Em meio aos nomes para a minha matéria sobre quadrinistas independentes que o Rafael me ajudou a selecionar, já conhecia o Marcelo d’Salete. Tinha lido a hq Encruzilhada, que ele lançou em 2011. Ele não costuma trabalhar com humor e está distante de outras temáticas em voga, como relacionamentos e aventura. Mesmo assim, o Marcelo publicou por editoras maiores e até mesmo em outros países. Bati um papo por email com ele. Olha aí:
Você trabalha de uma forma peculiar: suas obras costumam ser impressas e abordam temáticas muito sociais. Além do custo da impressão, seus quadrinhos não são de escapismo. Se eu tivesse de apostar, diria que você escolheu investir numa das rotas mais ousadas e difíceis imagináveis para qualquer quadrinista. É isso mesmo?
Meu trabalho com HQs surgiu da vontade de contar histórias que me interessavam. Poucas vezes fiz trabalhos de HQs mais comerciais. Embora seja um leitor de HQs, sempre fui muito influenciado pelo cinema. Queria falar de conflitos, mostrar pessoas, revelar cotidianos de um modo que já via em filmes. Tudo isso com um jeito dinâmico e sugestivo de contar a história, dando ênfase as possibilidades da imagem. Como trabalhava com histórias razoavelmente longas, cerca de 20 páginas, isso indicou a necessidade de usar um formato maior, como o livro. É um caminho difícil, mas é a forma como eu entendo a criação de HQs. Tive a oportunidade de encontrar editoras que se interessavam pelos trabalhos, inclusive fora do país (Argentina, Eslovênia). Vez ou outra recebo notícias dos leitores dos meus livros, mas considero uma incógnita quem lê as minhas histórias. Tenho consciência que é um leitor que gosta de ver coisas novas, um pouco diferente do traço de super heróis ou de histórias apenas de humor.
Nós vemos muitos filmes nacionais com temáticas urbanas e sociais, mas não tanto quadrinhos. Ainda há muitas coisas de aventura e ação e hoje muitas obras mais intimistas, sobre relacionamentos principalmente. São poucos trabalhos mesmo do tipo ou é difícil ter acesso a quem produz esse material? Você consegue pensar em mais gente?
Elaboro histórias geralmente sobre conflitos sociais em contextos urbanos. Não foi uma escolha prévia e fechada. Na verdade isso surgiu a partir da história Noite Luz, publicada inicialmente na revista Front em 2002. A história obteve boas críticas e me incentivou a expandir esse universo. Embora hoje o contexto temático das HQs seja maior que antes, ainda considero pequenas as iniciativas com temáticas mais sociais, que exploram os muitos universos de uma cidade grande a partir de personagens comuns. Isso até é presente em histórias curtas de revistas mix, mas no formato de álbum são poucas realizações. Existe, em todo caso, autores muito bons como o Pedro Franz, Gerlach, Marcelo Quintanilha, Rafael Coutinho, André Kitagawa, Mutarelli etc.
Quando conversamos pela primeira vez você me falou da influência de São Paulo no seu trabalho. Você viveu em várias regiões da cidade e suas histórias costumam ser ambientadas na cidade. Você pode falar um pouco sobre a sua relação com a cidade e como ela reflete no seu trabalho?
Morei em São Mateus, Artur Alvim e no Butantã e, durante uns dois anos na adolescência, trabalhei como office boy no centro. O centro de São Paulo me impressionava, seja pela arquitetura ou pelo universo de pessoas que passavam por lá. Isso tudo me conduzia para a criação de histórias. As ideias também surgiam de conversas com amigos, familiares ou notícias de jornal. Além disso, as minhas primeiras influencias vieram do universo de arte do colégio onde estudava, o Carlos de Campos no Braz. Lá existia uma forte cena de graffiti. Os artistas de rua têm um olhar especial sobre a cidade como suporte. Conversas sobre graffiti, pixação e intervenções na cidade estavam sempre presentes. É desse modo que a pixação, o graffiti, a violência, o consumismo e as diferenças sociais tornaram-se temas importantes nas minhas histórias.
