A Nébula: Rafael Coutinho comenta os dois primeiros meses do projeto de HQs do Medium Brasil

A Nébula completou dois meses de existência com 46 histórias em quadrinhos publicadas. A página foi criada no Medium dia 6 de abril de 2015 tendo como linha fina “Quadrinhos, Jornalismo e Cotidiano”. Até agora foram 17 quadrinistas publicando HQs sobre os mais diversos temas e nos mais variados gêneros. Odyr Bernardi falou sobre a redução da maioridade penal, Guilherme Caldas fez um tremendo relato da greve dos professores em Curitiba, Bruno Maron escreveu sobre o jogo desproporcional no porte de armas, LoveLove6 produziu sete trabalhos incríveis, e o site não para. Segundo o Érico Assis lá no blog da Companhia das Letras, “Acessar a Nébula é saber o que é o quadrinho brasileiro atual? A estatística pede pra dizer que não: tem uma cambada de autores e de estilos que não estão lá. Mas se um argentino ou outro gringo me perguntar onde se vê o quadrinho brasileiro atual — ou qual é a nossa Fierro — eu citaria a Nébula com todo orgulho ufanista”.

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Ao mesmo tempo que A Nébula parece ainda estar tomando fôlego e dando apenas os primeiros sinais de seu potencial como uma das principais plataformas do mundo dos quadrinhos nacionais, a versão norte-americana do projeto passa por sua primeira grande repaginação. Criado em setembro de 2013, o The Nib teve mais de mil e quinhentas HQs publicadas até hoje e no início da semana passada seu editor, Matt Bors, disse estar revendo a dinâmica e um pouco da linha editorial do projeto. Bati um papo por email com o Rafael Coutinho, o editor da Nébula. Conversamos sobre o potencial do projeto, a dinâmica de produção do site e sua linha fina e o despertar de projetos culturais em tempos de um crescente conservadorismo político. “Acredito muito no potencial da crise. Quero encontrar todo mundo dançando no fim dessa festa, lá na pista, surrados e com um sorriso no rosto e um toquinho de lápis quase no fim na mão”, me falou o Rafael. Saca só a nossa conversa:

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Você é o editor/publisher do Nébula, daí imagino que a linha editorial do projeto seja a sua cabeça. O site está pra completar dois meses, você tem essa linha estabelecida na sua cabeça? Após esse período inicial, você já consegue sintetizar esse linha editorial ou ela ainda está sendo estabelecida?

Ainda está sendo, de certa forma. Mas existem muitos níveis de entendimento disso. Em termos de conteúdo e histórias, acho que estamos só no começo. Ficou claro que não teremos o pragmatismo que os americanos praticam no Nib, porque somos um povo diferente. Também não quero ser um editor muito rigoroso, adoro quem convido e quero que a pessoa se sinta a vontade pra pirar, testar coisas, buscar desejos pessoais praquilo. Mas quero que tenha sempre algo mais “informativo” ou reflexivo, sempre manter um pé no real, no que está acontecendo ao nosso redor, e junto com algo mais livre. Quero que sempre haja autores jovens ou desconhecidos, que gosto do trabalho e que formarão um grupo interessante com artistas mais experientes. Precisamos de leitores, então preciso equalizar essa questão da quantidade de seguidores que o artista tem também, mas não será de forma alguma um exercício de números o site. É pra ser bom, interessante, pra todo mundo poder trabalhar com gosto, e mostrar força. Pra ser representativo dessa cena tão plural e diversificada.
E claro, existe a minha participação nisso tudo. Chamo e aceito proposta de artistas que admiro e gosto, mas publicamos já alguns dos quais não conhecia nada. Tento tocar isso não como um projeto meu, mas uma plataforma que me foi sedida pra administração e curadoria. Dependo do que os outros postam, desenham, e da qualidade e força de divulgação de todos os envolvidos. É tudo junto.

