“Por que a gente faz quadrinho?”, questiona Ezra Pound a Ernest Hemingway durante uma partida de pingue-pongue no reduto boêmio parisiense do Quartier Latin, em algum momento dos anos 1920. A resposta parte do também quadrinista James Joyce: “É porque líamos quadrinhos quando éramos crianças. Se tivéssemos jogado futebol ou subido em árvores, hoje seríamos normais. Teríamos trabalhos de verdade. Seríamos motoristas de ônibus ou carpinteiros e seríamos felizes”.
O autor irlandês encerra com um lamento: “Agora é tarde demais. É a única coisa que sei fazer. Não consigo dirigir um ônibus, nem acertar um prego com um martelo. Mas consigo contar uma história com desenhos e foder minha vista um pouco mais a cada dia. Estamos fodidos”.
Recém-lançado no Brasil pela editora Mino, com tradução de Dandara Palankof, A Gangue da Margem Esquerda apresenta quatro dos maiores nomes da literatura inglesa como autores de histórias em quadrinhos. Não só. Desenhados como animais antropomorfizados, Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway estão insatisfeitos com os rumos de suas carreiras e suas dificuldades financeiras, então arquitetam um assalto à mão armada.
“Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”
Terceira obra do quadrinista norueguês Jason publicada no Brasil, a HQ rendeu ao autor o Prêmio Eisner de Melhor Título Estrangeiro no ano de 2007. Seu primeiro trabalho lançado por aqui foi Sshhhh!, coletânea em preto e branco de histórias curtas e mudas que vão do humor ao macabro. Depois saiu Eu Matei Adolf Hitler, sobre um assassino profissional contratado por um cientista para viajar no tempo, matar o líder nazista e impedir o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.
A Gangue da Margem Esquerda segue muito dos padrões dos demais trabalhos de Jason, como o uso de personagens antropomorfizados e a elegância narrativa caracterizada principalmente pelo uso de um gride constante de nove quadros por página. O contraste maior está na trama.
“Eu gosto do Hemingway e li muitas biografias sobre ele e sobre a Paris dos anos 1920. Foi um período emocionante, com muitas pessoas interessantes morando lá. Eu senti que era um bom lugar para ambientar uma história”, disse Jason em entrevista por email ao Vitralizado.
Jason consegue se relacionar com muitos desses escritores e artistas que viveram na Paris de 100 anos atrás. Na avaliação dele, na maior parte do tempo, a principal preocupação desses autores era a mesma que ele tinha quando estava em seus 30 e poucos anos, recém-saído da faculdade e tentando viver como quadrinista: ganhar dinheiro para pagar o aluguel. Para Jason, dificuldades financeiras tendem a ser um drama para 99% dos artistas.
“Na maioria das vezes, não há muito dinheiro envolvido. Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado. Sem grandes apartamentos, sem férias caras, sem carros sofisticados. A menos que você seja daquele sortudo 1% que terá um sucesso ou conseguirá um contrato de cinema e poderá ganhar muito dinheiro. Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”.
“Achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”
E por que fazer dos quatro protagonistas autores de histórias em quadrinhos?
“Para criar um distanciamento dos artistas, deixando claro que isso é uma fantasia e não fatos biográficos. Usei alguns fatos, mas ao mesmo tempo tive liberdade para inventar uma história. Além disso, achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”.
Fitzgerald é mostrado lamentando a falta de interesse da esposa, Zelda, em suas HQs e Hemingway protagoniza uma cena na qual busca conselhos com a mentora Gertrude Stein – creditada como responsável pela criação do termo Geração Perdida para designar esse grupo de autores expatriados na Paris dos anos 1920.
“Que tipo de lápis está usando?”, questiona Stein, também transformada em quadrinista. Depois ela instrui: “Nunca copie uma foto. Se precisar desenhar um automóvel, saia, ache um e desenhe em seu caderno de rascunhos, certo?”.
Já a ideia do roubo partiu de uma sessão de O Grande Golpe (1956), terceiro filme de Stanley Kubrick, com o ator Sterling Hayden no papel de um ladrão recém-saído de um período de cinco anos atrás das grades que planeja um último assalto antes de se casar e se aposentar da vida de crimes.
A metade final de A Gangue da Margem Esquerda, focada no crime executado pelo quarteto de quadrinistas, tem influência direta da narrativa fora de ordem cronológica do assalto mostrado no filme de Kubrick. A ação e os desdobramentos do roubo arquitetado por Hemingway com o auxílio de seus três amigos são apresentados sob os pontos de vista de sete personagens.
Em relação à produção do quadrinho, Jason diz ter seguido sua prática habitual de tinta e papel, sem uso de computador.
“Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela”
“Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo. Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela. Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir. Às vezes eu tenho pedaços de diálogos. Outras vezes, as imagens aparecem primeiro e eu decido o diálogo enquanto desenho. Às vezes, faço esboços em miniatura, faço a maior parte do trabalho diretamente na página”.
Hoje aos 54 anos, Jason reside desde 2007 na cidade francesa de Montpellier. Ele está atualmente confinado em casa, respeitando o isolamento social imposto pelas autoridades locais durante a pandemia do novo coronavírus. Mas ele conta que sua vida como o autor de quadrinhos já impõe certo distanciamento social ao trabalhar em casa na maior parte do tempo.
Ele acredita ainda estar cedo para mensurar o impacto da pandemia no mercado de quadrinhos, mas mostra-se pessimista: “Sou publicado na maior parte das vezes por editoras pequenas, administradas por duas pessoas. E o mercado já é difícil, pelo menos na França, com muitas publicações novas a cada semana. Espero que todos os meus editores ainda estejam por aí e que as lojas de quadrinhos também se saiam bem quando meu novo livro for publicado na próxima primavera”.