Os trabalhos dos 44 artistas responsáveis pelas 108 páginas da revista Pé-de-Cabra tem como foco televisão. O curador e editor da publicação, Carlos Panhoca, disse ter escolhido o tema porque acredita que a TV permite acesso ao “Brasil de verdade”.
“O campo de batalha REAL, político e social, é todo ali”, diz Panhoca. “Presidentes tomam golpes, carreiras são arruinadas, Geisy Arruda é alçada ao estrelato. Tudo acontece ali”.
Lançada anualmente desde 2018, a revista teve a capa de sua edição de estreia assinada pelo francês Pochep, a capa do segundo número com arte de Emilly Bonna e agora a ilustração da capa ficou com Benson Chin, membro do coletivo O Miolo Frito.
Assim como fiz às vésperas do lançamento da primeira e da segunda edições, volto a entrevistar Panhoca. Falamos principalmente sobre o tema escolhido por ele para esse terceiro número, mas também sobre o impacto da pandemia na cena brasileira de HQs e sobre as investidas dele como entrevistador na série De Frente com Panhoca.
Compartilho a seguir os nomes dos artistas participantes da nova Pé-de-Cabra e, depois, a minha conversa com o editor. Ó:
Benson Chin, Bernardo França, Karina D’Alessandre, Fralvez (responsável pelo quadro que abre o post), Andre Nicolau, Victor Bello, Bruna MZF, Beatriz Shiro, Adriane Palmira, Renan Cesar, Fabio Lyra, João B. Godoi, Emilly Bonna, Señor Gualda, Moletom Fantasma, Arame Surtado, Bruno Nascimento, Mari Sori, Chico Feliz, Pietro Soldi, Guilherme Caldas, Olavo Rocha, Kellen Carvalho, Iara Darkka, Leonardo Prado, Paulo Patrocinio, Thiago Souza, Victor Stephan, Marco Viera, Pedro D’Apremont, Lobo Ramirez, Fabio Zimbres, Kainã Lacerda, Sama, Adriano Janja, Batista, Carambola, Eme Podre, Jadiel Jorake, Carlos Carcasa, Cynthia B., Braian Malfatti e Galvão Bertazzi.
“Qualquer um que esteja assistindo De Férias com o Ex sabe o que o brasileiro pensa“
Queria começar dizendo que me sinto intimidado em entrevistar aquele que se tornou o maior entrevistador dos quadrinhos nacionais. Como tem sido para você a experiência como entrevistador na série De Frente com o Panhoca?
Hahahaha, são seus olhos, Ramon. Isso aí tem sido interessante. Na realidade a maior parte das entrevistas foram feitas em quatro dias, num momento de extremo tédio e pouca paciência de checar se os amigos estavam bem perguntando um por um “e aí, tudo bom?”. Paralelamente a isso, aumentou a quantidade de amigos que não são leitores assíduos de gibi nacional e me perguntavam por recomendações de leituras. Acho que funciona um pouco como divulgação e forma de mostrar que estamos relativamente bem.
E como você tá? Como a pandemia e o cenário político horrendo que estamos vivendo tão influenciando a sua rotina e a sua produção? Aliás, foi difícil para você optar por lançar a revista mesmo com a pandemia?
Cara, eu tô fodido, né? Eu pego pelo menos quatro ônibus por dia pra ir pro meu trabalho porque eu trabalho na cidade vizinha. Aqui em Curitiba eles reduziram a frota (?) pra evitar aglomerações. Aí quando me mandaram voltar pro trabalho eu pedi férias. Em algum momento isso vai acabar e eu vou ter que contar a sorte pra sobreviver à rotina. Mas voltando pra produção: eu fico em casa e desenho sempre que vem uma ideia boa (às vezes a ideia boa é ruim). Então o ritmo é bem maior, antes eu desenhava só na hora do almoço do meu emprego ou no ônibus. A decisão de lançar a revista no meio de uma pandemia é totalmente kamikaze, eu fico dependente unicamente de tentar vender a revista com postagens nas redes sociais. Não sei ainda se dessa vez ela vai se pagar. Espero que sim. Eu planejava vender toda a tiragem dela esse ano e fomentar as outras publicações e, quem sabe, realizar um sonho de ter um felino de porte grande no meu apartamento. Vamos ver o que tem por aí.
