O quadrinista Gidalti Jr. receberá na noite de hoje, no Auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, o troféu de primeiro colocado no Prêmio Jabuti 2017 na categoria estreante de Histórias em Quadrinhos. O artista nascido em Belo Horizonte, criado em Belém e residente em São Paulo foi anunciado como o vencedor da premiação no início de novembro, por seu trabalho no álbum Castanha do Pará, publicação independente, bancada via financiamento coletivo no site Catarse e primeira HQ do autor. A segunda colocada no Jabuti 2017 foi a coletânea Hinário Nacional, de Marcello Quintanilha, publicada pela editora Veneta, e a terceira colocação ficou com Quadrinhos dos Anos 10, de André Dahmer, lançada pela Companhia das Letras.
Como informado pelo presidente da Câmara Brasileira do Livro, Luís Antônio Torelli, no dia 3 de maio, em evento realizado na sede da instituição para o anúncio da criação da categoria Histórias em Quadrinhos, a inclusão de HQs no Prêmio Jabuti é fruto direto da campanha iniciada pelo quadrinista Wagner Willian em dezembro de 2016 que resultou em um abaixo-assinado com mais de 2118 nomes.
“Me inscrevi no prêmio Jabuti por descargo de consciência e na, melhor das hipóteses, esperava ser finalista”, pondera Gidalti Jr. em entrevista ao blog. A conversa foi realizada pouco mais de dez meses após uma primeira entrevista, feita em fevereiro, na véspera do evento de lançamento de Castanha do Pará em São Paulo. “Meu método de trabalho é bem caótico e ainda está em processo de amadurecimento, uma vez que só produzi um álbum”, contou Gidalti no início do ano. Em meio a participações em programas de TV em decorrência da imensa repercussão da vitória no Jabuti e no intervalo de um passeio com a filha, o quadrinista respondeu a algumas perguntas por email sobre sua conquista, o impacto da vitória em sua vida profissional e seus planos futuros com quadrinhos. A seguir, Gidalti Jr.:
“O financiamento coletivo foi a opção que encontrei para convencer as pessoas de que o meu trabalho merecia uma chance”
Na nossa conversa de fevereiro você falou sobre os três anos de produção do livro. Você disse que hoje tem uma relação melhor com o tempo, que uma das lições da produção do Castanha foi aprender a respeitar a sua arte e manter uma disciplina tendo em mente que o tempo passa e a obra fica. Às vésperas de receber o troféu de primeiro lugar no Jabuti de estreia da categoria Histórias em Quadrinhos, qual balanço você faz de todo esse período de investimento no Castanha?
Fazer quadrinhos é um oficio árduo e exige disciplina. Alguns quadrinistas conseguem ter uma dinâmica rápida no fazer, especialmente os que atuam no mercado americano. Particularmente, preciso de muita reflexão na hora de compor os quadros, na escolha da melhor palavra ou a forma ideal para comunicar o que desejo como autor. Pensar figurino, locação, enquadramento, elenco, entre outros, é quase como o trabalho de um diretor de cinema, sendo que você dirige a si próprio. Logo, a tarefa de fazer quadrinhos sempre será monumental. Passei muitos anos na publicidade, onde tudo é muito rápido e envolve mais dinheiro e mais pessoas para a realização de um trabalho e isso me deixou um pouco ansioso quando iniciei minha empreitada como quadrinista. Estava muito focado em gerenciar o processo como faz um publicitário, cuidando dos aspectos macroscópicos ligados ao marketing e pouco em trabalhar como um artista. Também posso refletir sobre a influência que o mercado americano de super-heróis ainda exercia sobre mim, pois estava sempre me cobrando velocidade, aperfeiçoamento técnico ao extremo e mobilizando equipe de finalistas e coloristas. Estava me distanciando do capricho do artesão, que nunca delega processos e executa com paciência e precisão o ofício. Então, largar a publicidade e encarar um projeto de quadrinhos foi algo que mudou muito minha forma de encarar o trabalho. Acho que fazer quadrinhos está mais próximo de uma pesquisa acadêmica. Cada dia você coloca um tijolo, conecta uma informação, resolve um problema estético ou de narrativa, encontra a palavra perfeita. Minha relação com o ensino acadêmico foi importante nesse processo, pois pude manter um trabalho de jornada parcial para bancar minimamente as despesas. O contato com a literatura acadêmica em artes visuais e comunicação social, o convívio com professores, intelectuais e outros artistas do universo das artes também me ajudaram a direcionar o meu trabalho para uma abordagem mais pessoal.
