Conversei com o quadrinista francês Fabien Toulmé sobre Inesquecíveis, álbum publicado no Brasil pela editora Nemo, com tradução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe. O papo serviu de base para reportagem que escrevi para o jornal Folha de S.Paulo. Falei no meu texto sobre a carreira e as técnicas de Toulmé, tratei de sua abordagem conservadora em relação à linguagem dos quadrinhos e chamei atenção para o sucesso dos livros dele no Brasil. Você lê o texto clicando aqui. Compartilho abaixo a íntegra da minha entrevista com o autor:
“Tentei escolher emoções diferentes”
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Eu diria que que eu estava lendo, eu acho, Lucky Luke, olhando a maneira como ele [Morris, autor da obra] desenhava o Jolly Jumper, Lucky Luke e os Daltons e tentando copiar a maneira como ele desenhava. Eu também não entendia… Talvez pelo processo de colonização da época, eu não sei exatamente como era feito, mas tinha um monte de pontinho quando a gente olhava de perto. Era cheio de pontinhos. Eu não entendia como ele tinha colorido. Eu pensei que devia ser muito demorado para fazer tantos pontinhos.
Qual foi o ponto de partida de Inesquecíveis? Houve algum ocorrido em particular que te motivou a trabalhar nesse livro?
Tudo começou, mais ou menos na época de A Odisseia de Hakim, que foi um trabalho baseado em uma entrevista. Eu gostei muito desse tipo de trabalho, gostei muito tanto do ato da entrevista como do ato de roteirizar e desenhar a vida de uma pessoa, a história de uma pessoa, baseada na entrevista que eu tinha feito. Então nessa época eu lancei um pedido de histórias nas minhas redes sociais, dizendo, mais ou menos: “quem tiver uma história marcante na vida, poder me escrever que eu…”. Na realidade, eu não sabia exatamente o que eu ia fazer com isso. Eu não sabia se ia ser um novo Odisseia de Hakim, que eu ia desenvolver com vários volumes, ou se seriam histórias curtas. Enfim, eu publiquei isso nas minhas redes sociais.
Recebi um bocado de emails, acho que eram mais ou menos 300. Eles ficaram guardados. Alguns anos depois, uma revista daqui, que se chama Journal Spirou, que pertence à editora Dupuis, um grupo belga, me pediu para fazer uma página no jornal, uma página por semana, com o intuito de fazer um retrato da sociedade. O pedido foi assim: “seria bom você encontrar uma pessoa, falar com ela e escrever como foi esse encontro”. Então eu comecei a realmente ir nessa direção, como tinha sido encomendado pela revista. Fiz, uma, duas, três, quatro entrevistas e páginas. Mandei, gostaram, mas eu não gostava. Eu não estava muito satisfeito com o resultado. Eu achava que uma página para retratar uma conversa, às vezes longa, não era um bom formato. Então eu disse ao jornal e nenhuma página foi publicada. Como eu disse que queria parar, a gente não publicou nenhuma página. E o editor-chefe da revista disse: “mas a gente gosta da maneira como você conta essas histórias, dos encontros que tu tem com as pessoas, será que você não conseguia desenvolver essas histórias de uma maneira mais longa? Já que uma página não basta para você, nesse caso a gente publicava num álbum”. Porque, como eu disse, é tanto um jornal quanto uma editora. Então eu topei e foi aí que eu fui buscar nesses emails que eu tinha recebido alguns anos antes. Fui escolhendo alguns. Foi assim, que tudo começou.
Fico curioso em relação aos seus métodos e às suas técnicas em Inesquecíveis. Vamos por partes: como você chegou nessas seis histórias e nesses seis personagens?
Na verdade eu fui repassando todos os emails e quando tinha um que me chamava atenção, eu parava, aí eu escrevia para pessoa para pedir mais detalhes, caso necessário, ou eu pedia para fazer uma entrevista. Foi assim, eu tentei escolher temáticas diferentes, eu tentei escolher emoções diferentes no resultado da leitura. Fui montando esse primeiro volume fuçando nessa lista de emails que eu tinha recebido. A única diferença foi para a última história, que, na verdade, eu queria falar dessa temática de reinserção social depois de um tempo na cadeia – e eu também queria falar de como a gente, dependendo do lugar que a gente cresce, da família, do meio social que a gente cresce, a gente tem mais ou menos destinado um caminho de vida. Então, como eu já tinha esse tipo de história em mente, fui escrevendo para as associações que ajudavam as pessoas que saiam de presídios e foi assim que eu encontrei o Gregory – o único [personagem] que não é um leitor meu, os outros são leitores que me escreveram. Fiz mais entrevistas do que histórias que tem nesse primeiro volume. Primeiro porque eu guardei duas para o segundo volume, por razões de equilíbrio emocional, de temática. E outras que, depois da entrevista, eu não era convencido que o resultado em quadrinho ia ser legal.
“Não me coloquei em uma posição de julgar”
Como foi a sua dinâmica com essas seis pessoas protagonistas das histórias durante a produção do livro?
