Felipe Nunes desenvolve em Dodô alguns dos melhores aspectos de Klaus, obra de estreia do artista e aclamada pela crítica especializada como um dos grandes lançamentos de 2014. A disposição dos quadros continua inventiva, as páginas ainda apresentam belos designs e os desenhos são belíssimos. Funcionário do estúdio dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, Nunes demonstra ser um grande aprendiz ao trabalhar de forma exemplar os contrastes da arte em preto e branco, o que os gêmeos fazem de melhor.
Ainda assim, o Nunes de Dodô é bem distinto e muito superior ao quadrinista de Klaus. Bastaria o grande domínio que ele tem de várias ferramentas e técnicas da linguagem dos quadrinhos para tornar sua segunda HQ uma obra digna de nota. No entanto, esse novo álbum é ancorado em grandes personagens, numa história muito bem contada e na expressão extremamente eficaz de várias emoções. Você não encontrará spoilers por aqui, mas preste atenção na sequência de vinte páginas que compõe o ápice dramático do livro. Trata-se de toda uma cena de passionalidade aflorada com o que Nunes produziu de melhor até hoje.
A trama mostra a rotina de uma garotinha com poucos amigos e com pais separados que ganha a companhia do misterioso dodô do título. Felipe continua investindo em metáforas eficazes para contar suas histórias. Mas se Klaus tem nas figuras antropomórficas que cercam seu protagonista como representações óbvias do deslocamento do personagem principal, Dodô é mais interessante por apresentar um simbolismo mais implícito. O significado e a representação da ave na vida de pequena Laila podem render vários níveis de leitura.
Também vale chamar atenção para os diálogos. É excelente o trabalho de Felipe com as falas de sua protagonista infantil. Remeter à oralidade já é extremamente difícil, fazer isso com falas de crianças deve ser ainda mais. Não sei se por meu apreço pelo livro ou pelo fato dele ter personagens tão instigantes, eu gostaria que ele tivesse algumas páginas a mais. Queria ter visto mais da relação da garota com seu amigo – algo que Nunes justificou muito bem para mim na entrevista a seguir.
Ao receber o troféu de Novo Talento Desenhista na edição de 2015 do prêmio HQMIX, Nunes fez um breve comentário no palco do Sesc Pompéia sobre a necessidade de uma maior representatividade feminina nos quadrinhos. Dodô é protagonizado quase inteiramente por mulheres. Perguntei sobre o fato para o autor e ele me disse que o livro seria aprovado no Teste Bechdel. Tenha sido intencional ou não, o fato torna a obra ainda mais especial e só ressalta a maturidade do quadrinista, fazendo de Dodô mais um ponto alto das HQs nacionais em 2015.
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“O lance do pássaro era algo recorrente comigo, sempre que andava de carro tinha esses devaneios de criança de imaginar bichos correndo do lado de fora. Dessa cabeça vem o conceito do Dodô”
Conversei com o Felipe sobre a produção de Dodô. Ele comentou sobre sua primeira experiência como autor independente, a construção das 20 páginas épicas do final do livro, a construção das personagens da obra e alguns outros tópico. Papo bem bom. Ó:
É muito fácil fazer uma ligação entre você e o Klaus. Os dois são jovens, ainda tão fazendo suas escolhas na vida e encontrando seus próprios caminhos. No Dodô não tá tão clara assim a relação. De onde veio a inspiração pra esse gibi? Você já vivenciou algo semelhante às experiências da Laila?
Cara, realmente acabo encontrando diversas semelhanças entre nós (eu e Klaus) e isso me impressiona hoje. Quando escrevi, me sentia muito distante daquele mundo que planejei, daqueles personagens, daqueles ideais. Hoje vejo que tinha muito de mim na época anterior ao livro – e acho isso bem positivo. Já disse mais de uma vez que me sinto muito à vontade contando histórias que tem alguma ligação com minha realidade e acho que a da Laila é bem próxima da minha. Quando eu era criança, principalmente até uns 8 anos de idade, ficava sozinho em casa com minha avó enquanto minha mãe trabalhava. Não foi nada negativo pra mim e sempre fui muito bem resolvido no fato de ser filho único, mas essas experiências aconteceram comigo. Eu me distraia, inventava brincadeiras, desenhava, assistia TV, me ocupava como possível durante a tarde toda – até minha mãe chegar. Depois, um teco mais velho, ia com minha mãe pro trabalho (uma escola de música) e ficava me ocupando com tarefas de escola ou fazendo qualquer outra coisa enquanto ela cumpria as obrigações dela. Então eu sempre vivi isso. Sempre tive isso perto de mim e acho super interessante tentar passar os lados disso num quadrinho. O lance do pássaro era algo bem recorrente comigo (não especificamente com Dodôs já que não conhecia na época o bicho), mas sempre que andava de carro tinha esses devaneios de criança de imaginar bichos correndo do lado de fora, ou de brincar no quintal e imaginar algo que ia sair das plantas, etc. Dessa cabeça vem o conceito do Dodô.