Quando você é novato no mundo da produção de histórias em quadrinhos, a maioria dos colegas mais experientes te aconselha a produzir algo mais modesto em termos de quantidade de páginas e de labor técnico. A lógica é correta, mas eu já estava acostumado com rotinas de trabalho intensos e já havia desenvolvido uma boa abertura para a crítica e pude receber conselhos valiosos de muitos amigos e aperfeiçoar cada vez mais o trabalho. Procuro estar atento a todas as dicas e conselhos, mas é preciso ter consciência de que a responsabilidade e as consequências das escolhas são nossas, portanto, procuro fazer aquilo que verdadeiramente acredito.
Troquei toda uma estabilidade profissional e o conforto de estar perto da família em Belém para empreender na área artística em São Paulo, logo, sempre foquei em fazer algo consistente e de valor artístico. Os primeiros anos em São Paulo foram os mais difíceis. Frequentei feiras de quadrinhos pelo Brasil para entender mais sobre os bastidores. Tive muitas derrotas, como a não aceitação em vários editais, negativas de editoras e propostas desrespeitosas, mas isso só me fez ter mais vontade de trabalhar e abrir as portas mesmo que na marra.
Felizmente, hoje existem muitas possibilidades para concretizar um projeto empreendedor. O financiamento coletivo foi a opção que encontrei para convencer as pessoas de que o meu trabalho merecia uma chance. Creio que a paciência para escolher a hora certa de materializar o álbum foi determinante para o sucesso da obra. Talvez, se eu tivesse conseguido um edital ou fechado com alguma proposta de editoras, o álbum não seria premiado, pois os eventos aconteceram de maneira orquestrada para ele fosse o estreante da categoria no prêmio Jabuti. Penso que o reconhecimento da premiação ao meu trabalho comprova que nada pode parar uma pessoa determinada.
Poucos quadrinhos conseguem romper a cobertura especializada formada principalmente por sites, blogs e canais do YouTube. Eu imagino que essa vitória no Jabuti atraiu um outro olhar para o Castanha do Pará. O que você achou dessa atenção? Como foi a sua relação com a dita “grande imprensa” em seguida ao anúncio da sua vitória?
Não há dúvidas de que o espaço na mídia para minha obra se ampliou após o Jabuti, especialmente no contexto nacional, uma vez que em Belém a imprensa sempre foi muito generosa comigo. Mas há de se reconhecer que parte da grande imprensa tem o foco nos produtos mainstream, pois existem forças de mercado que regem essa dinâmica. O mundo é assim. Ponto! Vamos trabalhar para ser interessantes também. Novamente sobre meu trabalho, vejo que muitos canais tiveram uma abordagem rica e até mesmo orgulhosa em relação ao fato de ser um álbum independente e com pegada social forte, mas outros praticamente protocolaram a notícia ou mesmo ignoraram. Entendo as regras do jogo e estou trabalhando arduamente naquilo que acredito, para assim abrir mais espaço em todos segmentos da mídia, mas o que me move é a qualidade e a quantidade de leitores que alcanço. Penso que a inserção na dita “grande imprensa” já foi pior para os autores brasileiros, especialmente os independentes, mas as coisas estão melhorando significativamente nos últimos anos, pois essa produção tem se mostrando muito consistente e madura.
“Temos hoje vários projetos editoriais com o foco em autores brasileiros, mas gostaria de ver mais ousadia no mercado nacional para que os autores tenham melhores condições de trabalho”
Uma coisa que chama atenção na vitória do Castanha está no fato de ser uma obra independente vitoriosa em uma premiação voltada para editoras. Como você interpreta esse fato?
Me inscrevi no prêmio Jabuti por descargo de consciência e na, melhor das hipóteses, esperava ser finalista por algumas razões: primeiro, por nunca ter publicado nem mesmo um fanzine antes do Castanha. Sempre fui consumidor e produzia só por diversão. Ainda bem que o prêmio é para a obra e não para o histórico do autor ou para editoras, como você sugeriu. Segundo, porque meu trabalho é independente e eu sabia que estaria competindo com grandes editoras e eventualmente, autores já consagrados. Quando foram anunciados os finalistas, fiquei realmente muito feliz, mas ao ver os gigantes que concorriam comigo, me dei por satisfeito onde tinha chegado. Ainda bem que me surpreendi e pude ganhar ainda mais confiança em relação à minha poética. Estou renovado e gratificado com esse reconhecimento. Creio que as editoras deveriam estar mais atentas ao cenário independente. Temos hoje vários projetos editoriais com o foco em autores brasileiros, mas gostaria de ver mais ousadia no mercado nacional para que os autores tenham melhores condições de trabalho, embora entenda que o mercado é difícil para todos, pois o que realmente precisamos é de mais leitores.
