), Silva diz planejar mais 80 episódios para Pumii. Após o término, ele quer lançar a série em uma edição impressa, em parceria com alguma editora ou via financiamento coletivo. Na entrevista a seguir o quadrinista fala sobre as origens de Pumii, a segunda temporada do quadrinho e o futuro da HQ. Papo massa, saca só:
Tô perguntando para todo mundo que passa aqui pelo blog: como estão as coisas aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de algumas forma a sua produção e a sua rotina diária?
O começo foi difícil, as coisas pareciam que nunca iriam estabilizar, mas o tempo foi passando e criei uma casca mais dura para lidar com a situação. Logo no começo do isolamento me mudei para bem próximo do mar, era um lugar mais isolado e com clima de “férias”. Isso aliviou bastante a minha ansiedade. Nesse período escrevi e li bastante, descobri novos escritores e quadrinistas. Aliás, tenho alguns projetos em andamento que foram concebidos durante essa quarentena próximo ao mar.
Você pode me contar um pouco, por favor, sobre as origens de Pumii? Essa história tem algum ponto de partida em particular?
Pumii do Vulcão, teve começo quando me cansei de notícias ruins na internet e quis resgatar os meus gostos por histórias fantásticas e poemas. É uma mistura dessas referências que sempre tive mas nunca foram evidentes em trabalhos anteriores que publiquei.
Acho que obra nenhuma precisa ser enquadrada em nenhum gênero em particular, mas fico curioso: em qual gênero você colocaria Pumii?
Olha, imagino que seja um quadrinho poético fantástico mesozóico devoniano rs
Não gosto de ler quadrinhos no computador, em tablets e celular, mas acho que esse formato do Pumii funciona bem para mim, com cada post equivalendo a uma página. Como você chegou nesse padrão?
Foi o desejo de contar uma história sem ter a obrigatoriedade de seguir uma estrutura narrativa comportada. Até porque, ultimamente, tenho achado esses tipos de narrativas muito enfadonhas de ler e fazer.
Também queria saber um pouco mais sobre o design dos personagens dessa série. Você pode me contar um pouco, por favor, sobre o desenvolvimento estético dos protagonistas da HQ?
O personagem Pumii surgiu quando estava desenhando no meu caderno aleatoriamente. A minha única preocupação era não desenhar um ser humano. Essa tem sido uma fixação constante minha, cansei de ver pessoas em minhas histórias em quadrinhos, agora quando elas aparecem sempre se dão mal.
“Não excluí totalmente o papel do meu processo”
Com quais materiais você está trabalhando nessa série? Envolve tinta e papel ou é tudo digital?
Tenho um caderno que fico planejando e escrevendo os episódios, para depois sentar em frente ao computador e passar a limpo tudo o que esbocei. Foi uma maneira que encontrei de produzir mais rápido, sem excluir totalmente o papel do meu processo.
A primeira temporada de Pumii chegou ao fim após 50 episódios. Você já sabe quantos episódios serão na segunda temporada? O quanto ela já está desenvolvida?
Provavelmente irei desenhar mais oitenta episódios para fechar. Não tenho todos escritos, mas já esbocei e escrevi bastante coisa que desejo trabalhar até que chegue ao fim.
“Pensar no formato do livro me deixa muito empolgado”
Aliás, você já sabe quando termina Pumii? Você já sabe como vai terminar a série?
Acho o final a parte mais interessante de criar para a história. Mas não gosto de pensar que tenho esse final fixo na mente. Estou permitindo que a história caminhe o suficiente para me mostrar como ela deve terminar.
Há a possibilidade de vermos Pumii impresso em um futuro próximo?
Claro. Para me dar a sensação de que o projeto foi finalizado, isso tem que acontecer. Pensar no formato do livro me deixa muito empolgado. Mas ainda não sei como vai sair, por onde publicar. Uma certeza que tenho é que não tenho condição de bancar sozinho esse projeto. Se alguma editora não publicar, pretendo fazer algum financiamento coletivo.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Tem dois autores que li ultimamente e me deixaram inquieto. São os ensaios e poemas de [Alexandre] Pushkin e os contos de Silvina Ocampo. Gosto da ironia, do humor estranho e dos lugares inusitados em que eles me levam.
