É explícito o contraste entre o Galvão Bertazzi autor da série Vida Besta e o Galvão Bertazzi autor do livro infantil Olívia Foi Pra Lua. Os traços e as cores são os mesmos, mas fica de lado o que o autor chama de sua versão “noiada-paranóica-apocalíptica”, presente nas tiras dele, e vem à tona uma personalidade mais otimista e poética do quadrinista.
Com lançamento previsto para junho de 2021 pela editora Beleleu, Olivia Foi Pra Lua está atualmente em campanha de financiamento coletivo no Catarse. O projeto já alcançou a meta estabelecida para sua publicação, mas continua no ar até o dia 22 de maio de 2021.
Inspirada em uma história contada por Bertazzi para a filha dele antes de colocá-la para dormir, o livro infantil narra o empenho da jovem Olivia em viabilizar uma viagem pessoal para a lua. A arte sempre gritante do autor talvez seja o elemento mais emblemático da obra, mas chamo atenção para a missão bem-sucedida autoimposta por Bertazzi em não subestimar seu público infantil.
Conversei com Bertazzi sobre o ponto de partida e o desenvolvimento de Olívia Foi Pra Lua, suas inspirações por trás da obra e a experiência de ocupar o espaço de Laerte durante o período da autora se recuperando de COVID-19. Papo bem bom (assim como as conversas que tivemos em 2017 e 2019), saca só:
“Um bom livro infantil não subestima a criança”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
As coisas estão loucas. Eu estou louco. Perdi a noção de tempo, de espaço. Tenho crianças em casa que pararam de ir pra escola, eu e minha companheira dividimos o tempo de home office, as contas não param, os trabalhos deram uma embananada completa, mas ainda sim consigo desenhar bastante, pintar e tocar guitarra e aos poucos essa anormalidade foi se tornando normal. Eu sou um puta privilegiado por morar numa casa com quintal, mato e espaço pra respirar e pensar. Mas essa coisa de não poder sair quando quer, fazer o que quer é um treco muito bizarro. Resumo, tá tudo louco de forma normal-anormal.
Você contou que o ponto de partida de Olivia Foi Pra Lua é uma história que você contava para a sua filha. Mas como foi o processo de transformar essa história em livro. O quanto da história original se manteve? Como foi essa adaptação de uma história oral para uma versão ilustrada e escrita?
A história original está praticamente ali, o que foi trabalhado e lapidado foi o texto. Me lembro de ter contado essa história pra Olivia, numa noite e enquanto eu estava botando ela pra dormir me veio o estalo: “Um livro infantil!”. O que até o momento era uma coisa que eu ainda não havia feito.
Me lembro dela pegar no sono e eu correr pro computador pra digitar as ideias iniciais e alguns desenhos rápidos do que logo depois seriam as ilustrações. A coisa toda deve ter durado uma semana mais ou menos. Eu tenho essa coisa de não fazer rascunhos antes de começar a desenhar, eu acabei trabalhando assim no processo do livro, tanto com os textos quanto ilustrações.
Eu ia escrevendo cada página e já desenhando o traço. Uma coisa que eu botei na cabeça foi fazer um trabalho meu, sem interferência de críticas, sugestões ou qualquer coisa externa. Eu não queria desconstruir narrativa e muito menos desenho. Foi pura diversão e a coisa fluiu rapidamente de um jeito legal. O texto foi a parte mais trabalhosa porque eu tenho uma tendência a ser verborrágico e ululante (como você pode notar nas minhas respostas). Eu gosto disso, mas tive que ir aceitando que é uma obra infantil, então precisei ser mais comedido
Essa não é a sua primeira experiência com obras infantis, certo? O que você considera mais essencial em uma obra voltada para crianças? Tem algum elemento que você acha que não pode ficar de fora de um livro ou uma HQ infantil?