E como é fazer esse papel de editor? Você pensa as pautas de cada atualização ou os parte dos autores o tema a ser trabalhado?

Tem variado. Mas é o mesmo que venho fazendo na Narval há quase seis anos. Editar. O Leandro Demori (editor do Medium Brasil) tem me ajudado bastante na questão das pautas, e espero que consigamos fazer isso um pouco mais parte do dia-dia do site. Mas é complicado pedir a um artista que trabalhe com algo fresco, considerando o tempo que se leva pra fazer uma hq. Não é como um jornalista. E é importante deixar claro que quadrinistas não são jornalistas. Podem e fazem esse trabalho de refletir a notícia, mas não é necessariamente o que ele melhor faz. Precisamos sempre ponderar isso, não somos um site de notícias, mas de quadrinhos.

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Qual você acredita ser o potencial de um projeto como esse? Você vê possibilidade do Nébula chegar em um público que vá além do leitor usual de quadrinhos?

Sim, e acho que já é evidente que chegamos. As histórias da Gabi LoveLove6 ecoam pelo mundo todo, bateram recorde de views no médium internacional, porque tratam de questões humanas. O Lucas Gehre conseguiu um público muito volumoso de leitores usando o formato de listas, tão popular na internet, pra falar de temas variados e filosóficos. As histórias do Guilherme Caldas sobre a violência contra os professores em Curitiba também evidenciaram essa força do conteúdo que os quadrinhos tem de transmitir uma ideia, uma informação, ou crítica. Espero que isso cresça.

Sobre as pessoas participando do projeto e a dinâmica do Nébula: há alguns colaboradores mais frequentes, que já publicaram mais de uma vez, e alguns nomes novos. Esses nomes já estão definidos na sua cabeça há muito tempo? Como você tá trabalhando com a periodicidade das publicações?

Não. Tenho tentado definir um grupo do mês, no mês anterior. Esse grupo vai se formando aos poucos por contato dos artistas, meu ou por pauta. Também há essa coisa da equalização de forças no mês, jovens com experientes, conhecidos com desconhecidos. Além do orçamento também: postagens novas, artes já prontas, charge, hás mais complexas. Projetos especiais, coberturas de notícia, histórias continuadas, uma, duas ou quatro postagens por mês, etc. Montei uma tabela com o que posso pagar desse material todo e consulto os artistas se eles topam pelo orçamento que tenho. Assim vai.

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Como o Nébula também se propõe a fazer jornalismo, queria saber a sua opinião em relação ao papel do jornalismo hoje. Até onde você acha que ele pode ser didático e opinativo sem perder credibilidade e deixar de ser factual?

Não acho que o que fazemos ali é jornalismo, porque realmente somos mais opinativos e damos muito mais espaço pros quadrinistas se posicionarem. Não peço uma “cobertura neutra” pra ninguém sobre algum tema, pelo contrário. Então nesse caso não me sinto confortável pra descer o pau no jornalismo atual, acho que já ficou claro o tamanho do problema atual. Ando mais preocupado com a questão em torno da realidade, que anda cada vez mais difícil de compreender.

O The Nib americano é sem dúvida um dos projetos mais sensacionais relacionados a quadrinhos que a internet já viu. Tem uma curadoria muito bem definida e me parece ser um referencial pra vocês na versão brasileira. Dia 29 de maio o Matt Bors, editor do Nib, publicou um texto no site explicando que o projeto ia mudar um pouco, ficaria menos regular e mais dedicado a experimentações. Ainda não deu pra sentir grandes mudanças no site americano, mas você tem acompanhado essa mudança? De alguma forma pode influenciar o que vocês estão fazendo aqui?