Papo com Luli Penna, autora de Milágrimas: “Minha ideia principal era que os desenhos pudessem rimar visualmente”
A quadrinista Luli Penna adaptou para a linguagem dos quadrinhos o poema Milágrimas, escrito por Alice Ruiz e transformado em música por Itamar Assumpção em 1990. Como canção, além da versão de Assumpção, também foi interpretada por cantoras como Zélia Duncan, Ná Ozzetti, Anelis Assumpção, Alzira E. e outras.
“Sempre quis desenhar uma letra de música e topei na hora porque amo essa letra”, me diz Luli Penna, autora do excelente Sem Dó (todavia), sobre o convite da editora Isabel Malzoni para transformar Milágrimas em quadrinhos para editora Caixote.
Acredito que o elemento básico da boa adaptação é a autonomia de existência em relação à obra que a inspirou. Mesmo seguindo à risca a letra de Ruiz e dialogando com vários dos elementos da música de Assumpção, a obra de Luli Penna independe de qualquer contato prévio com esses dois trabalhos que a inspiraram para funcionar.
Bati um papo com Penna na última semanas de 2020 sobre o desenvolvimento de Milágrimas. Ela falou de seu empenho para criar “rimas gráficas”, expôs suas impressões sobre os trabalhos de Alice Ruiz e Itamar Assumpção, comentou sua leitura recente de Akira e entregou um pouco sobre sua próxima HQ longa. Papo massa, saca só:
“Sempre quis desenhar uma letra de música”
Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. Faltam só alguns dias para o fim do ano, então acho que já dá para perguntar: como foi esse seu 2020 de pandemia? Como a pandemia afetou sua rotina de trabalho?
Acho que o pior do confinamento foi ver o país sendo estropiado diariamente pelo governo bolsonaro e seu projeto de genocídio e destruição. A impotência diante desse quadro desolador foi o pior da pandemia porque de resto meu dia-a-dia não mudou muito. Sempre trabalhei em casa. Claro que tudo ficou mais difícil sem poder contar com coisas tipo mandar o filho pra padaria no dia em que o trabalho aperta. Mas acho que o pior mesmo foi assistir o país sendo destruído com apenas uma panela e uma colher de pau na mão pra protestar pela janela.
Qual foi o ponto de partida do Milágrimas? Como surgiu a ideia de adaptar a letra da Alice Ruiz?
A ideia do livro foi da Isabel Malzoni, da editora Caixote, que tem toda uma relação muito linda e forte com essa música. Ela me ligou perguntando se eu topava transformar a letra em quadrinhos. Sempre quis desenhar uma letra de música e topei na hora porque amo essa letra.
“O que mais gosto em Milágrimas é que há uma aceitação muito linda de que viver é doído”
O que você pode contar desse processo de adaptação? Como foi transformar essa letra em HQ? Como foi o desenvolvimento desse projeto?
Minha ideia principal era que os desenhos pudessem rimar visualmente, que eles tivessem algum elemento gráfico que funcionasse como rimas, rimas gráficas. Acho que consegui isso em alguns momentos mas acho que poderia ter deixado esse recurso bem mais explícito.
Outra coisa que eu fiz questão foi não deixar que o milagre da música se resolvesse numa saída tipo Cinderela, com príncipe na porta da donzela chorosa.
Aliás, você se lembra do seu primeiro contato com esse trabalho da Alice Ruiz? Foi com alguma apresentação de algum músico específico? O que você mais gosta nessa letra?
Acho que essa letra marcou muita gente. No meu caso, ouvi pela primeira vez na voz do Itamar, que foi um artista muito importante na minha vida de frequentadora do teatro Lira Paulistana, na Teodoro Sampaio, onde o conheci .
A Alice Ruiz entrou na minha vida depois do Itamar. O que mais gosto em Milágrimas, e em Socorro, que parece uma letra prima da Milágrimas, é que há uma aceitação muito linda de que viver é doído. Há um acolhimento da dor. Acho precioso isso numa época como esta em que, a cada pôr do sol, as pessoas correm pra tirar uma selfie mostrando como estão incrivelmente felizes. A pandemia deu uma amenizada inicial nesse modo blogueirinha da alegria permanente que habita a todos nas redes sociais, mas as pessoas inventaram muito rapidamente um cabeçalho qualquer (apesar da pandemia, etc) pra introduzir mensagem de gratidão pela varanda gourmet com pôr de sol mágico.
