É difícil imaginar um quadrinho mais atual e relevante do que Sabrina. Sua repercussão foi muito além do meio dos quadrinhos e a obra de Nick Drnaso se tornou a primeira HQ indicada ao prêmio Man Booker Prize. Sabrina trata de fake news, conspiracionismo e do impacto de boatos e informações falsas nas vidas de cidadãos comuns ao narrar o desaparecimento da mulher que dá título à obra.
Entrevistei Drnaso para escrever sobre o lançamento da edição brasileira de Sabrina, pela editora Veneta, em tradução de Érico Assis (que também traduziu a entrevista abaixo). Esse papo virou matéria para o jornal O Globo. Escrevi no meu texto sobre as origens do livro, o desenvolvimento da obra, as técnicas e métodos do autor e a repercussão da HQ desde sua publicação em 2018. Você lê o meu texto clicando aqui.
Reproduzo a seguir a íntegra da minha conversa com Drnaso, na qual ele ainda fala sobre seu ambiente de trabalho, sua relação com outros quadrinistas e o suas leituras recentes. Leia a minha matéria, leia o quadrinho e depois leia a minha entrevista com o autor.
“Aconteceu de eu estar pensando em tragédias que ganham grande cobertura”
Antes de tudo, como você está? Como está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua rotina de trabalho?
Tenho a sorte de conseguir dar continuidade ao meu próximo álbum em casa, em quarentena. Portanto, minha rotina diária não mudou grande coisa. Acho que minha produtividade segue a mesma.
Como você acha que essa realidade que estamos vivendo vai afetar o seu ambiente profissional? Você tem conversado com outros autores e editores sobre essa situação?
Não tenho como especular quanto ao que vem pela frente.
Você pode me contar um pouco sobre o ponto de partida de Sabrina? Você lembra de como surgiu a ideia desse livro?
Aconteceu de eu estar pensando em tragédias que ganham grande cobertura na mídia. Tinha muita coisa acontecendo naquela época, quando houve Sandy Hook aqui nos EUA. A única ideia que eu tinha no começo era que um cara iria morar com um amigo da Força Aérea depois que a namorada do primeiro desapareceu.
“Tudo é desenhado e finalizado no papel, ao modo tradicional, com materiais simples e alguns instrumentos”
Você poderia me contar um pouco sobre a sua dinâmica de trabalho? Quanto tempo você leva criando um roteiro? E depois quanto tempo você leva no desenho esse roteiro?
Eu escrevo um pedaço do roteiro de cada vez, algumas cenas por vez, aí passo para o desenho até finalizar. Vou e volto nisso até terminar a história. Aí geralmente eu tenho que voltar lá no início, editar e redesenhar algumas coisas que acabaram não fechando como eu gostaria. Desenhar e colorir sempre tomam mais tempo que escrever; acho que umas 20 ou 30 horas por página.
Com quais técnicas você trabalhou em Sabrina? Você tem preferência por alguma técnica em particular? Quais materiais você utiliza?
Tudo é desenhado e finalizado no papel, ao modo tradicional, com materiais simples e alguns instrumentos. A cor é digital. Tentei colorir tudo à mão com canetinha, mas percebi que o processo ficava lento demais e não me dava muita flexibilidade para mexer no final.
Eu gosto muito ritmo de Sabrina. Acho que os grids e quadros que você usa são fundamentais para determinar o andamento da leitura. Você concorda?
Sim, é certo que o grid que eu usei em Sabrina ditou o ritmo. Comecei o roteiro com esse grid em mente. Com essa possibilidade de quebrar um quadro grande em quatro menores, eu consegui muitas cenas de silêncio. O álbum em que estou trabalhando agora tem outro grid que não condiz com quadros pequenos, então o texto e ritmo são mais contidos. É bom fazer essa mudança depois de Sabrina.
“Tenho alguns arrependimentos em relação ao visual”
Você pode contar um pouco sobre o desenvolvimento de seus personagens? Você tem algum hábito particular de observar pessoas na sua rotina diária?
Meu primeiro álbum, Beverly, tinha mais personagens baseados diretamente em gente que eu conhecia. A vida e o emprego do Calvin de Sabrina, aliás, vieram de um amigo que trabalha na Força Aérea no Colorado. É um processo muito natural. Ele meio que surge assim que eu começo a trabalhar. Talvez eu só perceba que o personagem é baseado numa pessoa que eu conheço meses depois de entrar na história, o que sempre acho bizarro.
Há um padrão nas cores de Sabrina e Beverly. Qual é a sua abordagem em relação a cores? Por que essa paleta e esse estilo?
Limitar a paleta me ajudou nos dois álbuns. Tenho alguns arrependimentos em relação ao visual. Entendo onde eu queria chegar e como saí do rumo, mas é coisa do meu olho. Colorir no computador foi um processo relativamente novo pra mim quando comecei Beverly, então tentei ser simples e usar um monte de pastel suave. Mas queria poder voltar e aprimorar, em parte.