Não, e nem sabia disso. Na verdade não acompanho o The Nib. Acho muito forte e legal, mas a qualidade das coisas era muito variada e isso me incomodava um tanto. E pra te ser sincero, leio quadrinho demais, e quando tenho um tempo livre não corro pro Nib pra me atualizar. Evito quadrinho quando posso. Mas acho ótimo essa mudança. Conversei com o Matt quando estávamos começando aqui, e ele foi muito simpático, me alertou pra muitos aspectos da coisa toda que me deixaram bem preparado aqui. Não acho que somos o The Nib brasileiro, por conta do que disse anteriormente: não temos esse pragmatismo e paixão por estatísticas, somos experimentais por excelência. Não é nem bom nem ruim, é o que é.

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Outra coisa que o Matt Bors comentou foi da possibilidade de tentar publicar uma versão impressa do The Nib, via algum site de financiamento coletivo. Você também tem algo assim em mente?

Não, mas lembro dele ter comentado. Acho ótimo, tem muita coisa ali que merece demais ser impressa. Mas tenho gostado muito de não ter nem minimamente vivo o desejo de impressão nesse projeto. Quero muito que seja algo estritamente online por enquanto, e tenho gostado cada vez mais disso.

O Brasil e o mundo estão vivendo um momento político bastante conturbado. O debate está bastante preto e branco e extremista, entre esquerda e direita. Como você acha possível fazer bom jornalismo e emitir opiniões bem fundamentadas no furor dos acontecimentos?

São opiniões e posicionamentos que precisam sair de dentro dos autores. Do ponto de vista de militância e engajamento, tenho pra mim que o site presta um serviço sim, numa guerra na qual vivemos e que pra mim é muito clara. Contra o retrocesso, a estagnação, a falta de sentido das coisas, os significados trocados. Mas isso é meu, não imponho nem exijo isso dos artistas. Cada um encara de um jeito, e sei que arte não responde aos interesses políticos dos indivíduos, embora muitas vezes vá pra esse lado. É uma ferramenta de comunicação, então portanto seja política nesse sentido mais amplo, mas pode ser apenas objeto de uma busca obscura, abstrata, sensível e pessoal. E gosto muito de ver isso tudo que fazemos como uma engenhoca que produz objetos que não se encaixam, rebimbocas loucas, que as vezes só serve pra deixar um sorriso no rosto, ou um gosto amargo na boca. E que as vezes essa é a maior resposta que podíamos dar pro Cunha. Às vezes.

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Os quadrinhos do The Nib fazem jornalismo e emitem opiniões a partir de uma leitura de mundo explicitamente de esquerda. Pelo que conheço do seu trabalho e das suas opiniões, imagino que você vá seguir essa mesma linha editorial por aqui. A maior parte da grande imprensa brasileira é de direita. Como você acha que o Nébula pode contribuir pra esse cenário?

Que loucura isso, né? Acho que nunca tinha parado pra pensar assim: nossa imprensa é de direita…
Bom, sou claramente de esquerda, e acho muito pouco provável me mandarem uma proposta com alto apelo direitista. Mas tenho amigos de direita, gosto de conversar sobre, entender o lado de lá. Se a pessoa é sensata e progressista e humanista num sentido mais amplo, acho que toparia conversar sobre uma proposta. Mas é isso… no nosso ramo é raro. E não tenho interesse em reforçar preconceitos ou nada do tipo. Gente maluca não topo na Nébula, e sei julgar quando a maluquice tomou conta da conversa.

Outro dia você comentou no Facebook que em 2015 “vai faltar dinheiro e trabalho para artes em geral”. O Nébula é uma reação à essa falta de perspectivas para a cultura brasileira? Você consegue pensar outras semelhantes?

Espero que sim, mas a cultura brasileira é forte. Temos jogadores de alto calibre nessa guerra e ninguém vai parar. A melhor resposta que podemos dar nesses tempos é não parar. Acredito muito no potencial da crise. Quero encontrar todo mundo dançando no fim dessa festa, lá na pista, surrados e com um sorriso no rosto e um toquinho de lápis quase no fim na mão.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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