E como foi escrever uma personagem feminina? Há personagens femininas no Klaus, mas elas são coadjuvantes. No Dodô, além da Laila, também tem a mãe e a Neide. Você tinha em mente alguma questão de representatividade na hora de criar essa hq?
No começo, te digo que não tive não. Sei que a história força alguns esteriótipos (a empregada, por exemplo) mas não me preocupei em representatividade. No começo tentei idealizar a história sendo menina só pra fugir do meu nichozinho machista onde só criamos personagens masculinos. Só pra tentar trabalhar com algo diferente do que faço sempre. Mas depois fui vendo que a história acaba passando no Bechdel Test e isso me deixou muito empolgado. Acho que a história acaba refletindo um pouco de mim também. Sempre fui criado majoritariamente pela minha mãe (sempre tive influência próxima do meu avô, com quem vivemos até eu ter uns 8,9 anos) e por não crescer próximo do meu pai, fui criado sempre com uma mentalidade muito neutra. Nunca tive discursos muito machistas (a não ser os do senso comum) e isso não era reforçado diariamente dentro de casa, como acompanhei com muitos amigos próximos. Sabe, querendo ou não, homens quando juntos viram uns idiotas e acabam entoando cânticos machistas hahahah. Isso me ajuda a idealizar uma história melhor com uma garota, porque não me vejo distante daquela Laila, e não forço nenhuma ação ou esteriótipo dela em nenhum momento só por conveniência de representar uma menina – e acabo avaliando isso como um ponto extra pro gibi. Acho importante colocar cada um no seu lugar e mostrar que uma mulher pode sim bancar uma casa, uma garota pode sim brincar de qualquer coisa que calhar e não só de bonecas e que o gênero dela não interfere no andamento da história.
Reli o Klaus depois que li o Dodô. O Klaus é uma HQ bem legal, mas acho esse segundo trabalho bem mais interessante. Uma das coisas que gosto mais é como você guarda e administra melhor as informações sobre os personagens. Os personagens antropomórficos do Klaus são uma metáfora explícita para representar fora de contexto, tentando encontrar seu caminho. Os símbolos e os significados do Dodô não são tão claros e isso torna tudo muito mais interessante. O quanto você acha que evoluiu do Klaus pro Dodô? Você repensou o Klaus? Cogitou coisas que poderia fazer diferente entre cada trabalho?
Ramon, outro dia me peguei pensando exatamente nisso. Não repensei o Klaus e tento nem entrar nessas discussões na minha cabeça porque não quero dar uma de George Lucas e sair mudando tudo hahah o livro tá publicado e eu não tenho mais controle sobre ele, sobre a história e tudo mais. Mas hoje em dia talvez fizesse coisas diferentes, sim. Como por exemplo o terceiro ato, que teria mantido a cronologia, mas estendendo em mais quadros, pra fluir melhor e o leitor digerir mais (apesar de muita gente elogiar isso). O que cheguei a conclusão é de que o Klaus é uma história aberta e grande onde eu conto um recorte. Um mundo idealizado, com milhões de personagens e pessoas fora da realidade, e uma história de uma civilização por trás, e questionamentos do ser humano e tudo mais. Conto a vida do menino, mas não exploro o âmbito todo. E isso pode ser uma dificuldade, claro. Mas é um recurso.
