Conversei com o quadrinista norte-americano Ben Passmore sobre Esporte é de Matar, obra recém-publicada em português pela editora Veneta (com tradução de Mateus Potumati. Transformei esse papo em texto para a segunda edição da minha coluna no blog da Veneta. Já leu?
Esporte é de Matar mostra o choque de realidades e ideias entre torcedores, jogadores e pensadores do futebol americano. Instantes antes de uma edição do Super Bowl, a final do grande torneio deles, vários personagens vão se chocando e se confrontando até esses vários conflitos culminarem em uma guerra civil.
Falo mais sobre o gibi e a carreira de Passmore lá no blog da Veneta. Compartilho agora a íntegra da minha conversa com o autor. Saca só:
Eu queria saber um pouco mais sobre você. Você pode me falar um pouco, por favor, sobre a sua relação com quadrinhos? Qual a sua memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Onde eu cresci, na zona rural de Massachusetts, não havia lojas especializadas em quadrinhos que começaram a abrir em todo o país durante o boom dos quadrinhos dos anos 90. Tudo que eu tinha era a farmacia de cidade pequena que vendia alguns títulos de super-heróis como X-Men, Homem-Aranha, Spawn, etc. Eu era um garoto pobre, mas queria ler esses quadrinhos, então eu os lia o mais rápido que podia perto da estante de quadrinhos até que os funcionários me expulsassem. Eu estava lá depois da escola, todos os dias, e eles me expulsavam todos os dias! É uma cidade pequena também, então essas pessoas gritavam comigo diariamente e depois iam à igreja com minha mãe no domingo.
Talvez eu gostasse mais dos quadrinhos porque tive que lutar para curtí-los, ou talvez fossem apenas os músculos e o spandex? Poderiam ser ambos. De qualquer forma, comecei a desenhar meus próprios quadrinhos muito cedo. Eu tentava imitar o estilo de Todd Mcfarlane ou Jim Lee, você sabe, anatomias muito exageradas e irrealistas. Nada desse estilo foi transferido para a forma como desenho agora, exceto que acho que fomentou um amor pelo dinamismo visual e pelo espetáculo. A diferença é que eu desenho pessoas jogando tijolos nos nazistas em vez de um batarang, ou qualquer coisa do tipo.
Fui para a universidade de artes um pouco mais tarde do que a maioria das pessoas, era um calouro de vinte anos. Depois que me formei, comecei a procurar editoras para o meu trabalho, mas ninguém se interessou muito. Parte do meu problema era que eu estava fazendo quadrinhos políticos incansavelmente como um homem negro, e ainda não havia muito mercado para isso. O mundo dos quadrinhos que não eram de super-heróis naquela época ainda se via como branco e bastante apolítico. Tivemos que queimar algumas cidades antes que eles ficassem com medo de estarem do lado errado da história e minha carreira emplacasse para valer. Isso é uma piada.
Por alguns anos, publiquei por conta própria todos os meus quadrinhos estranhos anarquistas e os vendi em shows ou por correspondência. Quase parei de tentar fazer quadrinhos em tempo integral porque não era financeiramente sustentável. Eu também tinha todas as vantagens, morava de graça numa ocupação e comia de graça na maior parte do tempo. Mas era quase impossível vender mais de algumas centenas de quadrinhos por ano. Felizmente comecei a ser contratado por alguns veículos para fazer quadrinhos políticos durante o início da era Trump.
E como é a sua relação com esportes? Você pratica algum esporte? É torcedor de algum time? Como é a sua relação com futebol americano?
Quando eu era criança, minha mãe sempre me manteve envolvido com esportes porque queria que eu tivesse uma influência “masculina” em minha vida. Meu pai não estava por perto, então ela estava sempre tentando encontrar pais substitutos para mim. Joguei muito em ligas juvenis e futebol americano na escola. Ou melhor, assisti muito futebol americano de ligas juvenis e do ensino médio do banco de reservas. Eu era um péssimo jogador de futebol, não tinha um espírito muito competitivo e provavelmente era muito gentil para trombar com alguém. Tudo que eu queria era desenhar o Wolverine, mas a expectativa dos garotinhos negros dos anos 90 era se destacar nos esportes, no rap ou não fazer nada.
Você poderia pensar que eu ficaria ressentido com o futebol, mas na verdade estou meio entediado com isso. Tento acompanhar a temporada às vezes, mas sempre desisto. Há muitos jogos e prefiro assistir anime. Ironicamente, sou mais fã de MMA agora. Não tenho certeza de onde foi parar minha resistência em bater nas pessoas, culpo a obsessão da comunidade anarquista pelas brigas de rua.