Vivemos em um período de extremismos crescentes e de conspiracionistas radicais que acreditam que a terra é plana, são contra vacinas e não querem ficar em quarentena durante a pandemia. São questões muito presentes em Sabrina. Esses temas são caros para você? Você passa muito tempo refletindo sobre os rumos da humanidade?
Eu me interessava pela cultura das teorias da conspiração antes de escrever Sabrina. Agora eu não acompanhado nada, nem por curiosidade.
“Não julgo nenhum tema com pressa, mas sei que eu tenho pontos cegos imensos”
E como você lida com fake news?
Olha, ninguém nesse mundo acha que está vendo notícia falsa ou distorcida, então é difícil pensar no que eu mesmo consumo de notícia. Tento fazer o que me é possível e não julgo nenhum tema com pressa, mas sei que eu tenho pontos cegos imensos e um nível de atenção menor do que gostaria de admitir
Tenho curiosidade em relação à sua visão do mundo no momento. Vivemos numa realidade na qual Donald Trump é o presidente dos EUA e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Não tenho a mínima qualificação para responder essa pergunta, que é muito difícil. Se estivéssemos conversando por telefone, eu ia perguntar a você sobre o Brasil com Bolsonaro. Infelizmente não tenho nada de interessante ou particular a dizer sobre a situação dos EUA com Trump que não seja dito milhões de vezes, todo dia, sem parar.
O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos americanos, mas são culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?
Com certeza! Não tenho noção de como nenhum álbum é lido em outro país, mas tenho curiosidade. Provavelmente eu teria que visitar o país para ter noção, mas não viajei muito na vida, até agora. Quem sabe isso mude.
“Sempre me interessei por desenho e era ávido pelos livros do Shel Silverstein quando era pequeno”
Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual Sabrina foi criado?
Comecei a desenhar Sabrina usando o armário do meu apartamento antigo como estúdio. Era o único lugar da casa onde cabia minha mesa de desenho. Aí eu e minha namorada (hoje esposa) mudamos para outro apartamento e consegui montar o estúdio no quarto. Depois nos mudamos para o apartamento atual e, aqui, a mesa de desenho também fica no nosso quarto. É onde estou respondendo essa entrevista.
Eu nunca estive em Chicago, mas sei da relação da cidade com arquitetura, museus, autores de quadrinhos e arte em geral. Você se vê influenciada por esse ambiente tão criativo?
Eu cresci bem perto de Chicago e nunca morei em outra região, portanto é a única que eu conheço. Tive sorte de ver muitos quadrinistas por aqui, assim como escritores, escolas, museus, colégios. Sou muito satisfeito com o ambiente. Gosto da arquitetura e do inverno sombrio. Talvez isso tenha reflexo no jeito como eu desenho.
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Eu só passei a ler e pensar sobre HQ depois que acabei o ensino médio. Sempre me interessei por desenho e era ávido pelos livros do Shel Silverstein quando era pequeno. Acho que foram os primeiros desenhos que me causaram uma reação.
“Gosto de muita coisa que não chega nem perto do jeito como eu trabalho”
Eu gostaria de saber sobre a sua relação com a crítica e com esse interesse crescente pelo seu livro por parte da imprensa. O que você sente ao ver o seu trabalho tão analisado e interpretado e tantas pessoas interessadas no seu quadrinho?
Consigo ler resenhas críticas e positivas sem grandes problemas, mas faço o possível para manter distância de menções ao livro no Twitter e lugares assim. Sou grato a todos que tiverem escrito o que quer que seja sobre o álbum, mas tenho uma autocrítica interna que me impede de absorver algo a fundo, seja bom ou mau.
Eu gostaria de saber o que são histórias em quadrinhos para você. Você tem alguma definição pessoal?
Não, não tenho opinião forte sobre a mídia. O que eu tenho é uma forma de trabalhar que criei pra mim, mas não é algo que eu colocaria pra outros. Gosto de muita coisa que não chega nem perto do jeito como eu trabalho.
“Tenho ouvido muito mais música nesse ano”
Você poderia recomendar algo que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento?
Tenho ouvido muito mais música nesse ano. É muita coisa para citar. Estou lendo Praia de Manhatan, de Jennifer Egan, e curtindo. Depois vou ler The Broken Brain, de Nancy Andreasen. Há poucos dias eu e minha mulher assistimos Mal do Século, de Todd Haynes, e achamos ótimo.
Há uma mistura de melancolia e tristeza que está presente no seu trabalho e também nas obras de quadrinistas norte-americanos como Seth, Adrian Tomine, Chris Ware e Daniel Clowes. Você vê esse padrão? Você consegue elaborar alguma justificativa para o predomínio desses temas?
Identifico que há um padrão, mas não sei ao certo qual é. Produto desse ambiente, quem sabe. Ou porque a vida solitária do quadrinista atrai certo tipo de pessoa. Gostaria de ser mais objetivo nesse aspecto, mas me parece difícil, se não impossível.