Dez anos de Coleção Ugritos: um foco de resistência frente ao luxo e aos preços elevados dos anos Amazon no Brasil

A Amazon é um anabolizante para o mercado de quadrinhos. Seus resultados foram imediatos, mas obviamente danosos a longo prazo. Não tem erro, uma hora vai dar ruim. Quer dizer, já deu. Me pego pensando constantemente como os quadrinhos brasileiros tinham um curso natural que acabou rompido em 2014, quando a multinacional de Jeff Bezos começou a vender livros impressos por aqui. Estava tudo muito longe do ideal, como segue sendo em vários aspectos, mas me parecia mais lógico para as editoras investir em obras e autores nacionais e em formatos financeiramente mais condizentes com a realidade socioeconômica brasileira em detrimento de todos os excessos em curso desde a entrada da Amazon no mercado editorial brasileiro.

Menos de um ano depois da Amazon começar a vender livros impressos no Brasil surge a Coleção Ugritos, da editora Ugra Press. A primeira edição, CRÜ, de Chico Felix, foi lançada em julho de 2015, no dia da inauguração da loja da Ugra, em São Paulo.

Noticiei o início das atividades da loja da Ugra e a criação dos Ugritos em junho de 2015, em entrevista com o editor da Ugra Press, Douglas Utescher. Ele me falou na época: “A ideia é: quadrinho independente brasileiro mas com vários estilos. Pegar uns nomes maiores, mas também colocar molecada no meio, justamente para estimular o leitor”. A inspiração para o projeto foram os 16 números da coleção MiniTonto, do quadrinista Fábio Zimbres, publicada entre 1997 e o início dos anos 2000.

Os Ugritos são quadrinhos no formato 10,5 x 15 cm e 20 páginas. Cada edição é assinada por um quadrinista diferente. O número mais recente foi o 37º, Devolve Minha Cabeça, de Alexandre S. Lourenço. O preço atual é de R$ 8.

Capa de Brasil.Exe, obra de Rodrigo Okuyama para a 18ª edição da coleção Ugritos

Vale um disclaimer por aqui. Quando fiz a minha entrevista com o Douglas Utescher da Ugra em 2015, nós não éramos amigos. Tínhamos trocado emails e conversado pessoalmente em algumas oportunidades. Os anos foram passando, a Ugra abrigou alguns dos meus cursos sobre quadrinhos e mediei vários bate-papos na loja. Hoje, 10 anos depois, considero o editor da Ugra e a sócia dele, a Daniela Utescher, dois dos bons amigos que fiz no meio. Então, obviamente, a minha avaliação pode estar influenciada por essa amizade, mas não hesito ao sugerir que os Ugritos são o grande projeto editorial dos quadrinhos brasileiros dos últimos 10 anos.

De 2014 para cá, a Amazon e os influenciadores surgidos na onda dela e de seus links patrocinados fomentaram um mercado de práticas luxuosas e excessivas. A Amazon é a grande responsável pela realidade consumista, ostentatória e colecionista que impera no mercado brasileiro de HQs. Sempre sob a suspeita de dumping.

Os Ugritos são um foco de resistência frente ao luxo e aos preços elevados em curso desde a chegada da Amazon no Brasil.

Nem todos os Ugritos tem o mesmo apelo, mas gosto de cada um deles. Alguns são mais conservadores, e certas histórias não funcionam tão bem no formatinho da coleção. Mas todas as edições têm justificadas suas razões de ser, seja como cartão de apresentação de algum artista iniciante ou como amostra dos potenciais ilimitados da linguagem dos quadrinhos dentro das restrições espaciais impostas pelo projeto. Aliás, as 20 páginas de algumas edições são mais grandiosas que vários de ditos clássicos em capa dura, papel caro e edições cheias de firulas publicados com frequência em português.

Capa de Le Monstre, obra de Galvão Bertazzi para a 13ª edição da coleção Ugritos

Não espero só novidades de nenhuma editora. Compreendo a necessidade de algumas apostas certas e seguras tendo em vista finanças minimamente saudáveis. Mas estou sempre no aguardo do novo, de autores desconhecidos e novas investidas em termos de linguagem. Os Ugritos me entregam isso há 37 edições.

A Amazon impactou todo o ecossistema dos quadrinhos brasileiros. Transformou editoras recém-iniciadas em grandes casas editoriais e institucionalizou edições luxuosas e preços elevados. Editoras antigas acataram esses mesmos excessos e tornaram as apostas em quadrinhos nacionais cada vez mais pontuais.

