Papo com Daniel Clowes, autor de Monica: “Todo livro é uma jornada pessoal de autodescoberta”

O quadrinista Daniel Clowes me disse que Monica (Nemo) é sua obra mais pessoal, mesmo sendo um de seus trabalhos mais bizarros. Entrevistei o autor dos clássicos Ghost World e Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro no início de novembro e transformei esse papo em reportagem recém-publicada pelo jornal Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui.

Clowes foi um dos expoentes do novo quadrinho americano do fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Com colegas como Charles Burns e Chris Ware, ele potencializou as experimentações autorais de precursores como Robert Crumb e Art Spiegelman. Monica é um dos melhores trabalhos de Clowes até hoje e possivelmente meu quadrinho preferido de 2023.

Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com o autor. Saca só:

Quadro de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

Monica, a personagem, é uma espécie de pária, como a mãe dela também foi. Na verdade, o livro inteiro é sobre párias e… Na verdade, a maioria dos protagonistas dos seus livros são párias. Você tem algum interesse particular nesse tipo de personagem? 

Não é… Sabe, não me sento e digo: ‘Vou escrever sobre um pária’. Estou escrevendo, por meio desses personagens, sobre a maneira como vejo o mundo. Não necessariamente com minhas opiniões ou qualquer coisa do tipo, mas estou escrevendo sobre como o mundo me soa. E a minha infância foi toda muito parecida com a da Monica. Eu sempre me senti muito sozinho e passava muito tempo dentro da minha própria cabeça. E nunca me senti confortável em contexto sociais. E, na verdade, nunca me senti confortável perto de pessoas particularmente sociáveis. Parece uma forma de relação com o mundo muito diferente da minha. Então tendo a escrever personagens que compartilham desse ponto de vista ou estou tentando imaginar como é não ser um deles. Então às vezes crio personagens que são o oposto disso. 

Seu primeiro livro publicado aqui no Brasil foi Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro, em 2002. Por ter sido meu primeiro contato com o seu trabalho, ele segue muito presente na minha memória. E, de alguma forma, vi alguns paralelos entre Monica e Como Uma Luva. Não me refiro à história ou à arte, mas ao clima do livro, principalmente à sua estranheza… Enfim, o que quero saber, foi sua intenção? Você decidiu propositalmente investir em estranheza, climão e desconforto em Monica?

Sim (risos) Não estou tentando desanimar o público. Quer dizer, é interessante porque quando comecei Monica, Donald Trump foi eleito presidente, aí veio a pandemia com tudo, as coisas enlouqueceram e eu realmente pensei que o meu livro mais condizente com a nossa época era Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro – o que pode soar como um exagero. Quando eu fiz, pensei ‘ok, tipo, isso aqui é como seria se tudo fosse pelo pior caminho possível’. E aí, de repente, ‘não, isso é exatamente o que aconteceu’ (risos). Não era um exagero. Eu estava realmente pensando muito sobre esse livro e meio que o voltei a ele. Monica é realmente, em parte, um retorno a esse livro, uma volta a certos temas, mas em vez de apresentá-los como absurdos ou uma caricatura da realidade, mostrando-os como falhas inevitáveis da humanidade, como essa forma de pensar, na verdade, não é uma exceção, mas parte da forma como os seres humanos operam. 

“Eu estava tentando refletir sobre a minha infância”

Página de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

Em Monica você investe em todos esses gêneros diferentes e, para mim, o livro final é muito coeso. Foi de alguma forma difícil para você manter essa coesão durante a produção? Você teve essa preocupação em mente enquanto trabalhava em Monica?