“O Itamar me marcou profundamente durante a adolescência”

Sobre essas várias interpretações da letra, você tem alguma preferida? Tem alguma particularidade em alguma dessas versões que chama mais a sua atenção?
Sempre vou preferir a do Itamar, que foi um artista que me marcou profundamente durante a adolescência.
Lembro como gostei da forma como você retratou a fumaça do trem no início Sem Dó. Cheguei a comentar com você como achei uma sacada ótima. Vi muitas soluções do tipo se repetindo no Milágrimas. Imagino que adaptar uma música, com tantas metáforas, tenha exigido mais de você em relação a soluções gráficas. O que você pode contar dessa experiência?
Vitral! Muito legal ler isso porque juro que pensei em você quando desenhava isso, justamente porque me lembrei do seu comentário sobre o Sem Dó. Sim, como disse aí pra cima, minha ideia era compor rimais gráficas que fossem se repetindo ao longo do livro e esses círculos foram dando corpo a isso. O que eu acho legal é que no Sem Dó você sugeriu que meus círculos de fumaça lembravam as engrenagens do trem e sugeriam também a ideia do barulho da coisa, não apenas a imagem. Desenho sonoro. Amei isso.
No Milágrimas, tentei criar isso pelo movimento circular do disco e dos olhos girando nesse movimento permanente da música e da dor que vai acabar escorrendo pelos olhos.
Aí você pode falar um pouco sobre a costura que fez entre os guarda-chuvas da primeira página com os cabelos da personagem e dos discos dela?
Foi isso mesmo. A ideia era que algo girasse o livro todo, como um disco, os olhos e a dor que escorre como lágrimas no final.
Qual o balanço que você faz desse trabalho de adaptar essa letra/música? Foi mais difícil ou mais fácil do que você imaginou quando começou esse trabalho?
Demorei muito pra dar a forma inicial. Não veio fácil. Tentei começar várias vezes mas não progredia. Pela dificuldade que é criar uma personagem, um roteiro e tal, mas sobretudo porque tinha de conter a própria ideia da musica e tal. Além dessas dificuldades habituais, o trabalho me pegou num momento especialmente difícil, num momento em que estava muito sobrecarregada de trabalho, das dores da pandemia em geral e de uma separação recente que ainda estava doendo bastante. A separação poderia ter me ajudado, já que eu era a própria personagem, mas não é assim que funciona, né? rs Pra resumir, achei inicialmente que seria muito fácil porque a letra já existia, não precisaria criar o texto, mas as próprias dificuldades de adaptação acabaram se mostrando mais difíceis que eu imaginava.
“Akira é uma dose de imagens antidepressivas fortíssima”

Acho injusto perguntar sobre trabalhos futuros quando um artista acabou de lançar um trabalho novo, mas não resisto… Você já tem alguma próxima HQ em mente?
Estou já há bastante tempo fazendo uma segunda graphic novel. Comecei toda uma história que se passava no Rio De Janeiro, um projeto antigo que eu tinha de situar algo no Copacabana Palace, esse hotel incrível que inaugurou a própria ideia de Copacabana como praia. Mas o Brasil do Bolsonaro me tirou inteiramente a razão de ser dessa ideia e eu abandonei tudo (já tinha um roteiro e muitas páginas esboçadas). Comecei algo inteiramente novo e de caráter pessoal mas o roteiro está bem arrastado ainda. Como a vida. O mundo.
Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido nos últimos tempos? Teve alguma obra que te ajudou a encarar esses meses mais recentes de pandemia?
Cara, eu amei ler Akira, que eu nunca tinha lido. Acho que a Amanda Miranda também comentou isso outro dia, que estava lendo o Akira. O Guilherme Wancke também. Foi louco ver que havia mais gente lendo isso no mesmo momento. Não sei o que rolou pra eles, preciso até perguntar mas, no meu caso, essa HQ me deu um gás, uma vontade muito forte de continuar fazendo HQ, criando novas formas e tal. Aquele espetáculo todo, sabe?, de grids, movimentos, enquadramentos maravilhosos. Aquilo é uma dose de imagens antidepressivas fortíssima. Recomendo.