“Nossas indústrias esportivas estão profundamente ligadas aos militares e à direita”
Não sei se vai fazer sentido para você, mas Esporte é de Matar tem algo de teatral para mim. Não sei explicar direito, mas talvez seja algo relacionado à ambientação, aos personagens circulando nesse cenário fechado… Enfim, faz sentido para você?
Acho que Esporte é de Matar poderia funcionar bem como peça de teatro. No passado, meus quadrinhos não eram particularmente guiados pelos personagens, então, quando me sentei para escrever Esporte é de Matar, eu queria escrever algo onde as personalidades e crenças dos personagens se confrontassem para valer. Elimine todos os tumultos e grande parte do livro são personagens conversando.
Esporte é de Matar também é inspirado na mídia que cobre o futebol americano. O futebol americano é notoriamente influente e com grande alcance nos Estados Unidos. Nossas indústrias esportivas estão profundamente ligadas aos militares e à direita, especialmente ao meu querido MMA. Esportes, em geral, tem uma plataforma enorme aqui por esse motivo, principalmente na comunidade negra. Em nossa defesa, só nos foi permitido ter sucesso no esporte e no entretenimento, então alguns dos nossos comentaristas sociais mais ruidosos e enfáticos vieram desses setores.
Gostaria que todos assistisse Assata Shakur ao vivo de Cuba todo Dia de Ação de Graças, mas não sou o responsável pelas tradições norte-americanas.
Eu considerei a leitura do seu livro bastante universal, mas futebol americano é um esporte muito característico da cultura norte-americana. Você pode falar um pouco, por favor, sobre o que você vê de mais fascinante na cultura do futebol americano?
É incrível assistir à fisicalidade do futebol americano, mas acho que fico mais horrorizado do que fascinado pela cultura em torno do esporte. Escrevi sobre isso no livro por causa das semelhanças entre a guerra, os comentários esportivos e o fandom. O ato de Colin Kaepernick de se ajoelhar durante o hino nacional tornou-se um ponto de tensão para todos os tipos de tendências políticas. Os brancos racistas projetaram esta imagem de um comunista negro furioso em Kaepernick, enquanto os progressistas liberais de todas as cores afirmaram ser o nosso líder político. Enquanto isso, todos os negros radicais mal-humorados lamentavam o que se tornaram os atos altamente performativos e ineficazes em termos políticos. Como anarquista não tenho afinidade com Colin Kaepernick, ele é/era um jogador de futebol rico. Mas, como homem negro, não posso deixar de ficar na defensiva em relação ao abuso e ao escalonamento que ele enfrentou. Essas são as contradições com as quais os negros lidam o tempo todo quando se trata de esportes nos Estados Unidos.
Com exceção da época do Super Bowl, principalmente por causa dos trailers, pouco ouço a respeito de futebol americano na minha realidade aqui no Brasil. Acho que a exceção foi na época que tiveram inícios os protestos do Colin Kaepernick. O que as ações dele representaram para você?
Acho que já respondi isso, mas talvez eu possa esclarecer melhor. Quando ele começou a se ajoelhar, o protesto de Colin Kaepernick se perdeu na onda de protestos que acontecia por todo o país naquele momento. Pelo menos para mim pessoalmente. Ele começou a se ajoelhar em 2016, mesmo ano do levante de Baltimore. A resposta aos assassinatos de negros pelas mãos do estado policial foi muito furiosa, literalmente. Eu sabia que ele receberia o mesmo tipo de energia do tipo “cale a boca e drible” do establishment predominantemente branco, mas seu protesto não pareceu particularmente impactante para mim. Na verdade, fiquei impressionado com o nível de acidez que a América branca tem para as críticas mais simples feitas aos negros. Mas o que torna difícil defendê-lo é que os seus protestos são lembrados, ele é celebrado com atenção e contratos da Nike, enquanto as pessoas comuns que lutavam nas ruas são uma nota de rodapé histórica.
Muito se fala aqui no Brasil sobre a gentrificação dos estádios de futebol – e como isso também acaba sendo um processo de exclusão racial. Isso também acontece no futebol americano?
O futebol americano é totalmente uma ferramenta de redesenvolvimento e gentrificação. Não se trata de futebol americano, mas aqui na Filadélfia há um plano para construir um novo estádio de basquete para os 76ers no meio de Chinatown. É um plano de alguns homens brancos ricos que têm fantasias de um corredor comercial entendiante no centro da cidade, em vez do que existe agora.
Como disse antes, o futebol americano está profundamente ligado ao nacionalismo e às forças armadas. Há muitos exemplos disso, mas você só precisa assistir a um jogo na TV ou em um pequeno subúrbio do Texas para encontrar evidências disso.
“Parece não haver barreiras para uma minoria de pessoas ricas que tentam assumir o controle“
Confesso que fui ficando ansioso à medida que lia Esporte é de Matar. Vão surgindo tantas ideias e conflitos… Eu queria me posicionar e tomar o partido de um dos personagens, mas acabei não conseguindo me conectar a apenas um deles ou considerar nenhum deles exclusivamente “mais corretos”. Enfim, como foi para você administrar todos esses conflitos de ideias?
