Clean Break passado a limpo #3: Blade Runner, zeitgeist e David Bowie

Reúno aqui mais uma leva de depoimentos do quadrinista Felipe Nunes sobre os bastidores da produção de Clean Break. O álbum está em campanha de financiamento coletivo no Catarse e é o primeiro trabalho policial do autor, sobre um crime misterioso ocorrido em um mundo no qual o consumo de açúcar foi proibido. Nas duas primeiras partes da série Clean Break Passado a Limpo, Nunes falou sobre as origens do projeto e comentou alguns dos temas tratados por ele no quadrinho. Agora, ele faz algumas reflexões sobre o desenvolvimento da obra e a influência de filmes, músicas e da nossa realidade na HQ. Saca só:

Clean Break passado a limpo #3:Blade Runner, zeitgeist e David Bowie

“Nunca fiz nenhum roteiro meu da mesma maneira e acho que isso é parte do que boto de desafiador no meu processo de fazer quadrinhos. No Klaus, trabalhava como teatro, no Dodô encorporei thumbnails na escrita e agora no Clean Break mixei os três processos (juntando com o que fiz no Segredo da Floresta, de acompanhar atos de ação importantes da história). Como o Clean Break tem oito capítulos (as oito etapas da Purificação Completa), precisei pensar em uma maneira em que cada capítulo conversasse com uma etapa do processo de purificação, desde os acontecimentos até nas narrativas individuais dos personagens. Pra construir a religião, fiz com base na história e vice-versa”

“Acho que isso tem sido o mais caótico: fazer com que todas as narrativas acompanhem em conjunto, cada uma no seu ritmo e ‘gênero’, o processo da história e o conceito do clean break (uma espécie de ruptura, de refazer algo do zero tirando algo que ocupa). Como disse anteriormente, me sinto fazendo um filme de 2h30, brinco muito que é meu Blade Runner 2049. Muitas vezes me vejo operando em escalas desses filmes sci-fi onde as coisas acontecem muito mais em função da manutenção do universo e da realidade vigente que programei do que de uma voz da história e principalmente, das pré-disposições narrativas que a gente, como leitor, fica acomodado a aceitar e esperar de uma história”

-X-

“Não me sinto fazendo algo pra encaixar em uma era ou pra tentar dialogar temas atuais. Acho que sendo jovem e principalmente vivendo uma realidade de debate constante aqui no Brasil, já incorporei muitas dessas ideias e pensamentos na minha vivência, no meu eu. Isso naturalmente facilita essa grande e difícil teia que é escrever uma história. Sinto que existe uma grande responsabilidade dentro de mim, também por ver diversos quadrinistas nacionais abordando temáticas (específicas ou gerais) parecidas com as minhas e vem um sentimento mínimo de competição interna, de conseguir entregar o meu próprio ponto de vista disso tudo – sem soar pretensioso e, principalmente, sem caminhar pra uma bandeira de agrado”

“Antes de tudo, penso pros meus quadrinhos uma visão semelhante à musica pop (que se valoriza, que tem intuito, e não a instrumentalizada pelo fluxo de gravadoras e o mercado fonográfico): penso em acessibilizar o diálogo pro meu leitor de algumas maneiras (com a busca quase que obcecada da síntese do meu desenho e do fluxo narrativo nas páginas, com a linguagem que os personagens se comunicam e as familiaridades da ambientação em relação com quem consome, etc) sem perder a carga necessária de pensamento por trás do que faço (nesse caso, é abraçar e caminhar com o zeitgeist, abordar temas importantes que dialogam com o cenário que criei e que surgem naturalmente, não evitar situações e temas que se aproximem de uma familiaridade do público), mas de alguma maneira tento criar um distanciamento do anti-popular, algo que acho que funciona bem no caso do Dodô – não entregar pro leitor o que ele espera e o previsível pra conclusão das narrativas que mostro e guiar o leitor pra um lado mais perverso, mais delicado, que poucas vezes esse tipo de narrativa aborda (e que uns poderiam classificar como ingênua, mas não acho que denegrir públicos potenciais seja a solução pra justificar uma lógica mais mercadológica de segurança da fidelidade com o público)”

“Nesse caso, me inspiro muito em artistas que convivo de perto e com certeza são MUITO responsáveis pra visão que tenho com quadrinhos, como o David Bowie ou os Talking Heads. São artistas com intenções e que nunca deixaram de incorporar elementos de novas ou outras experiências pra a reciclagem frequente que faziam, seja com a sonoridade, a intenção de publico, as mensagens ou as letras – e acho que é o que me atrai em fazer o que faço. Não quero manter uma linha, achar um traço, me encontrar num gênero e seguir nele pra construir uma solidez por anos, feito um Ramones ou um Foo Fighters da vida, nada pessoal com eles. Mas esse processo constante de estar insatisfeito, querer experimentar, querer incorporar e, como consequência, frustrar meu público de uma obra específica e construir um novo público pra essa nova obra – isso sim é o que me move como quadrinista”


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