Papo com Lelis, autor de Reconexão: “No meu dia a dia vejo como o uso excessivo da tecnologia e a vivência do mundo virtual têm afetado as pessoas. Indistintamente da idade que têm”

Entrevistei o quadrinista Lelis sobre o álbum Reconexão, HQ de 48 páginas recém-publicada pela Abacatte Editorial. Esse papo virou matéria no caderno Pensar do jornal Estado Minas, publicada na sexta-feira da semana passada (25/10) e disponível para leitura clicando aqui.

Reconexão tem como foco a presença crescente de tecnologias digitais na rotina das pessoas. O quadrinho tem início com a mãe do jovem Luiz pedindo para que o filho largue o celular e vá jogar bola com os amigos que o aguardam no campinho de terra em frente à sua casa. O garoto esquece dos colegas, investe no joguinho em seu aparelho e é transportado para uma realidade paralela habitada por robôs que patrulham o local contra a presença das crianças perdidas que acabam por lá. O menino precisa descobrir como fugir dessa cilada virtual.

Recomendo a leitura da minha matéria sobre a obra e depois a entrevista a seguir. Nela Lelis fala sobre o ponto de partida de Reconexão, trata de suas técnicas e materiais de trabalho, comenta sobre a relação dele com tecnologias digitais e adianta um pouco de seu próximo trabalho com o roteirista francês Antoine Ozanam – seu parceiro em Goela Negra. Saca só:

Quadro de Reconexão, álbum do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial

Houve algum ponto de partida específico, algum momento de inspiração em particular, para o início da construção desse quadrinho? 

A história desse álbum é bem curiosa. Um dia marquei um encontro com uma editora aqui de Minas para apresentar um projeto de livro de imagens. O livro trata de questões universais: luto, perdas, ganhos. Enfim, coisas da vida. Montei o PDF com algumas imagens finalizadas e outras em esboço. Sentamos para falar sobre ele enquanto ela via as imagens. No segundo momento, ela me disse que gostaria de fazer o Lobato em quadrinhos e tal. Aí eu fiquei pensando enquanto ela falava. Pensei muito no Lobato, de como vivíamos quando crianças, porque o Lobato me remete a isso. Saí da editora sem uma resposta sobre meu livro de imagens nem tão pouco confirmando que iria adaptar as histórias do Sítio para os quadrinhos. Cheguei em casa e numa sentada escrevi Reconexão. Acho que ouvindo a editora e pensando na minha infância e o tanto de coisas que fazíamos ao ar livre, comparadas às coisas que as crianças e o adolescentes fazem hoje, acho tudo isso me inspirou a escrever o livro.   

Quais técnicas e materiais você utilizou para a produção de Reconexão?

Uma técnica super simples e das mais baratas. Desenho com grafite 2B sobre um papel reciclado, tipo sulfite, aquele de cor creme, e que é super barato. Depois digitalizo a imagem e faço a colorização no photoshop. Só que a paleta de cores e o jeito de pintar em aquarela são tão fortes em mim que até os franceses às vezes se confundem pensando ser um aquarela realmente.

“Acho que nunca entrei naqueles debates sem fim sobre coisas que nunca resolveremos em uma rede social”

Página de Reconexão, obra do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial

Quando você pensa um quadrinho como Reconexão, você costuma ter um público específico em mente? Você produz levando em conta se uma obra é para crianças ou adultos? 

Acho que o Reconexão pensei num primeiro momento em fazer para os jovens. Mas, claro, há um mea culta ali. Por isso é para todas as idades. No meu dia a dia vejo como o uso excessivo da tecnologia e a vivência no mundo virtual têm afetado as pessoas. Indistintamente da idade que tem. 

Eu gostaria de saber sobre a sua relação com tecnologias. Como são os seus hábitos de uso de celular, tablets e afins?

Realmente demorei um pouco a ter um celular tipo smartphone. Mas, depois de algum tempo, e por questões profissionais e também por se mais um instrumento de comunicação com a família, aderi. Tenho um bom computador lap top, que ligo em um monitor maior para fazer os quadrinhos, digitalizar as aquarelas e também para filmar e editar pequenos filmes. Essas máquinas, para artistas gráficos precisam ser boas. Mas paro por aí. Não sou de ficar horas em uma rede social por exemplo. Acho que nunca entrei naqueles debates sem fim sobre coisas que nunca resolveremos em uma rede social. No smartphone sim, sempre olho o wattsapp mas evito compartilhar o que me chega. Participo de 2 grupos e mesmo assim no modo silencioso. Vejo muitas notícias nos portais. Mas o que eu gosto mesmo é de filmes e de futebol. Acho que das tecnologias, essa é que me prende mais. Mas vejo quase que exclusivamente pela TV.

“Para projetos de quadrinhos muito pessoais, quando eu sou o roteirista também e que posso gerenciar meus prazos, prefiro usar aquarela”

Página de Reconexão, obra do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial

Aliás, na maior parte das vezes você faz uso de técnicas de ilustração e pintura manuais. Como é a sua relação com técnicas digitais de ilustração?