Devo dizer que estava ansioso para que as pessoas lessem essa história em quadrinhos e pensassem que eu estava fazendo algum tipo de afirmação radicalmente centrista sobre esportes ou raça. Não sou um centrista, sou um anarquista implacavelmente e excessivamente comprometido. Moro em comunas, leio Kuwasi Balagoon, trabalho em projetos de ajuda mútua com amigos e causo o máximo possível o caos entre os poderosos. Dito isto, não sou propagandista. Quando faço histórias em quadrinhos sobre crenças que tenho, não posso deixar de investigar suas deficiências junto com as crenças às quais me oponho. Então escrever personagens com tantas inconsistências em sua visão de mundo foi bastante fácil, eu apenas revelei minhas próprias inconsistências políticas. Essa parece ser uma abordagem mais honesta da política do seu tempo.
Quando eu era um jovem anarquista, eu lia textos anarquistas de Crimethinc ou de quem quer que fosse e tinha esse mal-entendido muito romântico sobre como a ação política funcionava na vida de alguém. Tenho quarenta anos agora, com todo o transtorno de estresse pós-traumático e os danos que advêm de ser um velho anarquista, e o que me preocupa é que não temos clareza sobre o quão confusa é a fenomenologia da vida política. Com exceção dos racistas brancos, eles são bem simples, na minha opinião.
Portanto, ter sentimentos confusos sobre os personagens de Esporte é de Matar é natural. O que espero que as pessoas não façam é levantar as mãos e dizer ‘bem, todo mundo é terrível’. Há muitos gestos sinceros em Esporte é de Matar e se há alguma receita específica para o que deveríamos fazer politicamente, ela está ali.
Queria a sua opinião em relação ao mundo, hoje. Vocês se livraram do Trump por uns anos, mas ele não parece muito disposto a largar o osso. O mesmo acontece aqui no Brasil: o Lula voltou à presidência, mas parece que estarmos cercados por ideias de extrema direita. O que você acha que está acontecendo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Enquanto estivermos contidos em estados operados por hierarquias e pelo capitalismo industrial, sofreremos com a desigualdade, a exploração e o fascismo. Não importa quão progressista seja um governo, não parece haver quaisquer barreiras reais para uma minoria ditatorial de pessoas ricas que tentam assumir o controle. Dito isto, Biden não é Lula. No que diz respeito ao mundo fora dos EUA, as políticas dele soam mais como um movimento paralelo a Trump do que os democratas nos EUA gostam de admitir. Por exemplo, uma presidência de Trump não teria lidado com o genocídio em Gaza de forma diferente da que Biden está tratando agora. Talvez Trump fosse mais abertamente racista sobre isso. Nosso país é profundamente conservador, não importa quem esteja no comando. Trump é, na verdade, apenas a figura de proa de um nacionalismo branco de longa data que sempre conquistou o poder aqui.
É difícil imaginar o futuro de forma otimista levando em conta como as coisas estão indo mal. Certamente não creio que uma série de comunas anarquistas ou revoltas proletárias surgirão em todos os cantos do mundo e criarão o planeta dos nossos sonhos. Pelo menos em um futuro próximo. Acho que o melhor que podemos esperar agora é que as pessoas acordem para o fato de que não é suficiente votar uma vez por ano e retuitar algumas coisas interessantes no X ou no Meta. Não há partido ou ONG que possa salvá-lo, temos que acreditar em algo fundamentalmente diferente. Precisamos começar a acreditar que somos nós que nós estamos esperamos para salvar o mundo.
Olha só eu fazendo propaganda, eu disse que era profundamente inconsistente.
Uma curiosidade minha: você já ouviu falar sobre o Vinícius Junior? O jogador de futebol brasileiro do Real Madrid e tudo o que está acontecendo com ele na Espanha?
Não, eu nunca ouvi falar dele, sinto muito. Mas eu não acompanho nada de futebol. Acabei de pesquisar o nome dele no Google e parece uma loucura com o que ele está tendo que enfrentar.
Você pode recomendar algo que tenha lido, visto ou ouvido recentemente?
Acabei de concluir uma história em quadrinhos sobre a história da resistência armada negra nos EUA. Demorou quatro anos para ser feito e, no meio da produção, bati em um obstáculo criativo. Então li a incrível biografia de Martin Luther King Jr, escrita por Ho Che Anderson, em busca de inspiração. No momento estou tentando ler Tip Of The Spear, de Orisanmi Burton, para me curar de uma história em quadrinhos terrível que li sobre Attica chamada Big Black: Stand at Attica que foi feita por alguns europeus oportunistas.