Uma vez que eu tinha escolhido essas histórias, eu entrava em contato, a gente fazia uma entrevista. Uma entrevista de uma, duas horas, no máximo. Durante essa entrevista, fiz como fiz como A Odisseia de Hakim, tentei entrar na pele da pessoa.
Eu fazia uma entrevista por vídeo, depois eu escrevia um roteiro e fazia um layout. Eu mandava esse layout para as pessoas, explicando que é normal que existam algumas diferenças, porque eu não vivi o que eles viveram, de certa maneira é uma interpretação do que eles me contaram, mas que se houvesse algum detalhe que fugisse demais da realidade, eles me falassem. Então pronto, uma vez que eles tinham dado o acordo com o conteúdo da história, eu passava a limpo e pronto. O livro foi publicado, mandei um livro para cada um, eles gostaram muito, ficaram emocionados e foi assim.
E a partir do momento que você já tinha os relatos, como foi o trabalho de transformar esses depoimentos em histórias em quadrinhos?
Eu gravo, eu não escrevo, assim eu posso focar na entrevista. Eu tento pedir a maior quantidade de detalhes possíveis, para poder desenhar e, como eu disse, entrar na pele da pessoa. Uma vez que tenho essa gravação, passo tudo a limpo no computador e escrevo um roteiro baseado nessa matéria-prima. Às vezes eu vou reorganizando, cortando, é mais ou menos como a edição de um documentário. Eu vou cortando, mexendo no texto, até obter um roteiro. Uma vez que eu tenho um roteiro, passo para o layout.
E como você se relacionou com essas pessoas e essas histórias? Digo, como leitor, eu julguei e questionei várias das escolhas dos seus protagonistas. E como autor? Você também se viu julgando e questionando as escolhas deles?
Não, realmente, eu não me coloquei em uma posição de julgar. É certo que, provavelmente, se eu tivesse encontrado uma pessoa com uma posição muito radical em relação a uma questão que eu discorde, talvez eu não teria tido vontade de escrever essa história, mas eu tenho uma abertura de espírito muito grande para considerar. Bom, como foi o pedido inicial da editora “fazer uma um retrato da sociedade”, um leque muito grande, então eu vou abraçando todas essas pessoas, essas posições. Eu não tenho nada a julgar, eu fui tentando me encaixar nessa nessa visão deles das coisas, tentei ser o mais honesto possível na transcrição das entrevistas. É óbvio que às vezes eu discordava. Por exemplo, um momento que eu me questionei, foi nessa última história, o cara que bate na mulher. Com certeza isso me chocou, eu até me perguntei, “será que eu coloco ou não coloco?”. Porque acho chocante, “talvez possa dar uma má impressão”, não sei. Mas fiz questão de deixar porque é ele, com todo esse lado sombrio, faz parte dessa personalidade. É algo q existe na na sociedade e eu acho importante falar.
Você conta histórias muito diversas, sobre pessoas muito distintas. Você consegue ver algum padrão, algum elemento em comum, entre esses seis indivíduos e suas vivências?
Eu acho que o que define a trajetória dessas pessoas é uma situação inicial, algo que elas enfrentam, geralmente uma prova de fogo, e essas pessoas vão aprendendo e progredindo. Elas vão enfrentando essa situação, uma situação que pode ser de perigo, de sofrimento. Acho que o que eu gosto nessas histórias é justamente a maneira como você atravessa um período complicado da sua vida e como esse período complicado não define totalmente a sua vida, mas é uma etapa. Ela vai ajudando você a crescer, a aprender, a melhorar como ser humano. Talvez possa ser isso uma ligação entre essas histórias.
Gostaria de saber mais sobre a forma como você pensa quadrinhos. Os seus trabalhos são muito lineares, não vejo neles muito espaço para experimentações com a linguagem, por exemplo. O que mais te atrai na linguagem dos quadrinhos? Como você encontrou a sua “forma” de contar uma história em quadrinhos?
Eu conto uma história mais ou menos como se eu tivesse com uma câmera, com o quadro fixo, e eu estivesse filmando umas cenas com esse quadro fixo. Eu não sou, realmente, como tu disse, de experimentar, de tentar reinventar uma coisa que já existe. O meu foco é a história, a relação entre as personagens, as emoções que eu vou conseguir passar com os meus limites de desenho. Eu coloco toda a minha energia nesse espaço de retransmitir as emoções e você ter a sensação que está vivendo a história que está lendo. No meu ponto de vista, o perigo quando você tenta ir além disso, pelo menos quando você tem os meus limites técnicos de desenho, é que a pessoa que está lendo esquece que você está contando uma história e vê que você está tentando reinventar uma maneira de contar. Eu me baseio muito em uns encontros que eu já fiz, com pessoas de uma certa idade, com pessoas novas, com pessoas que não tem costume de ler quadrinho, e eu vejo que não é todo mundo que tem essa facilidade com a leitura de quadrinho. A minha preocupação é deixar o mais claro possível para essas pessoas a maneira como eu conto a história para que as pessoas esqueçam esse aspecto técnico da contação da história e foquem na história em si.