No caso do Dodô, acho que consigo trabalhar MUITO melhor tudo isso pelo tamanho da abrangência da história: são seis personagens, a história se passa toda dentro de um ambiente, de um ponto de vista particular de um deles. É mais fácil de ter um controle narrativo e saber onde colocar uma informação. onde construir um clímax, onde expôr um problema e como fechar, trabalhar os cômodos da casa pra ornarem os sentimentos dos personagens e etc. (sem spoiler hahaha) Acho que esse domínio me permitiu evoluir muito tanto na narrativa quanto na situação do enredo, em si. A história não tem um problema costumeiro de jornada do herói, como no Klaus. Isso ajuda também a ficar mais à vontade e tentar brincar com tudo isso na linguagem dos quadrinhos.
E o auge do trabalho novo, pra mim, está nas 20 páginas de tensão nos instantes finais do livro. Aquilo é muito bom e tem muita emoção envolvida. Como foi a construção dessa sequência? Sem querer entregar qualquer spoiler, a percepção que os leitores têm do Dodô muda bastante nessa sequência, né?
Cara, eu adoro essa cena também. Fico me perguntando se ela não acontece muito rápido, mas não acho que isso role. Toda a primeira metade do quadrinho é trabalhada em mais quadros, com mais problematizações e apresentações, e esse ponto é crucial pro andamento da história e pra solidificar o que idealizei pro conceito geral. Essa sequência foi uma redenção pra mim (tenho muito orgulho dela e talvez seja a melhor coisa que já fiz em quadrinhos) e muito disso graças ao recurso do roteiro direto no thumbnail. Quando comecei a escrever o roteiro, tentei redigi-lo como peça de teatro (no esquema de ação x fala x ação) e comecei a me embananar todo com todas as referências visuais dos quadros. No Klaus não tive muito isso porque quando escrevi a história não tinha um traço muito certo e não sabia muito como ia executar depois – eu só escrevi. Agora, no Dodô, acabei desencanando desse esquema e usei esse jeito (que o Craig Thompson e o Jeff Smith usam, e o que me influenciou a tentar) de tentar pensar nas páginas como um todo mesmo. Pensar o roteiro página a página, pensando no cliffhanger, no número (se é uma página ímpar ou par, se o leitor vai virar ou não a página) e isso tudo me ajudou DEMAIS nessa sequência. DEMAIS. Porque eu sabia que tinha X páginas pra resolver isso e me senti mais à vontade pra diminuir o número de quadros em uma, aumentar em outra e ditar o ritmo de leitura com tranquilidade. Era uma passagem fundamental pra história e que se tivesse feito de outra maneira talvez não expressasse de uma maneira correta as reações dos personagens com isso.
Você já tinha publicado trabalhos independentes, mas acho que esse é seu maior projeto nessa linha. Como foi essa experiência pra você? Pensar não só a história do gibi, mas toda a linha de produção, em termos de custos, gráfica e distribuição?
Pois é, nunca tinha tido a experiência de pensar no todo assim, tão seriamente. Quando fiz o SOS e o Orome, eram revistas independentes. Agora, depois do barulho que o Klaus fez, preciso encarar o livro de outra maneira e fazer valer a pena esse processo. Porque estou fazendo independente? O que eu ganho nesse processo que não ganho na editora, já que a apresentação do produto final seria a mesma? Essas questões tem de ser pensadas e preciso otimizar o andamento disso. Preciso pensar na distribuição, nas coisinhas todas. Então, por exemplo: vou fazer uns brindes extras pra quem comprar o livro na pré-venda e pros jornalistas de quadrinhos. Eu acho esse agrado bem importante se eu quero conquistar o público, se quero estabelecer um contato mais próximo e exclusivo, algo que dê um motivo pras pessoas estarem fazendo isso e tudo mais, por exemplo. Os lindos da editora Mino fazem isso excelentemente bem. São umas coisas que acho importantíssimas pra nós que somos independentes e que não vejo quase ninguém fazendo. A editora tem um setor só disso, mas a gente não. Quem faz um mínimo de esforço acaba se sobressaindo em relação aos outros – e isso é fundamental.
Eu gostei muito do livro. Como te disse, acho que você constrói muito bem seus personagens e a relação entre eles. Acho até que veio daí uma das minhas poucas insatisfações: ele passa muito rápido. A relação entre a Laila e o Dodô é incrível, mas parece durar muito pouco. Pra mim, ficou um pouco corrido, é muito emoção em um espaço curto. Você não cogitou ampliar um pouco a obra?
