Cidade de Sangue: Márcio Jr. assina parceria com o lendário Julio Shimamoto em HQ policial

O músico e roteirista Márcio Jr. convidou o lendário quadrinista Julio Shimamoto para ilustrar o roteiro do álbum Cidade de Sangue. Escrito e ilustrado a partir de um argumento de Márcia Deretti, o álbum marca a estreia do braço editorial da produtora cultural MMarte Produções, capitaneada por Márcio Jr e Márcia Deretti, e narra uma história policial ambientada em Goiânia. O quadrinho mostra um romance conturbado entre um jornalista policial e uma fotógrafa do jornal no qual ele trabalha tendo como pano de um fundo um crime no qual o próprio repórter é suspeito.

Bati um papo por email com Márcio Jr sobre a as origens do projeto, o desenvolvimento da história e a experiência de trabalhar com Shimamoto. Aliás, chamo atenção para a explicação do roteirista sobre as técnicas utilizadas por seu parceiro para o desenvolvimento da arte da HQ. Papo bom, saca só:

O que você pode falar sobre a trama do quadrinho? Você pode, por favor, falar um pouco sobre a sinopse e como você chegou a esse enredo?

Cidade de Sangue é uma trama policial ambientada em Goiânia. Carlão, o personagem principal, é repórter do caderno de polícia de um grande jornal há anos e não suporta mais o contato cotidiano com a violência. Amargurado, atravessa uma séria crise em seu casamento. Surge então Paula, a nova fotógrafa do caderno, e os dois acabam dando início a uma tórrida e mórbida paixão, inflamada justamente pelas cenas de crime e violência que os cercam.
Por ironia do destino, Carlão torna-se o principal suspeito de um dos crimes que cobria para o jornal, naufragando em uma espiral de decadência. Cidade de Sangue nasceu como argumento para um longa-metragem, desenvolvido a partir de uma ideia central da minha esposa e sócia, Márcia Deretti. Agora, com o livro pronto, o projeto de transformá-lo em filme volta a nos assombrar. A princípio, uma animação. Com direção de arte do Shima, claro. Trabalho pra mais de década…

Por que chamar o Julio Shimamoto para ilustrar o quadrinho? Aliás, aproveitando, qual você considera os principais atributos da arte dele e as maiores contribuições dele para os quadrinhos nacionais?

Shimamoto faz parte daquilo que considero a santíssima trindade do quadrinho brasileiro, ao lado de Jayme Cortez e Flavio Colin. Gênios de uma outra época do mercado editorial brasileiro, quando HQ era algo popular, acessível, cultura de massa – e que, mesmo sob estes limites, conseguiram criar uma obra absolutamente autoral. Vejo dois aspectos ímpares nos quadrinhos de Shimamoto: dinâmica e experimentalismo. Seus personagens estão sempre em movimento, cheios de uma energia que transborda do papel. E suas experimentações gráficas não têm fim. Shima já trabalhou com cerâmica, balões de borracha, fuligem, sacos plásticos surrados, tinta de parede, água sanitária,… Sempre digo que se no cinema brasileiro temos aquilo que o saudoso (cineasta e crítico) Jairo Ferreira chamava de ‘cinema de invenção’, o que o Shimamoto faz é ‘quadrinho de invenção’. Em Cidade de Sangue ele leva isso a um outro patamar. Há ainda uma questão sobre a qual me debato continuamente: o cisma entre a atual geração de quadrinistas brasileiros e seus antecessores. Em todos os eventos de quadrinhos vemos centenas de talentos contemporâneos e uma quase completa ausência da velha guarda. Em outro paralelo com o cinema, seria como se os cineastas de hoje produzissem sem conhecer o trabalho de Glauber Rocha, José Mojica Marins e Nelson Pereira dos Santos. Por fim, tenho uma longa relação com o mestre Shima, que se iniciou com o curta-metragem em animação O Ogro, produzido e dirigido por mim e pela Márcia (e que pode ser visto aqui https://filmeoogro.blogspot.com.br/2011/03/apresentacao_09.html). Mas o mais importante em relação ao Cidade de Sangue é que o trabalho não se trata do resgate da obra de um mestre do passado. O que temos aqui é um Shimamoto contemporâneo, moderno, repleto de vigor e coragem, se arriscando como nunca. Estou ansioso pela recepção do público e do meio em relação ao seu mastodôntico trabalho em Cidade de Sangue.