Papo com Brian Michael Bendis, cocriador de Miles Morales e Jessica Jones e autor de Escrevendo para Quadrinhos: “É bom escrever mundos onde as diferenças são celebradas e a diversidade é abraçada”
O Demolidor de Brian Michael Bendis e Alex Maleev foi a última série de super-heróis que acompanhei mensalmente. Está entre as minhas leituras preferidas do gênero, assim como as 28 edições originais de Alias, série para a qual ele criou a detetive Jessica Jones. Segui durante um bom tempo seu Homem-Aranha Ultimate, mas fiquei pelo caminho e só fui ler alguns anos depois o surgimento de Miles Morales.
Dos trabalhos com personagens autorais dele li alguns encadernados de Powers, o primeiro de Scarlet e não muito mais do que isso. Não cheguei a ler nada dele para a DC, seu atual local de trabalho. O saldo é positivo, sempre me diverti com as HQs de Bendis. E assim também foi com Escrevendo para Quadrinhos – A Arte e O Mercado para HQs e Graphic Novels, livro recém-publicado no Brasil pela editora WMF Martins Fontes com tradução de Érico Assis.
Escrevi sobre Escrevendo para Quadrinhos para o jornal Folha de S. Paulo após ler a obra e bater um papo com o autor. Você lê o meu texto clicando aqui. Reproduzo a seguir a íntegra dessa minha conversa com o quadrinista, feita no início de novembro do ano passado. Ele me falou das origens do livro, deu suas impressões sobre o impacto da pandemia na indústria de quadrinhos e comparou suas dinâmicas de trabalho na Marvel e na DC. Confira o meu texto e depois volte aqui para ler essa conversa. Ó:
“Os quadrinhos podem ser videntes da cultura pop”
Estamos no meio de uma pandemia, é um momento de muita tensão e risco para todo o mundo. Como você e sua família estão lidando com essa situação?
Estamos “bem”. Vivemos em Portland, Oregon, que está em constante caos esse tempo todo. É muito difícil ser pai, mas estamos fazendo isso. A boa notícia é que estamos todos saudáveis e gostamos muito uns dos outros.
Aliás, o impacto da pandemia é imenso em todas as áreas. A indústria do entretenimento tem sido bastante afetada, assim como o universo dos quadrinhos. Qual foi o impacto da pandemia na sua rotina profissional? Qual você imagina que será o impacto da pandemia no futuro da indústria de histórias em quadrinhos?
Historicamente, e parece que está acontecendo agora também, quando as coisas estão muito estressantes ou em recessão, as pessoas acabam procurando por entretenimento e escapismo. A partir do momento em que os Estados Unidos entraram em lockdown, meus feeds de mídia social ficaram cheios de pessoas presas com seus livros e filmes e apenas se divertindo. Todos estão se perdendo em longas investidas em livros, alguns lendo centenas de edições de quadrinhos de uma só vez. Portanto, há um pouco de luz do sol em tudo isso, estamos criando conexões por meio de histórias. Vejo um verdadeiro senso de comunidade e uma verdadeira sensação de estarmos presentes uns para os outros.
Agradeço que nunca me disseram para parar de trabalhar. Tenho que passar horas por dia pensando no Superman… Como trabalho. Então, por definição, se você está pensando no Superman, você está tendo pensamentos esperançosos. ACHO que não teria tido esses pensamentos de esperança se não fosse o meu trabalho.
Acho que a pandemia vai revelar muitas grandes obras de arte. Muitos de nós estão em casa tentando se desafiar a ser melhores, como artistas e humanos, vários de nós estão trabalhando na criação de mundos que façam mais sentido para nós do que aquele em que vivemos agora. Eu li literalmente uma dúzia de novos quadrinhos nas últimas semanas, cada um deles me apresentando a um mundo completamente único, com suas próprias regras que continuam dizendo para mim que nossos criadores e nosso público estão pensando em uma realidade melhor.
Os quadrinhos podem ser videntes da cultura pop. Coisas que fazem sucesso nos quadrinhos primeiro geralmente se tornam bem sucedidas no mainstream, então é divertido ver o que está por vir. Histórias tão esperançosas.