“UBA, UBA, UBA, Ê!”
Por que televisão como o tema dessa terceira edição?
Direto ao ponto: eu sou um viciado. Eu acho a televisão fascinante porque ela nos permite sair da nossa bolha e ter contato com o Brasil de verdade. A gente fala muito sobre furar a nossa bolha e não temos noção nenhuma da forma como a lavagem cerebral se dá com todos aqueles canalhas humilhando classes mais pobres em auditórios para reformar seus carros ou tunnar a sorveteria da família, etc. A televisão, assim como as equipes de vôlei, são instrumentos antropológicos extremamente subestimados como estudo de sociedade. Qualquer um que esteja assistindo alguma temporada de De Férias com o Ex sabe o que o brasileiro pensa e como ele se comporta. O campo de batalha REAL político e social é todo ali. Presidentes tomam golpes, carreiras são arruinadas, Geisy Arruda é alçada ao estrelato. Tudo acontece ali.
Nós dois temos mais ou menos a mesma idade, acho que grande parte da sua infância também foi nos anos 90, sendo o Gugu uma figura muito emblemática do imaginário televisivo brasileiro. A morte dele no final do ano passado pesou de alguma forma na escolha desse tema?
UBA, UBA, UBA, Ê!! hahahahahaha Eu não sei quantos anos você tem, mas eu to nos meus 30 já. O Gugu fez parte da infância desde os hits ridículos do Pintinho Amarelinho até toda a pornografia disfarçada de quadro vespertino. O tema já tinha sido escolhido na época da morte dele, mas acho que uma coisa acabou se mesclando à outra. Por algumas semanas todos nós falamos muito do Gugu. Eu tenho uma tatuagem do Gugu (do gibi, o Gugu Punk) na perna. O Gugu fez pela televisão brasileira algo que os outros não fizeram: ele extrapolou todos os limites da sanidade testando até onde o brasileiro acredita em qualquer merda que passe na televisão. A autopsia do ET de Varginha, a entrevista dos falsos membros do PCC, quando ele desenterrou o corpo de Dercy Gonçalves para verificar se ela realmente havia sido enterrada de pé. Eu acho isso tudo fascinante. Pra mim, foi como se eu tivesse perdido um amigo, um irmão.
“Costumo ver o Fofocalizando pra me antenar no mundo dos famosos”
Eu queria saber sobre a sua relação com televisão. Quais foram os programas de TV que marcaram a sua infância? Quais são as suas séries preferidas? Você tem algum apresentador de TV preferido?
Eu adoro televisão. Quando eu era pequeno eu gostava muito de Supermarket, de O Mundo de Beakman, das propagandas do Walter Mercado e do Chaves. Hoje em dia eu costumo ver, sempre que posso, o Fofocalizando pra me antenar no mundo dos famosos e ver o programa do Rodrigo Faro, onde aprendo incríveis cantadas e conhecimentos para relacionamentos duradouros. Eu gostei muito da participação do João Kleber em A Fazenda, mas depois dele fazer propaganda pra Havan eu não consegui mais olhar para ele. De séries eu assisti recentemente todo o Bojack Horseman (série incrível, recomendo demais), eu assisto sempre que sai temporada nova Kobra Kai (que é uma continuação com os atores originais do Karate Kid, um dos melhores Sessão da Tarde existentes) e eu também vejo sempre que possível Largados e Pelados e Todo Mundo Odeia o Cris. Eu também vejo muito desenho animado. Os brasileiros tão apavorando agora. Um abraço pra equipe do Oswaldo e do Irmão do Jorel. E também não posso deixar de fora o De Férias com o Ex e defendo que Jhenyfer Bifão é a grande personagem televisivo dessa década.
Você anunciou a convocatória para esse terceiro número lá em dezembro, quando o coronavírus ainda tava mais ou menos limitado ao território chinês. A revista tá saindo em um momento em que as pessoas estão em quarentena (ou pelo menos não deveriam estar saindo de casa). A sua relação com a televisão mudou de alguma forma desde o início dessa realidade de isolamento social?
