Estarei sempre no aguardo de um próximo álbum do quadrinista Charles Burns, mas Final Cut (DarkSide Books) poderia ser sua HQ derradeira. Blake Hole (DarkSide Books) segue sendo sua obra prima e Sem Volta (Companhia das Letras) seu trabalho mais adulto. Já o título mais recente do autor lançado em português, com tradução de Bruno Dorigatti, me soa como uma espécie de síntese temática e narrativa de seus trabalhos até aqui.
As obras de Burns são habitualmente protagonizadas por personagens jovens. Tratam da desilusão e da desesperança típicas da saída da adolescência e do início da vida adulta. O traço do autor é simultaneamente meticuloso e caricato, sua narrativa invariavelmente conservadora. É meio que um Hergé contemporâneo, mas bizarro e sombrio como uma aventura do Tintim jamais conseguiria ser.
Burns despontou no meio dos quadrinhos como um dos jovens talentos publicados por Art Spiegelman e Françoise Mouly na revista Raw. O lançamento de Black Hole em meados dos anos 1990 o tornou um dos grandes de sua geração. Talvez seja a HQ sobre amadurecimento mais célebre de todos os tempos, uma espécie de O Apanhador no Campo de Centeio macabro. Mostra adolescentes passando por mutações grotescas após darem início às suas vidas sexuais.
Poucos quadrinhos me pegaram tão em cheio quanto Black Hole. Li pela primeira vez lá em 2007/2008, com as duas edições da Conrad, em tradução de Daniel Pellizzari. Reli recentemente a republicação em volume único da DarkSide, com a mesma tradução de alguns anos atrás.

Tenho as minhas preferências por quadrinhos mais herméticos e investidas mais ousadas em termos de linguagem e não tem nada disso nas HQs de Burns. As esquisitices dele dizem respeito às tramas, mas é quadro ao lado de quadro, muito clima e um fiapo de história. A mágica acontece na ambientação, principalmente em seus trabalhos em preto e branco.
Não acredito em arte bonita ou feia. Em termos de quadrinhos, sempre diz respeito à funcionalidade do traço, como ele contribui para a história ou para a experiência que o autor se propõe a passar. Desenho é detalhe. A minha exceção é Charles Burns. Fico hipnotizado por suas ilustrações. É a versão underground da mágica do Jack Kirby e do Mike Mignola.
Final Cut poderia ser um spin-off de Black Hole. O álbum tem dois protagonistas, os jovens Brian e Laurie. Ele é soturno, bom de desenho, obcecado por filmes antigos de terror e codiretor de curtas trash em parceria com seu amigo Jimmy. Já ela é divertida, curiosa e protagonista da mais nova produção codirigida pelos dois amigos. O livro investe na relação dos dois personagens principais em meio a conflitos em seu grupo de amigos.
Um trecho do quadrinho mostra a obsessão repentina de Brian por A Última Sessão de Cinema, filme de 1971 dirigido por Peter Bogdanovich e inspirado no livro homônimo de Larry McMurtry. É uma das obras mais célebres sobre adolescência e amadurecimento dos anos 1970, ambientada no começo da década de 1950.

A trama gira em torno da amizade de dois estudantes de ensino médio, interpretados por Timothy Bottoms e Jeff Bridges, em uma cidadezinha do interior do Texas e as perdas das inocências de ambos. Poderia ser a trama de uma HQ de Burns. A menção ao filme me parece uma grande ode àquela que talvez seja uma das maiores influências do quadrinista.
Burns até tem suas outras paixões. Obras publicadas em português como El Borbah e Big Baby, também pela DarkSide, giram em torno do interesse do autor por filmes de terror b e criaturas monstruosas – e são referências que também não deixam de ser metáforas para medo, isolamento e dificuldades de relacionamento. Mas o cerne de seus trabalhos, sua temática maior, diz respeito a jovens desesperançosos e descrentes em relação ao futuro.

Em 2018, entrevistei Burns para escrever para a Folha de S.Paulo sobre o lançamento de Sem Volta no Brasil. Perguntei para ele sobre a manutenção desse protagonismo jovem de seus trabalhos ao longo dos anos, se ele mudou a relação com seus personagens adolescentes à medida que ele foi envelhecendo. Ele respondeu: “Essa é uma boa pergunta, eu me faço ela constantemente e não tenho uma boa resposta. Acho que parte da resposta é: eu tenho pouco interesse na minha vida adulta e de meia-idade, suspeito”.
Também quis saber o que ele achava da percepção de seus quadrinhos como obras de terror e ele disse: “Eu não fico surpreso. Eu não tenho nenhuma intenção específica de aterrorizar ninguém ou fazer qualquer coisa que seja horrorizante. Há alguns elementos que podem ser classificados dessa forma, mas eu sempre brinco e digo que os meus quadrinhos são histórias de amor”.
Lembro do riso breve de Burns ao telefone quando encerrou essa última resposta.
Li Black Hole com meus 20 e poucos anos, na hora certa, me relacionei com os protagonistas e fui embasbacado pelo preto e branco de Burns. Mais de 10 anos depois, Sem Volta me arrebatou por sua esquisitice. Já Final Cut é a versão mais pé no chão do autor – eu apostaria até em inspirações autobiográficas. Não tem as bizarrices de seus trabalhos prévios, mas talvez seja o mais próximo que ele já conseguiu de me entregar uma história de amor.