O Castanha é a sua primeira obra e você ganhou o primeiro lugar do Jabuti com ela. Acho que ainda tá cedo, mas que tipo de impacto você espera que essa vitória possa ter na sua carreira como quadrinista?
Acho que fará com que as pessoas se interessem mais pela obra e por meus futuros trabalhos, o que pode gera mais credibilidade para com o mercado. Continuo ciente de que a empreitada é sempre dura e exige muita paixão e disciplina. Não romantizo e sou cético em relação a tudo. Na minha opinião, o grande beneficiário deste prêmio é o gênero em si, afinal, teremos outros ganhadores no futuro e os que já foram premiados, devem continuar a produzir em alto nível ou cairão no esquecimento. Logo, creio que toda a classe deva estar feliz com o reconhecimento da CBL aos quadrinhos, o que deve estimular todos a produzir mais. Creio ainda que o mercado possa expandir mais a partir da maior circulação dos finalistas na mídia.
“Posso dizer que recebi muitas abordagens e estou apreciando tudo com calma, mas certamente as condições para meus próximos trabalhos devem ser melhores. Espero surpreender novamente”
Você já tem planos para um próximo trabalho? Chegou a ser procurado por alguma editora em seguida a essa vitória no Jabuti?
Trabalho com alta regularidade e intensidade moderada. Só assim consigo manter várias áreas da vida equilibrada e dar conta de tudo. Continuo com minha rotina de professor universitário e pesquisador e estou dedicando muito tempo para minha filha que nasceu há poucos meses. Estou sim, produzindo uma nova HQ. Está em uma fase de aprimoramento do roteiro e pesquisa iconográfica e não sei exatamente quando devo iniciar a exposição desse material. Posso adiantar que é novamente ambientada na região norte do Brasil, na Amazônia urbana. Vai tocar em assuntos como violência e difamação. Além de produzir histórias em quadrinhos em estrutura tradicional, estou envolvido em um projeto de pesquisa acadêmica em poéticas visuais, que investiga as possibilidades de hibridização entre a pintura, a narrativa e a palavra, também em fase inicial. Sobre propostas pós-prêmio, posso dizer que recebi muitas abordagens e estou apreciando tudo com calma, mas certamente as condições para meus próximos trabalhos devem ser melhores. Espero surpreender novamente.
Você encerrava aquela primeira entrevista que fizemos falando sobre a sua satisfação com o resultado do livro, que estava feliz com a cobertura da imprensa e o retorno do público até então. Ainda assim, você também dizia que era muito cedo para avaliar e que o livro não tinha alcançado todo o público esperado. E agora? Como você avalia a recepção do público e da cena brasileira de quadrinhos ao seu trabalho? Você já alcançou todo o público que esperava?
Acho que o alcance da minha obra está melhorando muito, mas ainda é muito pequeno. Publicar de forma independente, em regra, te coloca em um patamar de tiragem baixo. Distribuir e comercializar são tarefas complicadas para quem tem uma rotina de produção como a minha. Trabalhei de forma independente porque no momento foi a melhor opção, mas estou ciente de que esse formato pode me limitar em alguns aspectos. Estou muito satisfeito com tudo, mas acho que preciso agregar outras forças para que o meu trabalho ganhe mais espaço no mercado, na mídia e alcance mais leitores, que é o grande propósito de se produzir literatura. Sei que minha obra é direcionada para um público mais adulto. Isso é evidente nos eventos em que o público mais maduro costuma apreciar mais a proposta de brasilidade e foco ao contexto amazônico que apresento em meu trabalho. Portanto, penso que meus leitores sejam mais restritos ainda e de maior dificuldade de serem alcançados. A predominância da associação entre quadrinhos e literatura infanto-juvenil ainda é muito forte no Brasil. Em relação à cena brasileira de quadrinhos, acho que fui muito bem recebido. A grande questão se resume a publicar, de preferência algo sólido. Enquanto você só fala de projetos e de coisas que fará, das dificuldades do mercado e da vida, a comunidade não vai te respeitar. Agora, no momento em que você mostra algo palpável, realizado, todos os players te olham como alguém que faz parte da cena. Isso é justo e natural. Portanto, é sempre bom falar menos e fazer mais. Tenho consciência que sou um autor novo e a questão do alcance vá melhorar com trabalho e tempo. Num mundo conectado e cada vez mais tecnológico, é sempre possível ampliar ainda mais o seu público e vou sempre almejar isso.
Uma salva de palmas ao grande Gidalti Jr! Conheço sua caminhada, desde a época do ensino médio, ele já despontava com talento singular p o desenho. E realmente perseverou e batalhou para chegar onde chegou. Parabéns ao autor do Castanha, um orgulho para a região Norte, e que venham novas publicações e experimentações!!! ???????????