Você pode falar um pouco sobre a técnica utilizada pelo Julio Shimamoto para a arte do quadrinho?

Quando chamo o trabalho de Shima de experimental, estou falando sério. Cidade de Sangue foi literalmente desenhada a ferro e fogo. Cada página começava com um rápido esboço em papel manteiga. Aí, sobre uma mesa de luz e com o uso de maçaricos, ferros de soldar e ferramentas artesanalmente criadas por ele, Shimamoto trabalhava sobre papel térmico (papel de fax). Os balões e recordatórios eram feitos a parte para depois serem colados diretamente sobre a página. Como o papel térmico possui baixíssima durabilidade, era feita uma fotocópia da página – que posteriormente seria tratada e receberia uma segunda cor, o vermelho, aplicada pelo quadrinista goiano Tiago Holsi. Há também um incrível uso de colagens fotográficas. Enfim, imagino que a abordagem gráfica desenvolvida por Shima em Cidade de Sangue seja um caso único no mundo.

E como foi a dinâmica do trabalho de vocês? Você enviou o roteiro fechado para ele? Quanto tempo durou a produção da obra? Você pode falar um pouco de cada etapa dessa produção?

Fui entregando o roteiro para o Shima em capítulos, sempre esboçados. O Shimamoto é conhecido por subverter roteiros, normalmente tomando outros caminhos que aqueles indicados pelo roteirista. Dei a ele toda a liberdade para isso. Mas fiquei bastante surpreso (e também orgulhoso) ao perceber que ele seguiu com grande fidelidade as páginas plotadas que lhe entreguei. Todas as mudanças de enquadramento ou perspectiva feitas resultaram em ganhos dramáticos para a narrativa. Apesar de ter um escopo bem definido da história desde o começo, não consegui entregar para ele o roteiro fechado de uma só vez. A estratégia de ir enviando o material por partes foi um meio de manter o trabalho orgânico durante todo o tempo, uma vez que o Shima me devolvia os capítulos finalizados – e eu, por minha vez, dava continuidade à história, absolutamente influenciado por aquilo. Mudanças de percurso aconteceram neste processo, que durou uns bons cinco anos para se completar – com alguns intervalos na produção. Me senti terrivelmente pressionado em escrever algo para o Shimamoto – que durante todo o projeto me ofereceu a mais generosa confiança e apoio que consigo imaginar. Na verdade, me sinto absurdamente privilegiado por ter realizado o Cidade de Sangue.

Cidade de Sangue é a primeira publicação de sua nova editora, a MMarte. Quais os seus planos para a editora? Você já tem outros lançamentos em vista? Você já estabeleceu qual será a linha editorial de vocês?

A MMarte Produções, formada por mim e pela Márcia Deretti, existe há alguns anos e é mais conhecida por sua atuação no mercado audiovisual – seja em projetos de formação como a Escola Goiana de Desenho Animado; em festivais como a TRASH – Mostra Internacional de Cinema Fantástico e o Dia Internacional da Animação de Goiás; e como produtora de animações autorais como O Ogro, Faroeste: Um Autêntico Western e Rascunho da Bíblia. O sonho de termos um braço editorial é antigo e estamos entusiasmados com o início desta nova aventura. Até o momento produzimos outros dois livros além do Cidade de Sangue: a edição de luxo da HQ Entardecer dos Mortos, ao lado do grande Tiago Holsi; e a antologia de contos noir Cidade Sombria – também ilustrada pelo mestre Shima. De forma independente e sem nenhuma pretensão megalomaníaca, nosso interesse são livros e publicações que nos sensibilizem pessoalmente. Num panorama tomado pela virtualidade, me atrai muito a perspectiva do livro como objeto, como traço material e físico de uma obra. Livro é a coisa mais legal do mundo – além de ser o único motivo plausível pra se derrubar uma árvore. É ou não é?

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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