Bem, obrigado. Acho que foi por isso que demorou tanto. Porque, originalmente, o conceito era muito vago e eu sabia, tinha consciência, que iria mudá-lo à medida que trabalhava nele. Mas o conceito era muito mais ‘histórias de gêneros distintos em sequência’. E quanto mais eu trabalhava nisso, mais elas se misturavam, algumas histórias começavam em um gênero e se transformavam em outro. E um gênero acabou se sobrepondo ao outro e foi se tornando uma coisa muito complexa, com os gêneros sendo quase apenas usados como uma forma de flexionar a história, da mesma forma como efeitos sonoros e músicas são usados em um filme. Foi algo que pensei: todos nós temos expectativas em relação a cada gênero. Então me estimulou muito enquanto fazia subverter essas expectativas ou tirá-las de contexto.

Também sobre o clima do livro… Ele tem toda essa vibe conspiratória muito relacionada a redes sociais e ao atual contexto político-social mundial. O quanto você acha que todo esse contexto dos últimos cinco anos influenciou o desenvolvimento do livro?

Sim… Na verdade, o livro começou meio que sendo sobre uma espécie de caos pessoal. Eu meio que estava, mais ou menos, tentando refletir sobre a minha infância através do filtro dessa personagem que vive uma infância muito semelhante à minha e chega ao mundo em meio ao caos. Mas à medida que escrevia, o caos do mundo meio que impactou a realidade de todo mundo e então fica parecendo que estamos todos vivendo a infância da Monica contra as nossas vontades. Então, acho que pelo menos a segunda metade do livro, a partir do meio, sou eu respondendo inconscientemente à situação política.

Eu tento não fazer comentários políticos. Não quero o livro soando datado, coerente apenas ao presente, mas é claro, estou trabalhando nele todos os dias e durante esses dias estou pensando qual é a última coisa terrível sendo noticiada. Isso ocupa a sua mente e impacta a maneira como você vê o mundo. Então é tudo uma resposta, inconsciente, às vivências da vida louca que todos nós vivemos agora.

Numa espécie de antagonismo a todo esse climão de mistério e estranheza de Monica, algo que me chama a atenção em seu trabalho mais recente, incluindo Paciência, é sua clareza narrativa. Me lembra até Hergé e Tintim. Isso foi de alguma forma importante para você? Essa clareza narrativa foi de alguma forma uma prioridade para você durante a criação de Mônica?

Em um livro como este e Paciência, a história em si é muito complicada, densa e complexa e tem muitas coisas que eu gostaria que o leitor descobrisse em uma segunda, terceira ou quarta leituras. Para que isso funcione, tem que haver clareza absoluta. Não pode haver nada onde você fique confuso em relação às dinâmicas da história. Passei muito tempo tentando deixar a progressão visual, entre cada painel, mais clara possível. Por isso fico grato de verdade quando você diz isso. Isso é algo… Você quer que isso [as dinâmicas da história] passe praticamente despercebido. Você quer que as pessoas sintam que ‘é assim que as coisas são’ e não prestem atenção ao fato de que isso existe. Mas muitos dos melhores quadrinhos, eu acho, têm essa clareza perfeita e você nem percebe – até ler um quadrinho que não tem isso e aí você nota: ‘estou vendo, com certeza, isso aqui não faz sentido’.

“Nunca me senti confortável em contextos sociais”

Quadro de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

Ao mesmo tempo, se narrativamente vi Hergé e Tintim, em termos de história, pensei muito nos quadrinhos da EC Comics e outros títulos de gênero da mesma época. Qual a importância desses quadrinhos americanos mais antigos, pré-Comic Code, na sua formação como leitor e autor?

Eu tinha um irmão 10 anos mais velho. Ele comprava quadrinhos quando era criança, na década de 1950, ele nasceu em 1951. Ele tinha quadrinhos publicados entre 1955 e, talvez, 1965. Quando eu comecei a ler quadrinhos, com uns quatro ou cinco anos, ele já era adolescente. Ele só disse, ‘toma, agora são seus’. Então eu cresci lendo quadrinhos publicados 10 anos antes e eram quadrinhos malucos de terror, quadrinhos de guerra e romance adolescente e todos esses gêneros diferentes e eu li cada um deles. Isso foi numa época em que não havia mais nada para uma criança fazer. Não tínhamos televisão quando eu era criança. Eu ficava apenas lendo, lendo quadrinhos todos os dias. E eles se tornaram quase… Foi como uma língua que aprendi com aqueles quadrinhos malucos de gênero. Eu me tornei fluente naquele idioma. É quase como crescer com pais que falam uma língua diferente e você acaba assimilando. Então foi isso, algo que acabou compondo a forma como vejo o mundo.