Eu já ilustrei muitos livros infantis, mas nunca havia me aventurado em escrever e ilustrar. Um bom livro infantil é aquele que não subestima a criança. Eu sou pai de dois filhos, sabe? Uma das coisas que primeiro aprendi nessa maluquice de ser pai é que os moleques, desde muito cedo já estão atentos e compreendem (do jeito deles, claro) o mundo ao redor. E a gente aprende muito mais com eles do que o contrário. Então a primeira coisa que descartei foi a necessidade de passar alguma lição de moral, apresentar valores morais ou essa coisa clássica de enfrentar um grande obstáculo para se conseguir um objetivo final. MInha intenção era deixar tudo fluido e fácil. O mundo real já é chato demais!
“O mundo real é chato demais”
Acho que nos últimos meses, devido a todo o contexto social-político-pandêmico que estamos vivendo, as suas tiras têm ecoado sentimentos de cansaço, frustração e raiva. Fico curioso: é muito difícil para você desligar o modo Galvão-tiras para o Galvão-autor de livro infantil?
O Olivia Foi Pra Lua foi escrito em 2018, ou seja, nem em minhas previsões mais absurdas sobre o futuro eu poderia imaginar que estaríamos afundados nessa pandemia e o pior, essa pandemia no Brasil. O Galvão autor de livro infantil até o momento foi um espasmo fofo da minha natureza, coisa que ainda não se repetiu. Eu tenho trabalhado em passos lentíssimos num outro livro infantil, mas ao contrário do Olivia Foi Pra Lua que nasceu num lampejo, este está mais demorado que a encomenda.
Então, para todos os efeitos, eu sou apenas o Galvão-noiado-paranóico-apocalíptico-das-tiras-de-humor-duvidoso.
Você pode contar um pouco, por favor, sobre a concepção do projeto gráfico do Olívia Foi Para a Lua?
Os desenhos e as cores meio que já apareciam prontos na minha cabeça a medida que eu escrevia os textos. Os dois foram nascendo juntos e de certa formas resolvidos. O que eu quis foi usar todo o repertório que eu tenho pra desenhar: linhas, cores, personagens e cenários absolutamente dentro do meu universo pictórico, então tudo surgiu naturalmente. Se eu ficasse preocupado demais em desconstruir desenhos, formas, abstrair as coisas eu teria travado e provavelmente o livro nunca ficaria pronto.
Agora, o pulo do gato partiu da Editora Beleleu. O editor Tiago Lacerda teve uma puta sacada em resgatar aqueles bonequinhos de papel destacáveis, muito comuns em revistinhas e livros infantis dos anos 80, juntamente com um cenário que pode ser montado. É uma coisa simples e que ficou LINDO de morrer. Vai ser um materia legal de se ter em mãos!
“Quis usar todo o repertório que tenho para desenhar”
Vi algo de Space Oddity do David Bowie no seu livro, faz sentido?
SIM! Space Oddity estava realmente rolando no repeat nessa época. Aliás Bowie está sempre tocando por aqui.
Você recentemente substituiu a Laerte nas tiras diárias da Folha enquanto ela se recuperava da COVID-19. Como foi essa experiência?
Primeiro, vou usar uma frase que to usando todas as vezes que me perguntam isso. A Laerte é insubstituível! Ou seja, o que eu fiz foi quebrar um galho, enquanto ela se recuperava desse vírus maldito.
Foi uma montanha russa de emoções porque não escondo de ninguém meu desejo de publicar diariamente naquela seção de tiras da Folha, mas levando em conta as circunstâncias, tudo que eu queria era honrar aquele espaço e devolver logo o espaço pra ela. E ufa!! Tudo terminou bem, publiquei umas tiras muito legais e a Laerte voltou melhor do que antes!!
Última! Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Eu gostaria de recomendar muito os livros da Editora Pé de Cabra. Com certeza é um material pros adultos, mas na minha cabeça, é a editora mais bacana da atualidade.
Acabei de receber o último lançamento, o Tiger Fist. Uma HQ divertidíssima e cheia de ação saída da cabeça do Gabriel Góes e desenhada por um time de quadrinistas fantásticos. Conseguiram resgatar com primasia esse gênero, estilo filmes de ação! Acho que tô um pouco de saco cheio de tanta HQ filosófica-existencial, então pra mim foi um prazer ter esse gibi na mão. Recomendo!