Seu próximo trabalho é ambientado no Brasil colonial, certo? É um mundo muito distante da urbanidade de Encruzilhada e Noite Luz, né?
Os livros Noite Luz, 2008, e Encruzilhada, 2011, abordam um contexto essencialmente urbano. Neles apresentei uma visão sobre grandes cidades como São Paulo. Esse interesse ainda não se esgotou, tenho vários roteiros na gaveta que espero transformar em HQs. No momento, estou trabalhando numa grande história sobre o Quilombo dos Palmares. Isso surgiu a partir de leituras antigas, desde 2006. A história de Palmares é uma grande epopeia do Brasil colonial. É um dos fatos mais importantes do século XVll, assim como as invasões holandesas. Há poucas HQs sobre Palmares e elas são pequenas em relação a grandiosidade e possibilidades narrativas que a história original contem. Minha intenção é contar uma história sobre Palmares bem construída, instigante e poética. Não é um trabalho apenas histórico, documental, mas de recriação da história de Palmares pelos quilombolas, usando dos recursos narrativos das HQs hoje. Fazer esse trabalho exigiu uma grande pesquisa. Li muitos trabalhos sobre o tema e coletei muitas referências do período. Foi cansativo, mas posso dizer que foi muito enriquecedor também. Terminei de fazer a primeira versão do roteiro em 2010. Desenhei os esboços em 2011 e agora estou na fase de finalização dos trabalhos. Imagino ter tudo pronto até o final de 2014. Pode-se dizer que estava bem acostumado antes com o desenho de cidades. Fazer Palmares foi uma oportunidade de ir para um universo desconhecido em termos de desenho. Elaborar paisagens com mais vegetação, florestas e rios, foi um desafio novo e interessante.
Ainda sobre essa próxima hq, você comentou que estava criando mesmo sem ter uma editora. Como funciona esse modo de produção? Você me contou que seriam mais de 300 páginas, não é arriscado investir tanto tempo em um trabalho e só depois encontrar algum lugar para publicar?
Primeiro eu realizo o trabalho e depois procuro onde publicar. Estou seguindo o mesmo método de antes. Tive a sorte de encontrar pessoas que se interessavam pelo trabalho. Pretendo fechar com uma editora assim que o projeto estiver mais adiantado, mas posso dizer que já comecei a conversar com alguns profissionais. Não tenho problemas em conversar com editores, acho que um olhar externo é importante, mas considero difícil de fechar algo que ainda não tem forma definida. No meu caso, mais interessante que o roteiro e esboços, é o resultado final. Em geral eu mudo muito a história durante o percurso. Hoje, existem muitas formas de publicar o trabalho. Caso não seja de forma impressa, não vejo problemas em publicar na internet.
Você também dá aulas de quadrinhos. Nas minhas conversas com quadrinistas tenho tratado muito dessa possibilidade de existir uma cena dos quadrinhos nacionais. Pelos seus alunos, o que você pode dizer sobre isso? Há mesmo uma nova leva de autores que foge ao padrão em termos de quantidade e investe em variados gêneros e estilos?
Uma correção: sou professor de artes visuais. Já fiz oficinas de HQs, mas não dou aulas somente de quadrinhos, infelizmente… A produção de HQs hoje cresceu muito. Fica difícil de acompanhar tudo que esta sendo lançado e creio que temos muitos novos trabalhos que merecem atenção. Há uma maior comunicação entre os quadrinhistas, isso é muito interessante para trabalhos coletivos. Muitos desses quadrinhistas estão procurando expandir os limites das HQs em termos de linguagem, gênero e público. Imagino que esse é o nosso grande desafio – mostrar que as HQs destinam-se também ao público adulto e podem trazer reflexões singulares e complexas sobre o mundo atual, assim como a literatura e o cinema.
Marcelo D’Salete é referência para todo apreciador de literatura, cinema, cultura urbana e HQs, claro. A força das histórias e dos personagens criados por D’Salete, sem dúvida surgem dos conflitos e dilemas que expressam. Mas nada disso seria suficiente para o resultado que alcançam sem a sutileza, sensibilidade e precisão com que são tratatos no traço-papo reto do autor. Excelente entrevista.