Como você disse, Monica é um livro muito pessoal. E não apenas Monica, mas muitos de seus livros são sobre autodescoberta. Fazer Monica contribuiu de alguma forma para você se entender e se compreender melhor?

Esse é sempre… Não é necessariamente o objetivo, porque sei que isso provavelmente nunca vai acontecer, mas é o que me interessa. Comecei a trabalhar no livro bem quando um monte de… O que aconteceu foi: todo mundo da minha família morreu. Então eu fui o único que sobrou e ninguém nunca me explicou nada sobre minha infância, e eu fiquei sem ninguém para perguntar. Então eu tive que tentar imaginar, ou preencher as lacunas, ou praticamente fazer o tipo de trabalho de detetive que Monica faz. Isso tudo para tentar entender o que aconteceu quando eu tinha dois anos. ‘Por que isso aconteceu?’. Foi uma espécie de jornada pessoal de autodescoberta. Todo livro é [uma jornada pessoal de autodescoberta], até certo ponto, mas chego ao fim e faço mais um monte de perguntas que levam a um novo conjunto de perguntas. Nunca acontece de eu pensar ‘ok, já entendi, está tudo esclarecido’. O mistério só se aprofunda. Você adentra mais no túnel. E é aí que moram todas as coisas interessantes, né?

Quadros de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

Sobre essa relação pessoal que você tem com o livro. No fim de Monica, é você como um dos personagens, certo? Você sempre soube que estaria no livro?

Não, isso veio depois, só quando compreendi quem era ela [Monica]. Em determinado momento entendi que, de certa forma, havia criado uma amiga para mim. Criei alguém que, se eu conhecesse, poderíamos conversar e teríamos um diálogo por causa das nossas infâncias, o que é muito incomum para mim. Eu sempre sinto que muitas pessoas têm referências em comum quando encontram alguém de sua mesma cultura. Elas dizem, ‘ok, foi assim que foi crescer em uma família italiana’, ou algo do tipo, elas têm isso. Eu nunca tive nada parecido. Sempre foi muito solitário e idiossincrático e aí eu criei essa pessoa com quem eu teria algo em comum e me pareceu que fazia sentido para ela me conhecer. Me pareceu a coisa certa para aquele ponto da história.

Sobre esse aspecto cultural, fico curioso se você fica curioso em relação às leituras dos seus livros em outros países. Seja no Brasil, na Europa ou na África. As suas vivências estão muito relacionadas a uma experiência americana e os seus livros foram publicados em todo o mundo.

Escrevo de uma perspectiva muito americana. Eu sinto que esse é o mundo que eu compreendo, ao qual estou respondendo e no qual me sinto desconfortável. Eu não tenho esse mesmo sentimento em relação resto do mundo. Portanto, nunca sei o quanto eles [os livros] se traduzem para outras culturas. Também sinto que grande parte do mundo está na mesma situação que os Estados Unidos no momento. Estamos todos nos mesmos tipos de batalhas culturais. Mas sinto que este livro talvez seja mais pessoal. Sobre coisas que não são necessariamente sobre a cultura norte-americana, mas sobre temáticas mais universais. Mas eu não sei. É sempre interessante, certos livros são muito populares em certos países e nem um pouco em outros. Isso é particularmente fascinante para mim.

“Todo mundo da minha família morreu”

Quadro de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

Você falou sobre sua relação com seu irmão e os quadrinhos, essa é a lembrança mais antiga que você tem da presença dos quadrinhos em sua vida?