Fico curioso em relação aos seus sentimentos ao ver Escrevendo para Quadrinhos ser publicado no Brasil. Somos todos ocidentais, estamos no mesmo continente, mas são contextos muito diferentes e seu livro trata principalmente da criação de HQs no contexto da indústria dos Estados Unidos. Você fica curioso em relação à leitura desse trabalho em um ambiente tão distinto do seu?
Bem, enquanto fazemos esta entrevista já ouvi de várias pessoas que leram a edição brasileira. Elas estão em todo o meu Instagram. É muito legal. Portanto, tenho algumas informações sobre isso que me fazem sentir bem. Parece que não importa o idioma, as pessoas estão conseguindo o que eu esperava. O Diagrama de Venn entre os criadores americanos e os brasileiros parece próximo. As verdades básicas sobre nós como humanos sempre vêm em primeiro lugar.
Então minha ansiedade sobre o livro é universal e não limitada ao Brasil : -)
“Toda restrição é um fomento à criatividade”
Imagino que você passe muito tempo dos seus dias pensando sobre as histórias nas quais você está trabalhando, mas como foi pensar sobre a linguagem e os fundamentos da linguagem dos quadrinhos para a produção de Escrevendo para Quadrinhos? O quanto a produção desse livro impactou as suas percepções e reflexões sobre fazer quadrinhos?
O livro é uma extensão dos meus mais de 10 anos como professor universitário aqui em Portland. Eu estava ensinando, escrevendo e criando há anos quando a Random House me procurou para fazer o livro. Minha jornada como professor estava escapando para as minhas redes sociais – o que os fez perguntar se eu queria encontrar uma maneira de adaptar as aulas para um livro.
O ensino é uma extensão do meu desejo de dominar o ofício de todos os ângulos possíveis e levar esse conhecimento adiante. Ironicamente, ensinar parece ser muito altruísta, e pode ser, mas há uma parte egoísta também. Ao ensinar, estou me forçando a voltar ao básico. Para trabalhar nos blocos fundamentais de construção da história, personagem e tema, a cada semestre. Isso mantém tudo sobre a prática hiperfresco na minha cabeça. Em seguida, aplico tudo diretamente no meu trabalho. Alguns de meus colegas, às vezes, perdem de vista os princípios básicos da narrativa porque estamos muito ocupados tentando nos superar. Eu também fiz isso. Mas voltar ao básico a cada poucos meses tem sido um grande presente para mim como escritor.
Aliás, o que são quadrinhos para você? Você tem alguma definição pessoal ou tem alguma definição em particular que você considere mais interessante?
Tendo a aceitar uma definição mais ampla. Qualquer coisa que crie uma história usando uma sequência de imagens. Qualquer meio, qualquer contexto, qualquer sistema, tudo é bom. É tudo quadrinhos. Eu amo o debate. Além disso, se você está debatendo o que os quadrinhos são em sua forma mais pura, você está velho.
Os personagens e os títulos da Marvel e da DC são marcas milionárias, pertencentes a empresas gigantescas e que precisam dar lucro aos seus donos. Acredito que isso tenha impacto direto em autores que nem sempre conseguem expressar suas vozes e contar histórias originais quando trabalhando para essas empresas. Como conciliar essa busca por uma voz própria, distinta e autoral e ambientes que podem ser tão restritivos criativamente?
Se você acha que um trabalho como esse é restritivo, simplesmente não é um trabalho para você. Toda restrição é um fomento à criatividade. As duas empresas estão ansiosas por vozes únicas para levar seus personagens e mantê-los atualizados e relevantes. É a força vital de ambos os universos; tem sido por décadas. Quando contratam pessoas que apenas movem o personagem de uma página para outra, nada de interessante acontece. Quando contratam pessoas com vozes novas ou estabelecidas para entrar e experimentar coisas novas, é quando as coisas realmente começam a cantar. Essas são as apostas que podem valer a pena para eles repetidamente em um nível corporativo. Miles Morales e Kamala Khan são exemplos perfeitos. Se as revistas tivessem fracassado, teria sido o fim. Em vez disso, eles se arriscam e bum!
