Das 380 páginas em preto e branco do álbum Solitário, apenas 80 apresentam alguma representação textual, seja em forma de balões de fala ou de leituras feitas por seus protagonistas. Segundo o autor da obra, o quadrinista francês Chabouté, sua intenção ao minimizar ao máximo a presença de texto tem como objetivo permitir que o leitor se aproprie da história.
“A imagem fala por si só e possibilita que o leitor imagine o que vê”, diz o artista em conversa com o blog. “Eu deixo muitas portas abertas para que o leitor faça seus próprios diálogos, sua própria história, seu próprio passado e próprio futuro dos personagens. Não imponho nada; proponho”, afirma.
Solitário é o terceiro álbum de Chabouté publicado no Brasil e, assim como os dois anteriores, Moby Dick e Um Pedaço de Madeira e Aço, ganha edição em português pela editora Pipoca & Nanquim com tradução de Pedro Bouça. O livro é protagonizado por um eremita já com seus 50 anos que nasceu e cresceu no farol instalado em uma ilhota afastado do mundo.
O foco do quadrinho está nas breves interações desse protagonista solitário com o mundo além de sua ilha e em sua imaginação abastecida pela leitura de um dicionário.
Na minha conversa com Chabouté, o autor falou sobre o ponto de partida de Solitário, comentou sobre suas técnicas e sua rotina de trabalho, expôs algumas de suas influências e ressaltou a importância do silêncio em seus trabalhos. Papo massa traduzido pelo tradutor/ pesquisador/ editor/ crítico Érico Assis (valeu, Érico!). Saca só:
“Não sou uma pessoa solitária nem me sinto solitário, mas trabalho sozinho e me isolo bastante por conta das folhas em branco”
Eu vejo vários padrões nos seus três livros publicados no Brasil até o momento, mas pouca coisa se faz mais presente para mim em Moby Dick, Um pedaço de Madeira e Aço e Solitário como a melancolia. Enquanto lia as três obras eu senti o tempo todo essa mescla de sensação de não pertencimento com deslocamento e introspecção. Você costuma pensar muito sobre solidão e melancolia? Você se considera solitário e melancólico?
Não sou uma pessoa solitária nem me sinto solitário, mas trabalho sozinho e me isolo bastante por conta das folhas em branco. Quanto à melancolia, não sei dizer. Mas, sim, não sou muito de conversa e sou ainda menos nos meus livros.
Solitário é seu trabalho mais recente publicado no Brasil. Você pode me falar um pouco sobre o ponto de partida dessa obra? Como ela teve início?
Dez anos atrás me perguntaram: que livro você levaria para uma ilha deserta? A pessoa que fez a pergunta, um professor, disse que levaria só um dicionário, porque com um pouquinho de imaginação cada verbete daria um conto…
Achei a resposta incrível, e a ideia foi se desenvolvendo até eu chegar em um livro de 376 páginas. Um autor como eu, que desenha solitário, que escreve solitário e que passa o dia trabalhando solitário… eu fico sozinho diante de folhas em branco e com folhas em branco. Meu trabalho é solitário e me alimento de imaginação ao longo de cada dia.
“Eu me via muito, por exemplo, no personagem de Ahab, com essa vontade de ir até o fundo em tudo, mas parando quando estou perto da loucura”
Aliás, você pode me falar se há algum ponto de partida em comum para o início do desenvolvimento dos seus trabalhos?
Uma ideia simples, que toma forma ou não… Uma sementinha que eu deixo germinar, os ingredientes que me agradam e que encontram seu lugar na história. Como a gente faz na cozinha quando quer preparar um bom prato.
Os seus trabalhos tratam de sensações e ideias que vão ao encontro do que é ser humano. Penso na obsessão retratada em Moby Dick, no encontro de várias emoções e sentimentos em Um Pedaço de Madeira e Aço e nas reflexões que você propõe sobre a imaginação em Solitário. Esses temas são caros a você? Você costuma pensar no que faz de nós humanos?
Só tento trabalhar com sinceridade, falar do que me toca, do que há ao meu redor, do que eu sei… O que me emociona é o que eu tento transmitir no texto e nas imagens.
Eu me via muito, por exemplo, no personagem de Ahab, com essa vontade de ir até o fundo em tudo (que é uma coisa que se precisa na minha área, pois ela é bem difícil), mas parando quando estou perto da loucura.
“Eu deixo muitas portas abertas para que o leitor faça seus próprios diálogos, sua própria história, seu próprio passado e próprio futuro dos personagens”
Aliás, a imaginação é um aspecto muito importante de Solitário. Qual você considera a importância do estímulo à imaginação na vida de uma pessoa?