A imprensa e os produtores de conteúdo foram na mesma onda. A Amazon criou toda uma rede de influenciadores que tem como objetivo final a venda. Discursos oficiais são tomados como verdades, e tomem obras “obrigatórias” e “indispensáveis” goela abaixo. Os raros espaços dedicados a quadrinhos na imprensa tradicional também acabaram ocupados por essas mesmas publicações.

Gosto da ironia da coleção Ugritos ser contemporânea da seção de livros da Amazon brasileira. Sei que a Ugra é uma loja e editora pequena e mesmo assim faz acontecer a mais corajosa e autoral coleção de quadrinhos do país. Não acho que todas as editoras precisem de uma Coleção Ugritos, mas gosto que a coleção da Ugra exista também como uma lembrança constante de que é possível ousar mais.

Capa de Óleo Sobre Tela, obra de Aline Zouvi para a 17ª edição da coleção Ugritos

Escrevo profissionalmente sobre quadrinhos, então conheço a maior parte dos autores publicados nos Ugritos antes deles lançarem seus trabalhos pela coleção. Ainda assim, recentemente, li pela primeira vez uma HQ de Fernando Athayde, no 36º Ugrito (Joãozinho Oficina). Apresentar autores ao mundo é uma prestação de serviço que vejo cada vez menos editoras nacionais se dispondo a fazer.

Cogitei fazer o meu Top 10 de Ugritos, mas desisti quase imediatamente. Não sou de releituras e estou empenhado em me livrar de grande parte dos quadrinhos e livros que acumulei ao longo da vida. Ainda quero ler muita coisa e o espaço é cada vez menor, mas volta e meia pego um Ugrito aleatório, só pela diversão. Eles habitualmente me entregam mais que as 300 páginas do capa dura da vez recém-lançado por aqui. Só para não passar batido, sugiro você ir atrás do 21º Ugrito, Eu Fiz Uma História em Quadrinhos, obra de Fabio Zimbres – o cara que inspirou a coleção com seus MiniTontos.

Também não vou longe ao imaginar como seria o mercado de quadrinhos brasileiro sem a Amazon. Possivelmente, seriam menos editoras, menos obras publicadas e menos leitores. Ainda assim, talvez fosse um ambiente mais saudável e sustentável. Também mais rico criativamente. Suspeito que seria um mercado editorialmente mais próximo do que são os Ugritos.

Leia mais sobre a coleção Ugritos:
Douglas Utescher fala sobre o Ugrito de Fabio Zimbres: “Muita gente se sentiu impelida a buscar seu próprio jeito de desenhar e escrever depois de ler o Zimbres”;
Sarjeta #14: Fabio Zimbres + Ugrito // Rafael Sica + Brasil;
Sarjeta #20: Três Ugritos e o terror de Amanda Miranda;
Papo com Amanda Miranda, autora de Aparição: “O que mais impactou o roteiro foi o sentimento angustiante de, praticamente todos os dias, ouvir algum caso de feminicídio”;
Papo com Lovelove6, autora de Lombra, 19ª edição da coleção Ugrito: “Esse formatinho me encorajou a experimentar uma história em quadrinhos sem texto pela primeira vez”;
Papo com Rodrigo Okuyama, o autor de Brasil.exe, a 18ª edição da coleção Ugrito: “Não me sinto confortável na criação dos meus trabalhos, é sempre um processo penoso de escolhas e abandonos”;
Retrospectiva Vitralizado 2018: Ugrito #17 – Óleo Sobre Tela (Ugra Press), por Aline Zouvi;
Papo com Rodrigo Okuyama, o autor de Brasil.exe, a 18ª edição da coleção Ugrito: “Não me sinto confortável na criação dos meus trabalhos”;
Papo com Aline Zouvi, a autora da 17ª edição da coleção Ugritos: “Se há alguma sensação que quero passar, talvez seja essa de que o estranho e o familiar andam juntos”;
Retrospectiva Vitralizado 2017: Coleção Ugritos;
Roomates – Mórbida Diferença: a capa da HQ de Bruno Maron para o 14º Ugrito;
Culpa: a capa da HQ de Cristina Eiko para a 11ª edição da coleção Ugritos;
Diego Gerlach e Lobo Ramirez falam sobre sobre Arrecém, Nóia, Rogéria #3 e as atividades da Escória Comix;
Uma tarde de autógrafos com Pedro D’Apremont, Galvão Bertazzi e Batista;
Ugrito #7: Fired (ou Ricardo Coimbra X O culto à proatividade);
Thiago Souto reflete sobre a passagem do tempo em Time Lapse;
Ugra: a nova loja de quadrinhos e publicações independentes de São Paulo.

Capa de Aparição, obra de Amanda Miranda para a 24ª edição da Coleção Ugritos
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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