SIM. A gente pegou TV a cabo depois de trancafiados. Maratonei com minha namorada o Bojack Horseman e agora estamos viciados no Largados e Pelados. É fascinante como o ser humano consegue vencer grandes desafios na selva só com seus conhecimentos de sobrevivência. Frio, animais selvagens, parceiros veganos, insetos, eles mesmos… O ser humano é testado ao limite nessa série, você devia tentar, Ramon. Assistir a série no caso, não saia pelado no meio do mato.
“Sonhei que estava sendo entubado e o respirador era uma Iogurteira TopTherm”
O Pochep assinou a capa da primeira revista, a Emily Bonna fez a capa da segunda e o Benson assina a capa da terceira edição. Por que ele? Você passou alguma instrução ou direcionamento para o que queria?
Eu gosto muito do trampo de toda a rapeize d’O Miolo Frito. Acho uma das melhores revistas do gibi nacional. E a capa de uma revista é onde muita gente vai ter o único contato com ela. Se a capa não for boa, talvez não venda. Aí tu soma as cores vibrantes que o Benson usa nos trabalhos dele com as artes com bastante informação que ele faz. Acho que pesou as artes que ele fez pra loja Monstra em São Paulo e o postal que fez no aniversário de seis anos do teu blog. Aquela arte dele do ELE NÃO também foi a minha favorita da época. Acho que foi isso. Ou talvez eu esteja dando vantagem a ele por ser mais bonito que a maioria dos capistas brasileiros. Nunca saberemos.
Na época do lançamento da primeira edição você comentou como foi uma experiência muito mais complicada do que você esperava. No segundo número você falou do excesso de trabalhos enviados, da sua mudança e da briga com um vizinho. O que você pode contar da produção dessa terceira edição?
Porra, a gente acha que vai ficar cada vez mais fácil e cada ano que passa é mais complicado. Dessa vez tive de novo o problema de excesso de material bom. Eu tento não pensar muito nos trabalhos que não usei porque eu tenho realmente dúvidas se eu fiz a melhor escolha possível entre eles. Talvez essa versão da Pé-de-Cabra #3 não seja a melhor versão que eu poderia fazer com o que tinha em mãos, mas foram tantas versões nesse espaço de tempo que eu não quero revisitar esse mundo de stress e escolhas difíceis. Além disso eu tava bem estressado com o avanço do coronavírus no Brasil. Ficar martelando quadrinhos sobre televisão e informações sobre o corona em todos os intervalos da TV definitivamente não fez muito bem pra minha cabeça. Houve uma noite em específico que eu sonhei que estava sendo entubado e o respirador do hospital que eu estava era uma Iogurteira TopTherm. Esse tipo de coisa acaba com o dia de qualquer um. Você passa o resto do dia com a voz da Aracy na cabeça pensando em morte. Teve outra coisa complicada: o conteúdo da nossa TV é totalmente inadequado. A TV brasileira (a gringa também, mas tô fazendo um recorte aqui) é totalmente baseada na exploração do cidadão pobre e na ultrassexualização de absolutamente tudo, desde programa infantil até bandeirinha do futebol. É muito arriscada a escolha de materiais com essas temáticas sem dar corda ou moral pra esse lado. É aquele lance do humor ser um lance vetorial, tem de ver pra onde está apontada a piada. Você não vai rir do coitado que tá sendo explorado ali, você pode usar ele em histórias e mostrar o quão cuzão são os apresentadores ou o telespectador que vibra com essas coisas. Fora isso tudo, ainda tem o lance da diversidade: nós temos canais de ABSOLUTAMENTE TUDO e eu tentei fazer o maior apanhado de temas diferentes dentro da TV, para que a revista parecesse mesmo como se você fosse o jovem Carlinhos Panhoca indo para a casa da Vó Carmelina em São José dos Campos e tendo a sua primeira experiência com uma tv com um monte de canais a mais do que a da tua casa. Enfim, muita coisa, muita escolhas e poucas certezas.