Permitir-se os silêncios, deixar espaço, encontrar a melodia gráfica que sirva melhor ao texto… Com os desenhos, trazer uma outra dimensão ao texto, encontrar a harmonia entre texto e imagens, um equilíbrio narrativo para que o leitor possa apropriar-se da história, que seja um escape, que lhe deixe uma porta aberta ou caminhos a cruzar…
É o ponto de vista de qualquer pessoa que faz uma história. Eu não exagero no texto para não dar muita importância aos personagens. A imagem fala por si só e possibilita que o leitor imagine o que vê. Eu deixo muitas portas abertas para que o leitor faça seus próprios diálogos, sua própria história, seu próprio passado e próprio futuro dos personagens. Trabalho sobre um eixo central onde cada leitor pode tomar um rumo e se apropriar da história. Não imponho nada; proponho. Na literatura, o leitor “imagina” a imagem. Aqui, as imagens estão dadas e o leitor imagina o texto que elas podem ter.
Se eu cumpri minha função, o leitor vai construir seus diálogos onde não há nenhum. Creio que a melhor maneira de transmitir uma emoção não é escrevendo. Não é, mas sugerindo. Cada leitor tem que captar a emoção a seu modo, de um jeito que torne ela sua e dê suas próprias tonalidades à história.
“O que mais me inspira e influencia meu trabalho é o que se passa ao meu redor, meu cotidiano”
Outro padrão nos seus trabalhos é o preto e branco. Por que a opção pelo preto e branco? Há algum artista que tenha influenciado essa sua opção?
Nenhum artista por si só me influenciou nessa opção, mas a lista de artistas que influencia meu trabalho é comprida… Didier Comès, Hugo Pratt, Alberto Breccia, Dino Battaglia etc…
Mas o que mais me inspira e influencia meu trabalho é o que se passa ao meu redor, meu cotidiano.
Eu associo minhas cores, ou a falta de cores, à história que quero escrever. Em todos meus livros fiquei no preto e branco porque a cor não traria nada. Foi só em Purgatoire que vi necessidade de cores.
“Tenho várias pistas e rotas, espero que as ideias amadureçam e dou tempo para amadurecem, depois volto para ver o que consigo fazer”
Você poderia me falar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? Você costuma finalizar um roteiro antes de começar a desenhar?
O que me atrai de início é uma atmosfera ou um clima. Fico pensando, deixo aquilo rodar na minha cabeça, mas não crio nenhum entrave, deixo que venha. Chega um momento em que se acumulam as vontades e as ideias, que as coisas ficam um pouco mais precisas. Tenho caderninhos que levo por tudo, onde anoto ideias soltas e em algum momento as coisas tomam forma, se assentam. Tenho várias pistas e rotas, espero que as ideias amadureçam e dou tempo para amadurecem, depois volto para ver o que consigo fazer.
Você pode falar um pouco sobre as suas técnicas, por favor? Você faz tudo a mão, com tinta? Há algum elemento digital?
Costumo fazer o lápis inteiro do livro, montar as páginas e aí deixo quinze dias parado antes de passar ao nanquim. Estes quinze dias me dão um pouco de perspectiva em relação à história e talvez me façam refazer ou corrigir algumas coisas. Quase nunca me jogo numa história se não estiver bem fundamentada. Utilizo muito documentos, fotos. A internet é uma mina de informações. Não utilizo o computador na criação. Muito pelo contrário, trabalho de maneira bem tradicional: nanquim, caneta, pincel e papel.
Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA, Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil e a França vê o fortalecimento da extrema-direita. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Absolutamente sem otimismo! Mas uma música, uma melodia ou uma boa história nos entusiasma. Isto é comprovado e nos dá alguma esperança…
O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos ocidentais, mas são culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho é lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?
Hoje a internet deixa que vejamos o trajeto que um livro faz até o outro lado do planeta e eu confiro as percepções, as imagens e as avaliações dos leitores de Um pedaço de madeira e aço ou de Solitário que chegam do Brasil ou de outros países. E gosto muito.
Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Leio poucos quadrinhos, ainda menos livros. Li recentemente um livrinho chamado Yellow Cab, do senhor Benoit Cohen…
Ouço bastante música, jazz e blues (acústico). Do jazz, um disco sensacional: Jasmine, de Keith Jarrett e Charlie Haden… Do blues, todos os álbuns de Kelly Joe Phelps
Você está trabalhando em algum projeto novo atualmente?
Sim, estou trabalhado em um projeto novo e escrevo várias histórias ao mesmo tempo. Mas não falo dos meus projetos, pois sou da opinião de que dissipa a energia que posso investir em um livro futuro.
“Faço quadrinhos porque quero contar histórias e transmitir emoção…”
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho?
Trabalho em casa, preciso de calma e tranquilidade para trabalhar. Trabalho bastante ouvido música… Mas preciso da solidão para entrar no jogo.
O que mais te interessa na linguagem dos quadrinhos?
Os quadrinhos são uma ‘ferramenta’ formidável para contar histórias, de poder desenhar o que não se quer escrever e poder escrever o que não se deseja desenhar, tudo com o simples fim de servir à melhor história.
Brincar com o leitor, propor o caminho narrativo, convidá-lo, acompanhá-lo, mas sempre de um jeito que ele possa entender…
Faço quadrinhos porque quero contar histórias e transmitir emoção…
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Eu fui (e sou) grande leitor de Asterix e Lucky Luke, antes de me jogar nos quadrinhos dos anos 70 e mais tarde passar a revistas como Métal Hurlant ou À Suivre, na França.