Mas os quadrinhos convencionais, como qualquer coisa, não são para todos os tipos de criativos. É uma especialidade muito específica, como o standup comedy. Pode parecer fácil ou divertido, mas é difícil fazer com que pareça assim. Você tem que amar e querer muito.
Para uma liberdade criativa total e pura, você não precisa de ninguém. Você pode simplesmente ir fazer. Eu faço isso o tempo todo com os livros do meu selo. Controle total do criador. Para mim, a mistura dos dois torna as duas experiências mais poderosas criativamente.
“Diálogo é música”
Escrevendo para Quadrinhos trata principalmente de sua experiência como autor da Marvel. Você está trabalhando na DC já há alguns anos. Quais as principais lições que você tirou trabalhando com cada editora? Quais as principais diferenças de métodos de trabalhos que você nota entre cada editora?
Como empresas, eles fazem as coisas de maneiras muito diferentes e isso é absolutamente fascinante para mim. É como se você trabalhasse em um restaurante chique depois de trabalhar em outro por 20 anos… Você ficaria constantemente fascinado por como eles fazem tudo diferente para obter exatamente os mesmos resultados.
Eu sou um viciado na prática. Tem sido minha parte favorita da mudança.
Tenho gostado de trazer minhas lições de meus anos na Marvel e aplicá-las na DC. A maior diferença é que durante todo o tempo que estive na Marvel, eles estavam basicamente em uma situação de mobilidade ascendente. Eu cheguei quando eles estavam falindo e de repente eles estavam fazendo negócios para seus filmes. Então eles se tornaram parte da Disney. Aí eles eram uma marca maior do que a Coca-Cola. As pessoas nem mesmo acreditam que a Marvel já esteve em bancarrota nessa vida, mas foi. Agora, a DC é da Warner Bros. e já é há décadas. Então, quando cheguei lá, eles já estavam muito arraigados e estabelecidos corporativamente. A sensação é totalmente diferente.
Além disso, quando a Marvel me contratou, eu era basicamente um desconhecido com quem eles estavam jogando os dados. A DC me contratou muito ciente do que eu estava trazendo e do que eles queriam de mim. O que foi muito legal. Pude me sentir como Kirby por um dia. Só um dia. : )
Os seus diálogos estão entre os elementos mais característicos dos seus quadrinhos. Em Escrevendo para Quadrinhos você recomenda escrita e leitura para o desenvolvimento de texto e imagino que isso também valha para diálogos, mas quais outros exercícios e práticas você recomenda para a construção de bons diálogos? Como construir um diálogo que flua bem e soe natural?
Ouça. Ouça as pessoas quando elas falam. Ouça o que elas dizem. Ouça o que elas não dizem. Ouça as pausas. Diálogo é música. Acho que escritores que realmente levam o diálogo a sério usam a mesma parte do cérebro que um músico usa. Como se eles estivessem dominando um instrumento musical.
Mas a maior parte do “diálogo natural” é terrível. A maioria das pessoas diz coisas estúpidas, mas DESEJAM estar dizendo coisas inteligentes. Eu me incluo. Portanto, é uma espécie de ilusão que você está criando o que soa um diálogo natural. Você está criando momentos inteligentes que revelam o personagem – todos sonham com esses momentos na vida, então eles querem isso em suas histórias.
Há uma seção do seu livro na qual você insiste na importância de saber negociar pagamentos. Você criou personagens como Miles Morales e Riri Williams. Você tem percentual desses personagens? Como foi a sua experiência negociando os direitos desses personagens com a Marvel?
Eu não falo sobre meus negócios porque descobri que todo mundo que fala acaba mentindo um pouco, ou muito, então você nunca pode me acusar de mentir se eu nunca falar sobre isso. 🙂
Mas acho que está muito claro pelas redes sociais que estou muito satisfeito com todos os lugares dos meus filhotes no universo.
“A diferença entre quando comecei e agora é astronômica”
Você fala no livro sobre a importância de se adaptar aos desenhistas com quem trabalha. Você já trabalhou com desenhistas brasileiros como o Mike Deodato e o Ivan Reis. Quais as características mais marcantes que você no estilo de cada um deles? Como foi se adaptar ao estilo de cada um?