“Fiquei bem feliz com a diversidade de temas explorados por todos os participantes”
Essa terceira Pé de Cabra é o sétimo título do selo desde o lançamento da primeira edição da revista. O quanto simplificou e facilitou para você o processo de edição e distribuição de uma obra desde a estreia da revista lá em março de 2018?
A gente fica mais esperto, mais ágil, com mais lábia e alguns quilos mais magro. O que não muda é a minha habilidade de fazer um pacote. Os pacotes continuam todos horrorosos, com muita fita desnecessária e formatos não convencionais.
E agora com a revista impressa, que balanço você faz entre o que tinha imaginado entre o instante em que escolheu o tema e agora que já tem a edição em mãos?
Ela é mais bonita do que eu esperava. Ela sempre fica mais bonita do que eu esperava. Eu fiquei bem feliz com a diversidade de temas explorados por todos os participantes. Uma gama incrível de entretenimento, desde final da Libertadores ao Roda Viva (PROGRAMA CHATO PRA CARALHO). A revista também tem dezoito páginas a mais do que o planejado. Não deu pra manter no tamanho da outra.
“Sou movido a grandes expectativas e esperanças que eu aprendi vendo televisão”
O que mais te surpreendeu nesse número? Há algum trabalho específico impresso na revista que te marcou de alguma forma?
Eu me surpreendo com a quantidade de gente que publicou pela primeira vez na Pé-de-Cabra. 50% dos autores dessa edição nunca tinham participado antes. Além disso tive o prazer de publicar a primeira página de gente que nunca tinha publicado fora do Instagram. Isso dá uma satisfação bem grande. E ao mesmo tempo que sai material dessa galera dando uns primeiros passos na publicação tem ao lado gente consagrada como o Zimbres. Quanto a trabalhos específicos é difícil escolher porque no final eu escolhi todos ali porque gostei deles. Acho a HQ do Lyra um tapa na cara muito foda. Acho a HQ do Marco Vieira uma das mais bonitas da edição. O trabalho da Bruna MZF e a da Arame Surtado são muito bons também. Temos uma variedade de estilos e técnicas incríveis nessa edição.
“Em algum lugar do futuro o Marcos Pasquim está se preparando para voltar e nos salvar”
Você já tem em mente um quarto número da revista? Aliás, o quanto a pandemia afetou os seus planos para o selo? O seu planejamento para 2020 foi afetado de alguma forma por conta do coronavírus?
Olha, eu acho que dessa vez fodeu. A maior parte das minhas vendas são em feiras e lançamentos presenciais. Não sei se conseguimos recuperar dinheiro o suficiente para lançar a Pé-de-Cabra #4 em 2021, mas você que está nos assistindo aí em casa, você pode comprar uma AirFryer, um George Foreman Grill a menos no Polishop e fortalecer a gente pra continuar com a revista. É isso mesmo. E ligando agora mesmo você leva de brinde um sinceríssimo OBRIGADO, SENHOR CLIENTE. Mas voltando, ainda tem algum dinheiro em caixa e vamos torrar ele com outras publicações que pretendo soltar esse ano ainda. O próximo gibi, do Chico Felix, tá quase pronto. É um gibi em parceria com a Revista Prego e estamos só fechando uns últimos detalhes de logística antes de começar a mandar ver.
Você é figura constante nas feiras de quadrinhos e publicações independentes ao longo dos últimos anos e esses eventos são fundamentais para a manutenção desse cena de HQs na qual a Pé-de-Cabra está inserida. O quanto você acha que essa nossa atual realidade tende a impactar esse ambiente em um futuro próximo?
Olha, é difícil imaginar. Eu particularmente fico na torcida por uma vacina já no começo de 2021. Sabe, Ramon, eu sou movido a grandes expectativas e esperanças que eu aprendi vendo televisão. Lembra dos estudos do Dr. Albieri em O CLONE? Lembra das previsões de Eugênio, o menino gênio de Os Mutantes – Caminhos do Coração? Lembra do Esteban do Futuro em Kubanacan? Eu acredito que a realidade imita a ficção e em algum lugar do futuro o Marcos Pasquim está se preparando para voltar e nos salvar.