Intrusos é o primeiro álbum solo do quadrinista Adrian Tomine publicado em português. O trabalho do autor só havia dado as caras por aqui antes em 11 páginas de Comic Book: O Novo Quadrinho Americano, publicado em 1999 pela editora Conrad. É muito pouco para um dos nomes mais interessantes da narrativa gráfica norte-americana e um dos principais representantes do universo dos quadrinhos autorais feitos nos Estados Unidos.
Ontem foi publicada no Segundo Caderno do jornal O Globo a minha matéria sobre o lançamento de Intrusos no Brasil. Eu entrevistei Tomine e no texto apresento algumas falas dele sobre o desenvolvimento desse projeto e também sobre fazer e pensar quadrinhos e viver nos EUA de Donald Trump. O texto está disponível no site do jornal. Reproduzo a seguir a íntegra da entrevista – traduzida pelo tradutor/ pesquisador/ editor/ crítico Érico Assis (valeu, Érico!). Saca só:
“Quem lê meus quadrinhos teve que, de certa forma, correr atrás. São leitores que já se interessam pelo que eu faço ou, no mínimo, se interessam por quadrinhos”
Você pode contar um pouco sobre as suas principais referências? Quais obras foram essenciais para a sua formação como autor? O que você tem lido ultimamente?
Minhas primeiras inspirações vieram dos gibis da Marvel dos anos 1970 e dos Peanuts de Charles Schulz. Foi o que fez eu querer ser cartunista. Depois que eu cresci, tive influência muito forte dos gibis “underground” ou “alternativos” como Love & Rockets, Eightball e Yummy Fur. Também fiz faculdade de Letras-Literatura, que foi meu contato com livros que eu não teria lido de outro modo e que despertou meu interesse por literatura moderna. Li faz pouco um livro chamado Homesick for Another World [Saudades de Outro Mundo], de Ottessa Moshfegh, que gostei muito.
Eu fico curioso em relação ao alcance do seu trabalho. Você é bastante conhecido para o público de quadrinhos, mas também tem estado cada vez mais presente em revistas como New Yorker e outras não relacionadas ao mundo das HQs. Esses universos são muito diferentes para você?
São. Na prática, penso como dois empregos à parte, mas com certeza um influencia o outro. Imagino que eu não ia me contentar só com um.
Eu também fico curioso em relação à recepção do público em relação às suas publicações independentes e curtas e a republicação posterior em encadernados. Você acha que a experiência é muito diferente para os leitores?
Não sei direito. Acho que essa pergunta é para os leitores!
Eu gosto muito das cartas das edições avulsas de Optic Nerve. Quando você começou acho que cartas eram a principal forma de contato dos seus leitores com você e imagino que isso tenha mudado e o retorno se tornado mais fácil e imediato. Você sente essa mudança no relacionamento e na interação com os seus leitores?
Não mudou muito para mim, pois não divulgo meu e-mail e não estou no Twitter nem no Facebook. A melhor maneira de entrar em contato comigo é enviar uma carta para minha caixa posta. Sinceramente não sei como outros artistas conseguem ter o envolvimento direto com os leitores e ainda ter tempo de produzir!
Você relatou recentemente uma comoção negativa por parte dos leitores da New Yorker por causa de uma capa mostrando sua experiência em um acampamento com a sua família. É muito diferente o retorno que você tem de uma capa como essa do que a resposta que costuma ter com os seus quadrinhos?
Olha, quem lê meus quadrinhos teve que, de certa forma, correr atrás. São leitores que já se interessam pelo que eu faço ou, no mínimo, se interessam por quadrinhos. Mas a capa da New Yorker fica diante de um público muito maior, por isso às vezes a reação é outra. Às vezes vejo comentários que sugerem que a pessoa não tem familiaridade alguma nem com a ideia do cartunismo ou de ilustração, aí levam a imagem muito para o literal!
“A arte que é sincera, principalmente a que enfoca a interação humana, pode ter algo de universal”
Você começou a fazer quadrinhos ainda adolescente. Hoje você tem 44 anos e filhos. Imagino que sua leitura do mundo tenha mudado bastante durante esse período. O seu público também mudou? Quem você vê lendo os seus quadrinhos atualmente?