Realmente, [o que mais me atrai na linguagem dos quadrinhos] é contar história. Quando eu comecei com essa vontade de entrar no mercado de histórias em quadrinhos, eu pensava que o meu foco era mais o desenho. Apesar de, como eu disse, ter um certo limite técnico, gosto muito de desenhar, é uma paixão desde criança. Quando comecei a minha carreira, acabei fazendo uma parceria com um roteirista, porque eu não pensava que tinha capacidade de contar história. No decorrer dessa primeira fase de trabalho com um roteirista, sem publicação profissional, comecei a sentir ainda mais prazer quando eu pude imaginar histórias, personagens, diálogos… Tudo isso para mim é muito importante. Tem uma coisa quando eu vou escrever histórias em quadrinho, quando eu escrevo uma história, eu me torno o personagem que eu estou escrevendo. Entro naquele universo que eu tô contando. Então o que me atrai mais, nas histórias em quadrinho, é realmente a parte de contação de história. O desenho é algo a mais, é uma coisa que eu gosto de fazer, mas eu me vejo mais como… Não sei como a gente diz em português. Um narrador? Mas não é isso que eu quero dizer. Ponto: como uma pessoa que conta história, que conta história através de desenhos.
“O que era limite se tornou um gosto”
Também gostaria saber mais sobre a sua relação com cores. Como você chegou nas paletas de cada história de Inesquecíveis?
Isso também tem a ver com limite. Com limite, com quantidade de páginas e com gosto. No meu primeiro livro, Não Era Você que Eu Esperava, o dinheiro que eu recebi para fazer essa história em quadrinhos não era muito. Eu não tinha condição de ir para uma paleta de cores ampla, não era viável para mim. E eu tinha lido alguns quadrinhos que usavam esse tipo de paleta de cores, com uma paleta mais limitada. Aí eu fiz Não Era Você que Eu Esperava dessa maneira. Já para Duas Vidas, eu parti para uma ficção que ia acontecer na África, então imaginei cores bem mais ricas. Eu também tive a possibilidade de negociar um pouco melhor os direitos autorais, então tentei ir para uma paleta mais ampla de cores. Sendo que quando tem uma paleta ampla demais, eu não consigo. Pedi para uma pessoa me ajudar com as cores, a Valérie Sierro. Quando eu voltei para A Odisseia de Hakim, como ia ser um projeto muito longo, com muitas páginas e que eu não via espaço para entrar de novo em uma paleta de cores ampla, eu voltei para essa paleta de cores mais restrita. O que era um limite se tornou realmente um gosto por esse tipo de trabalho. Na verdade, eu trabalho mais com a luz e a sombra do que com as cores. Acabei ficando com esse tipo de colonização, que nasceu com A Odisseia de Hakim e prolonguei com essa série, Inesquecíveis. Dessa vez também estou sendo ajudado, por um brasileiro, Miguel Felício. Como eu tenho vários projetos e essa parte de cor não é realmente a minha preferida, o Miguel me ajuda, ele faz a base das cores, depois eu vou só retocando umas coisas para ficar mais do meu jeito.
E quais materiais de trabalho você usou durante a produção de Inesquecíveis?
Vamos lá, do começo ao fim. O começo foi com o computador, para fazer as entrevistas e uma máquina, não sei qual é o nome, para gravar a voz da pessoa. Depois da entrevista, vou fazendo o roteiro no computador, depois faço o layout também no computador, no Photoshop. Para finalizar, eu desenho no Ipad, em um programa chamado Procreate. Então é tudo no digital, na verdade. Desde A Odisseia de Hakim que passei para o digital.
Você pode recomendar algo que tenha lido, visto ou ouvido nos últimos tempos?
Posso recomendar um quadrinho que se chama Chumbo que foi publicado pela editora Nemo. Faz tempo que eu queria escrever uma história sobre o Brasil, mas querendo fugir um pouco dos clichês que os europeus têm do Brasil – samba, favela e futebol. Gostaria de escrever uma coisa diferente. Não é que eu gostaria de escrever um tipo de história como Chumbo, porque é uma história que eu não tenho muita intimidade. Não tenho muita intimidade com essa parte da história, com essa parte do Brasil, o sudeste. O que li nesse quadrinho foi uma história muito rica, com desenhos que eu achei muito legais e aprendi um monte de coisa. Na verdade, gosto de histórias ricas, que eu possa ler e aprender um bocado de coisas.
Vi um filme recentemente, Dias Perfeitos, do Wim Wenders, achei maravilhoso. O resumo do filme é muito, muito simples, parece até uma coisa que vai ser entediante. É a história de um cara no Japão que limpa banheiro público. Eu fui ver o filme sem saber nem dessa sinopse. No começo, eu pensei, “tá, vai ser uma coisa longa, eu vou acabar tirando um cochilo”, mas é uma coisa muito poética, muito bonita, sobre o cotidiano. Saí do filme com uma sensação de bom humor, de leveza, de amor ao ser humano. Aconselho.