Esses são dois dos meus colaboradores favoritos. Eu sempre fiquei vagamente surpreso com o quão intenso o Brasil é em seu amor por quadrinhos. Eu ouço muitos dos meus fãs brasileiros por volta das 6 horas da manhã, meu horário de trabalho quase todos os dias. A única grande diferença é que, quando a língua materna do seu colaborador não é o inglês, você deve garantir que o roteiro seja divertido para eles lerem e não uma tarefa árdua. Além disso, ambos os artistas que você mencionou têm estilos muito fortes, então é muito fácil escrever para as vozes deles. O que eu sempre recomendo aos escritores. Você não quer escrever sua voz, você quer escrever em direção à voz de seu colaborador. Seu trabalho é inspirá-los!
Os seus trabalhos também são muito marcados por uma preocupação e atenção por diversidade e representatividade. O quanto você acha que essas reflexões se fizeram mais presentes na indústria de quadrinhos desde o início da sua carreiras?
Estou muito feliz em informar que a diferença entre quando comecei e agora é… Astronômica. A conversa é melhor, o produto é melhor, todos sabem que poderiam estar fazendo melhor e a MAIORIA está realmente tentando. Muitos mais estão cientes de que a porta dos quadrinhos está aberta e há algo para todos. Nestes tempos, é bom escrever mundos onde as diferenças são celebradas e a diversidade é abraçada.
Aliás, quais você considera as principais transformações que você vivenciou na indústria de HQs desde o início da sua carreira?
A indústria nos Estados Unidos é basicamente dividida em três. Costumava ser uma indústria, mas agora existe uma indústria Marvel e DC, que se relaciona completamente com aqueles personagens para os quais eles estão alimentando com novas histórias, também existe o mercado independente de muito sucesso de obras com os direitos autorais pertencentes aos seus criadores. Image, Boom! e qualquer uma dessas editoras. Os autores podem, e muitas vezes conseguem, vender no mesmo nível do Homem-Aranha ou Superman. Por exemplo, Lumberjanes, Saga, Sex Criminals…
E então há um terceiro mercado, que é o mercado de jovens adultos / Raina Telgemeier. Ela inventou e milhares de pessoas a estão copiando para obter um pedaço do que ela construiu. Se você for a uma livraria americana, a seção de quadrinhos jovens adultos é enorme. Costumava ser uma prateleira. Agora, é cerca de metade da seção infantil e, às vezes, 1/3 da seção de ficção científica. Isso é incrível.
Além disso, quando eu estava chegando, nos primeiros dias da Internet, você ouvia das pessoas: “Oh, meu Deus!! Eu gostaria de poder comprar seu livro! Eu não posso comprar onde estou”. MAS, todos esses obstáculos desapareceram. Com o crescimento do digital, tanto como meio quanto como loja, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode comprar seu livro a qualquer hora e no formato que desejar.
Isso é simplesmente brilhante. Esse era o meu sonho. Costumávamos sempre receber estas cartas: “Moro em Wisconsin. Não temos uma loja de quadrinhos. Eu quero comprar seu livro!”. Isso quebrava os nossos corações, porque você imediatamente pensa que há mais mil pessoas como essa que nunca se deram ao trabalho de escrever para você. Agora, pelo menos, sabemos que todo mundo tem uma loja de quadrinhos no bolso.
“Meu estúdio está cheio de histórias em quadrinhos, livros e brinquedos e inspiração”
Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Estou tão otimista que vou pular esta pergunta porque, no momento em que você publicar esta entrevista os Estados Unidos terão mudado para melhor.
[lembrando que a entrevista foi concedida no início de novembro de 2020, antes das eleições presidenciais norte-americanas em que Trump foi derrotado pelo democrata Joe Biden]
Eu gostava muito do seu Tumblr. Porque você parou com as atualizações?
O Tumblr começou a censurar. Eles disseram que era para conter a pornografia, mas estavam apagando fotos do HULK porque tinha mamilos. Você pode pesquisar isso no Google. Está muito bem documentado. O Tumblr não sabia o que tinha quando o teve e agora todos nós o abandonamos. Por que você postaria coisas que podem ou não ser excluídas? Especialmente quando não há nada de errado com elas.
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual escreve seus quadrinhos e pensa os seus projetos?