Quando faço sessões de autógrafos, fico muito contente quando vejo gente na plateia que amadureceu comigo e com meu trabalho, assim como gente que nem era nascida quando eu comecei a publicar. O público está mais diversificado, em todos os sentidos, e isso é gratificante.
Aliás, ter filhos e se tornar pai afetou de alguma forma o seu trabalho? O quanto essa experiência influencia nos temas e na produção da suas obras?
Ter virado pai é de longe a maior influência que houve no meu trabalho nos últimos dez anos. Mudou como (e quando) eu trabalho, mas também me mudou profundamente como pessoa, o que eu suponho que não tenho como deixar de transpassar no trabalho.
Há uma mistura de melancolia e tristeza que percorre o seu trabalho e de outros quadrinistas norte-americanos da sua geração. Você vê esse padrão? Você consegue elaborar alguma justificativa para o predomínio desses temas?
Sim, acho que você encontrou bem o ponto, mas não sei explicar.
“Eu me atraio por histórias que expressem uma experiência ou ponto de vista que seja singular e que se, por acaso, for bem desenhada ou tiver um design legal, melhor ainda”
O mundo tem ficado cada vez mais conservador, preconceituoso e xenófobo. Isso afeta o seu trabalho? Você se sente estimulado de alguma forma a tratar desses temas nos seus trabalhos?
Bom, isso que você falou afeta as pessoas de várias maneiras, e é importante manter as coisas em perspectiva. Tive dificuldade em botar o trabalho em dia nos últimos anos porque o noticiário anda muito penoso, deprimente, vergonhoso e não para nunca. Mas estou ciente de que há outros artistas nesse mundo que são afetados de forma direta e profunda pelas mesmas notícias que me afetam, mas de maneiras que nem tenho como imaginar. Ser afetado só no emocional é um grande privilégio.
O que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu quadrinho será lido e interpretado em uma realidade tão diferente daquela em que você vive?
Sim, sempre fico curioso. Meus quadrinhos foram traduzidos para vários idiomas, publicados em lugares distantes, e eu nunca tenho noção de como são recebidos. Mas, ao mesmo tempo, é uma lisonja. Não é tão incomum eu pensar no meu trabalho traduzido, pois sempre me atraí pela arte, pelo cinema, pela literatura, pelos quadrinhos etc. traduzidos de outras línguas. Já descobri que a arte que é sincera, principalmente a que enfoca a interação humana, pode ter algo de universal.
O que mais te interessa em quadrinhos hoje?
Meu interesse primário nos quadrinhos, principalmente como leitor, continua o mesmo de vinte anos atrás. Eu me atraio por histórias que expressem uma experiência ou ponto de vista que seja singular e que se, por acaso, for bem desenhada ou tiver um design legal, melhor ainda.
“Já escrevi histórias de várias maneiras, mas o ingrediente em comum é o tempo. Gosto de pensar numa história durante bastante tempo, às vezes durante anos”
Você pode contar um pouco sobre o desenvolvimento de seus personagens? Você tem algum hábito particular de observar pessoas na sua rotina diária?
Acho que você trata de um ponto crucial: observação. Eu acredito que os tipos de histórias que eu crio são o resultado direto de eu observar, escutar e matutar… ou seja, por eu ser um introvertido que mais absorve do que interage com o mundo. Acho que também importa sempre se perguntar: “É assim que uma pessoa de verdade fala e se comporta? Ou eu estou me baseado no que eu vi na TV ou no cinema?” Às vezes essa resposta é complicada (principalmente porque muita gente de verdade fala de um jeito que tem muita influência da TV e do cinema), mas descobri que é um caminho importante para se chegar na escrita que é crível e que se identifica como humana.
As suas histórias costumam ter algum ponto de partida em comum? Você já sabe como cada quadrinho vai terminar quando começa a criá-lo?
Já escrevi histórias de várias maneiras, mas o ingrediente em comum é o tempo. Gosto de pensar numa história durante bastante tempo, às vezes durante anos. Posso não estar trabalhando nela direto, mas ela está lá num cantinho da cabeça, se remexendo, perdendo as arestas, evoluindo. Essa é uma grande sacada: deixar o subconsciente dar jeito na história que ela vai melhorar, como se acontecesse uma coisa mágica.