Ultimamente tenho usado a técnica de colorização digital para os quadrinhos. Principalmente para o mercado francês. Acho que, das artes, é uma expressão das mais complexas que existem. Imagine só, construir todo um cenário que tem que se repetir por todas essas páginas, dar vida a um sem número de personagens que precisam estar coerentes fisicamente durante toda a sequência do livro, me ater aos prazos curtíssimos da produção do livro e ainda cuidar de minha carreira como ilustrador e escritor de livros infantis. Por isso tudo, tenho optado pelo digital. Sem contar que o material que uso é de primeira linha: papel, pigmentos e pincéis profissionais. Ainda não pagam o suficiente para isso. Agora, para projetos de quadrinhos muito pessoais, quando eu sou o roteirista também e que posso gerenciar meus prazos, aí prefiro usar aquarela mesmo. 

Ver alguma presença de tecnologia em Reconexão me fez notar como tecnologias e modernidades estão pouco presentes ou completamente ausentes de seus trabalhos prévios. Como você chegou na estética desse universo paralelo tecnológico retratado no quadrinho?

Pois é. Foi um desafio. A primeira coisa que me ocorreu é que eu teria que criar um cenário formado por placas de computador, fusíveis (acho que nem usam isso mais), conectores, essas pecinhas todas. Então eu fui pesquisar. Salvei um monte de fotos de placas, de componentes e também pesquisei alguns nomes dessas peças para ficar no contexto. O resto foi só imaginação mesmo. Fui montando tudo, buscando coerência. Por exemplo: sempre ouvimos falar sobre lixo tecnológico. Então imaginei que esse lixo deveria estar depositado no fundo do mar que é um dos lugares mais puros da terra e também um dos mais sensíveis aos agentes poluentes. 

“Esperança está na raiz do que eu acredito”

Página de Reconexão, obra do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial

O final de Reconexão me soou ligeiramente sombrio, de certa forma coerente com a realidade pouco esperançosa em que estamos vivendo. Como você vê o mundo hoje?

Ramon, sou um Cristão Protestante. Esperança está na raiz do que eu acredito. Obvio que os embates do dia a dia nos fazem amolecer às vezes. Há tantas desigualdades, tantas injustiças que por vezes até essa esperança titubeia. Mas a questão é, e é assim que acredito, que somos falhos. Temos a natureza caída e precisamos sempre lutar contra essa queda. Às vezes esperamos atitudes altruístas das outras pessoas mas se examinarmos a nós mesmos, não somos assim naturalmente. Precisamos nos esforçar muito para agirmos assim. Então, se eu sei que naturalmente eu não sou assim, fica mais fácil fazer diferente, algo inusitado, contra a minha natureza. É uma espécie de vitória. 

Você é otimista?

Sim, claro. Tem um negócio que é o muito certo. Sempre, principalmente aqui no Brasil, precisamos de um super-herói que vai nos salvar dos nossos males. E depositamos todas as nossas fichas nesse ídolo. Mas, se cada um de nós começasse a cuidar da sua rua, do seu bairro, do seu vizinho, da sua cidade, talvez, com o tempo, nem precisássemos mais da figura do político como está instituída. Todos nós seríamos um, no melhor sentido da palavra. 

Você tem esperanças por melhorias?

Só individuais, que repercutirão no coletivo. Nada desse negócio de cima pra baixo.  

“Estou cercado de miséria, de amor, de ódio, de desavenças, de perdão, de riqueza, de arrogância, de medo, de coragem, de saúde, de doença. Tudo isso é mote para histórias”

Página de Reconexão, obra do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial

Como as suas impressões em relação à nossa realidade impactam os seus trabalhos?

Estou cercado de miséria, de amor, de ódio, de desavenças, de perdão, de riqueza, de arrogância, de medo, de coragem, de saúde, de doença. Tudo isso é mote para histórias. Em 2001 escrevi um livro chamado Saino a Percurá. Uma das histórias se chama Mudernidades. Nela, o vaqueiro Jovino de Tião Ferrêra acha uma TV e fica tão fascinado com ela que se esconde de todo mundo dentro de um poço. Para ele, aquela realidade era tão mais interessante que sua vida real que acaba morrendo lá mesmo, no poço, grudado na TV. Acho que essa é a mesma história de Reconexão. Só a tecnologia dos dias de hoje ficou mais avançada e mais viciante.

Como leitor e autor, o que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Eu gosto do Cris Ware mas ele me deixa tonto. 

Há algum plano de lançamento de Popeye no Brasil? 

Que eu saiba não.

O que você pode adiantar sobre o seu próximo projeto com o Antoine Ozanam?

Ah, é uma história pessoal do Antoine. Ele ainda vai me enviar a sinopse completa, só fiz as primeiras 10 pranchas. Só sei que é profundamente francesa, com relatos bem pessoais se rementendo a um lugar e personagens bem específicos. Ou seja, terei que me tornar um francês para fazer esse novo álbum. Nem se for um francês caipira.

A capa de Reconexão, obra do quadrinista Lelis publicado pela Abacatte Editorial
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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