Eu tenho um escritório no meio da minha casa. Eu trabalho tarde da noite. Meus filhos expressam muito claramente que gostam que eu fique acordado a noite toda de olho nas coisas. E isso me permite o silêncio que preciso para conseguir bons resultados. Meu estúdio está cheio de histórias em quadrinhos, livros e brinquedos e inspiração.
“Só porque você tem um canal no YouTube, não significa que sua voz é mais importante. Não é. Nem a minha”

Fico curioso em relação à sua relação com a crítica e a imprensa especializada em quadrinhos. Como jornalista, me vejo como parte dessa cadeia produtiva de quadrinhos que culmina na chegada de uma obra ao leitor. Vivemos em uma época de muitos influenciadores, blogueiros, youtubers e instagramers especializados em quadrinhos. Você tem alguma impressão em particular dos trabalhos desses profissionais?
Bem, o que a maioria dos críticos profissionais têm que lidar agora é que TODOS que lêem um livro podem falar sua verdade sobre ele. O boca a boca ainda é a maior força motriz dos quadrinhos. Todo mundo tem uma opinião. Só porque você tem um canal no YouTube, não significa que sua voz é mais importante. Não é. Nem a minha
Além disso, grande parte da imprensa vem e vai. Há muitas pessoas que entram e começam canais no YouTube e sua paixão não está puramente nos quadrinhos, a paixão é ver quantas visualizações eles podem obter. Alguns começam a dizer e fazer qualquer coisa que os leve a mais acertos. Tudo me lembra o J. Jonah Jameson. Não é que ele odeia tanto o Homem-Aranha, ele apenas vende jornais. Existem alguns canais que realmente vão para cima dos meus amigos porque eles acham que vão conseguir um grande número de seguidores.
Eu já fui superestimado. E avacalhado demais. As duas situações são estranhas. Então eu fico zen com tudo isso. Eu faço o meu melhor e espero o melhor.
Você pode recomendar alguma coisa que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Para as pessoas que estão lendo Escrevendo para Quadrinhos, acabei de ler um novo livro do John Cleese, do Monty Python, chamado Creativity. É um livro pequeno, como o On Diricting a Film, do David Mamet, ou o Sobre a Escrita, do Stephen King. É curto e vai direto ao ponto, muito poderoso. Uma das teorias potentes de John é a necessidade das pessoas criativas de abraçar o subconsciente mais do que o consciente – é daí que vêm todas as coisas boas. O livro era exatamente o que eu precisava e recomendo muito.
Também recomendo o documentário The Go-Go’s no Showtime. The Go-Go’s era uma banda dos anos 80 que eu realmente gostava. Eles eram um grupo feminino proto-punk conhecido por We Got the Beat. A história deles é muito interessante. E está cheio de falhas com as quais eles aprenderam. Como faço em Escrevendo para Quadrinhos, acho que compartilhar histórias de fracasso pode ser muito útil para outras pessoas. O fracasso pode ser tanto punitivo quanto necessário para o seu crescimento como artista. Como disse o baixista do The Go-Go’s: “Não aprendi absolutamente nada com nosso sucesso e aprendi tudo sobre mim mesmo com nosso fracasso”.
Além disso, Gangs of London. E Ted Lasso.

Brian Michael Bendis fala sobre Escrevendo para Quadrinhos
Conversei com quadrinista norte-americano Brian Michael Bendis sobre o lançamento da edição brasileira de Escrevendo para Quadrinhos – A Arte e o Mercado de Roteiros para HQs e Graphic Novels, publicado pela WMF Martins Fontes com tradução de Érico Assis. Esse papo virou matéria para a Folha de S. Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui.
Bendis é um dos nomes mais importantes da história da Marvel Comics. Ele teve papel fundamental na modernização dos personagens da editora no início dos anos 2000, criou Miles Morales e Jessica Jones e escreveu o arco de histórias mais célebre do herói Demolidor. Hoje ele trabalha na rival DC Comics, como roteirista da revista do Super-Homem.
Escrevendo para Quadrinhos adapta para livro a experiência de mais de 10 anos de Bendis como professor de roteiro para graphic novels na Portland State University, mas também é uma coletânea de relatos e bastidores, com a participação de nomes celebrados da indústria de HQs dos EUA. O meu texto, com aspas de Bendis, pode ser lido clicando aqui.