Os ares fabiozimbrescos crescentes de Xavier Ramos e a clareza editorial do Selo Harvi

Já escrevi em algum canto como conheci o Xavier Ramos. Foi em julho de 2015, ele devia ter uns 14 ou 15 anos e estava com a irmã, a também quadrinista Frida Ramos, distribuindo zines em uma edição da feira Fest Comix. Outros tempos. Suspeito ter tudo que os dois publicaram desde então – e ambos só melhoraram. As crônicas em quadrinhos dos dois tornam o banal relevante e poético como os melhores representantes do gênero conseguem fazer.

Vidrado (ou: A Hora de Almoço de Mosquito Matogrosso) é o trabalho solo mais recente e mais longo (84 páginas) do Xavier Ramos. Saiu pelo Selo Harvi, do quadrinista Marcos KZ.

A sinopse oficial diz que a HQ mostra “o dia a dia de personagens que trabalham montando obras de um museu e nos apresenta a interseção de dois lados do mundo da arte: o mundano e o conceitual”.

A graça desse resumo é que o Xavier Ramos realmente nunca foi tão mundano. Vidrado é um registro factual de alguns instantes na vida dos funcionários do tal museu. Ao mesmo tempo, ele também nunca foi tão conceitual. Para quem começou com ares de Adrian Tomine, ele tem enveredado por caminhos cada vez mais fabiozimbrescos.

Sabe aquela sensação estranha de ler uma obra do Fabio Zimbres? Nada acontece, mas tá tudo ali. O desenho parece coisa de criança, mas sobra técnica. Você chega ao fim sem nem ter entendido direito que tinha começado. Tudo meio suspeito/meio esquisito. Sei lá o que tem rolado na cabeça do Xavier, mas espero que ele siga assim.

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Quadros de Vidrado, obra de Xavier Ramos publicada pelo Selo Harvi (divulgação)

A minha entrevista com o quadrinista Jason Lutes é uma das minhas preferidas do blog. Não só porque o trabalho dele em Berlim resultou em uma das minhas HQs favoritas na vida, mas também, obviamente, por muitas das coisas que ele disse. Professor do Center for Cartoon Studies, ele contou que seu maior esforço em suas aulas está em passar para seus alunos a importância de “clareza”.

Ele explicou: “Não que os seus quadrinhos devam ser desenhados com clareza, mas qualquer que seja sua intenção, o que quer que você esteja tentando comunicar, clareza é o que vai te ajudar a chegar lá”.

Depois ele exemplificou: “Alguém como o Gary Panther, ou qualquer um que seja um quadrinista expressionista, isso é parte do que eles estão tentando comunicar. É o oposto do espectro de alguém como o Chris Ware, que faz tudo pequeno, todos os pedacinhos de cada impressão são ocupados por vários elementos”.

Aí Lutes concluiu: “A maior parte das nossas conversas quando analisamos o trabalho de alguém diz respeito a ‘era essa a sua intenção? Porque eu estou entendendo dessa forma e não desse jeito e quero ter certeza de que você está fazendo certo’. Então, para mim diz respeito a esse aspecto principal: o que você está querendo dizer? Está expressando isso bem? Para além disso, diz respeito a cada indivíduo”.

O Xavier Ramos me parece cada vez mais claro em sua esquisitice crescente.

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Quadro de Vidrado, obra de Xavier Ramos publicada pelo Selo Harvi (divulgação)

Também celebro a clareza do editor Marcos KZ. Os filtros editoriais e curatoriais do Selo Harvi me parecem mais claros do que nunca. Além de sua própria revista, a Liget, ele já lançou obras de João B. Godói (edições da revista Vira Lata e o álbum No Cruzamento da Júpiter Com A Saturno), Aline Zouvi (Não Nasci Sabendo), Deborah Salles (Quase um Ano) e Rogi Silva (Pumii do Vulcão). Além das duas edições da coletânea Harvi.

Tudo na mesma onda do esquisito/banal de Vidrado – e tão bom quanto.

O KZ explicou a origem e o filtro do selo em edição recente da newsletter do Selo Harvi. O nome é uma versão abrasileirada de Harvey, homenagem ao saudosos Harvey Pekar (1939-2010), autor da série American Splendor.

Ele escreveu: “Pekar, o cara que fazia quadrinhos autorais e autobiográficos sem saber desenhar, basicamente levando na base da lábia os seus amigos artistas. O filho de imigrantes judeus da classe trabalhadora. O cara que virou filme, mas trabalhou até se aposentar como arquivista num hospital público. Que fez tudo na base da insistência”.

O criador e editor do Selo Harvi depois disse: “Fazer essa conexão com o nome dele pode sugerir que o selo seja focado em histórias autobiográficas – o formato que Pekar mais usou e que o tornou relativamente famoso. Mas não é bem isso. Também não é só pelo foco em quadrinhos mais pessoais – que são de fato o foco do selo e também uma marca de todos os trabalhos de Pekar. Na verdade, acima de tudo, vejo nele um modelo de COMO fazer quadrinhos”.

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Quadro de Vidrado, obra de Xavier Ramos publicada pelo Selo Harvi (divulgação)

O Marcos KZ também tem suas esquisitices. Nem sempre entendo algumas referências presentes em uns quadrinhos dele. Gosto disso. Tem um lance de piada interna e referência obscura que curto ainda mais quando não faz sentido nenhum para mim. Siga assim também, KZ.

Em outra edição da newsletter da Harvi, ele explicou porque chama sua empreitada editorial de selo e não editora. Diz respeito ao interesse dele por selos musicais independentes: “Eu gostaria que, aos poucos, o Selo Harvi se tornasse algo com uma identidade forte, que atraísse pessoas com sensibilidades parecidas e fizesse com que elas se sentissem em casa ao ler nossas publicações – da mesma forma que eu me sentia (e ainda me sinto) ao descobrir um selo ou coletivo novo”.

Já fui mais de música, mas nunca dei a devida atenção aos selos ou gravadoras pelas quais os meus músicos e bandas preferidos saem. Meu foco maior está em quadrinhos e vejo cada vez mais selos independentes com “identidade forte” que o KZ mencionou no texto dele. Torço para que o Harvi também siga assim. 

Capa de Vidrado, obra de Xavier Ramos publicada pelo Selo Harvi (divulgação)
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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