Com certeza. Tenho uma lembrança intensa de mexer na coleção dele. Eu devia ter uns dois ou três anos. Lembro que fazia os meus próprios quadrinhos antes mesmo de saber ler. E eu desenhava os balões de palavra e depois colocava uns risquinhos em vez de letras porque não sabia escrever. Então foi como se eu entendesse a ideia de falar e de balões de fala antes mesmo de poder me comunicar e escrever. Então foi mesmo a primeira língua que aprendi.

Nunca estive em Chicago, mas sei que é uma cidade muito artística. Com muitos museus, uma arquitetura muito bonita, local de muitos filmes e cidade natal de muitos autores de quadrinhos.

Sim. E muitos deles chegaram logo depois que eu saí, infelizmente.

Você poderia me contar um pouco sobre sua relação com a cidade? Você foi influenciado por esse ambiente criativo?

Crescer em Chicago era… É uma cidade grande. Sempre foi a segunda maior cidade – Los Angeles agora é a segunda maior. Mas naquela época tinha Nova York, monumental, com todo tipo de arte: teatro, revistas, quadrinhos, cinema… Tudo. Tudo acontecia em Nova York. Na verdade, em Chicago, não tínhamos nada e vivíamos muito ressentidos com Nova York. E cresci querendo estar em Nova York, me parecia o lugar perfeito para quem queria fazer quadrinhos. E Chicago era muito sem graça, com muitos crimes e muito… Para mim era muito ruim como adolescente. Mas ao mesmo tempo, em perspectiva, eu tive muita coisa. [Chicago] Tem toda essa arquitetura incrível, tem alguns dos maiores museus do mundo, um mundo de teatro ótimo naquela época. E sempre havia alguns grandes quadrinistas morando lá. Era um lugar onde você podia viver e trabalhar sem a pressão de Nova York, onde você estava competindo com todos os maiores talentos do mundo. Em Chicago havia apenas alguns de nós e todos se conheciam. Conheci o Chris Ware mais ou menos quando já estava de saída, nós ficamos bons amigos. Mas muitas pessoas chegaram lá depois que eu saí. Ainda é uma cidade mais barata do que qualquer coisa na Califórnia ou Nova York. Então é um bom lugar para jovens artistas.

“O mistério só se aprofunda”

Quadro de Monica, obra de Daniel Clowes (Divulgação)

E você está morando na Califórnia agora, certo?

Estou na Califórnia há 31 anos. Sim, sou oficialmente um californiano.

Em qual cidade?

Estou em Oakland, do outro lado da ponte de São Francisco.

E São Francisco também parece uma cidade muito cultural e interessante, certo?

Ah, é uma cidade ótima. Está tão cara agora que nenhum artista jovem se muda para cá, o que é muito frustrante nesse aspecto. Quando me mudei para cá não era assim. Havia muitos artistas jovens, inclusive eu. Eu gostaria de viver em um lugar onde houvesse mais jovens chegando. Mas temos alguns de nós [quadrinistas] por aqui. 

Você poderia recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo agora? Você manteve algum livro por perto durante a sua turnê recente de lançamento de Monica?

Na verdade, por cerca de um ano e meio, parei de ler qualquer coisa, porque senti que estava entrando na minha cabeça. Qualquer coisa que lia eu dizia ‘quero fazer isso em Monica’. E eu tive que esvaziar a minha cabeça. Então, desde que terminei, tenho uma pilha de livros ao meu ldo. É isso que tenho feito nas últimas semanas, lido. Acabei de começar um livro do Cormac McCarthy que ele lançou há cerca de um ano [O Passageiro], comprei logo que foi lançado e não peguei mais. Então tenho me divertido colocando as coisas em dia. É o que tem me empolgado ultimamente.

A capa de Monica, obra de Daniel Clowes (Nemo/Divulgação)

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