Bom, Ramon, pensando no que tu disse, talvez seja um grande defeito em minhas histórias – a ansiedade. Talvez seja pelo meu jeito, pela minha personalidade, e talvez eu deposite muita emoção e energia em um espaço pequeno. O maior defeito do Klaus, por exemplo, ao meu ver, é a correria do terceiro ato. Esticar a mesma sequência em mais seis ou oito páginas ajudaria muito na digestão da história pelo leitor e na melhor assimilação dos questionamentos do personagem. Mesmo assim, não tem nada que me incomoda muito AGORA no Dodô. Ao longo das semanas eu matuto uma ou outra coisinha mas nada que me mexa como no Klaus. Acho que é até um jeito interessante sintetizar toda a emoção acumulada dos personagens em um dia, dois dias. A relação da Laila e do pássaro tem uma introdução grande (o primeiro ato ocupa um terço do livro) enquanto o “epílogo” funciona como um terceiro ato, uma conclusão. Poderia não ter, também. Poderia acabar no auge da tensão, cheio de ponto sem nó. Mas acredito que uma coisa que pode provocar essa sensação de velocidade no leitor seja o que tu comentou sobre o carisma. A Laila e o Rafinha são muito carismáticos e simpáticos, tem sua relação de altos e baixos e isso ajuda a entreter o leitor e querer mais e mais disso – e fico muito contente de que isso esteja rolando. Talvez até eu esteja perdendo um potencial em criar um personagem desse e matar a durabilidade dele em setenta, cem páginas hahahah não é a primeira vez. Mesmo assim, voltando pros questionamentos, acho que não existe um porque de esticar essa sequência. A situação do pássaro não se sustentaria muito tempo quando se tem seis anos. Inevitavelmente alguém entraria no quarto, alguém descobriria o que eles tramavam e isso, do tempo curto, talvez aproxime a história de uma realidade mais palpável.
Uma vez me falaram que o papel do editor é de encontrar a melhor ideia de uma obra e ajudar o autor a desenvolver e explorar esse conceito. Sei que você conversou e trabalhou a HQ com várias pessoas, mas em algum momento você se sentiu inseguro? Como autor independente, você sentiu falta em algum instante de alguém que pudesse te dar o rumo do que melhor explorar?
Poxa, não sei, de verdade. Minha experiência com a editora [Balão, responsável pelo lançamento de Klaus] foi de muita liberdade e os palpites válidos vieram em detalhes de execução que carregam menos estilo, por exemplo. Existe quadrinista que prolonga mais e que encurta mais uma cena, assim como um diretor de cinema, e isso foi bem respeitado, apesar de achar um tanto ruim. Acho que no fundo falta uma mão pesada de um editor pra moldar nosso trabalho em algumas situações, que respeitem as intenções do artista e que guiem ele pra um caminho melhor. Pense num produtor musical: muitas vezes um artista só se encontra ou faz um CD realmente excelente quando aparece aquele produtor certo pra ajudá-lo onde colocar a próxima nota, onde repetir o refrão, onde simplificar a melodia, e os porquês de tudo isso. Provavelmente eu tenha um experiência diferente a cada editor que encontrar em minha carreira e acredito que cada uma dessas experiências vai servir pra acrescentar em algo positivamente pro meu feeling. Então, sem dúvidas, coisas seriam diferentes, mas estou muito satisfeito com o Dodô.
Acrescentando uma coisa sobre guiar um palpite alheio, menos especificamente – conversando com o Leandro Fernandez (Far South) durante a Multiverso Comicon, descobri que ele foi um assistente funcional do Eduardo Risso. Ele desenhava cenários, ele reproduzia o desenho dele , mimetizando, pra aumentar o volume de trabalho e conseguirem desenhar mais revistas por mês. Provavelmente, se o Fábio e o Bá tivessem imposto esse tipo de trabalho pra mim na época eu não aceitasse, por causa de um orgulho besta. Hoje, sinto que se tivesse me tornado um tipo de pessoa assim, sugando fielmente um artista, pra depois desenvolver minha linha, talvez meu desenho e minha carreira tivessem guiado pra um caminho muito mais rico visualmente. Ou não, também. Um palpite alheio é muito necessário e todos os palpites que eles e todos os meus amigos próximos deram sobre a história foram incorporados, seja na narrativa ou na minha cabecinha pras próximas coisas que eu quiser desenvolver.