Papo com Alcimar Frazão: “A nossa contranarrativa é determinante e precisamos nos engajar”

Escrevi pra revista Rolling Stone sobre o trabalho do quadrinista Alcimar Frazão no álbum O Diabo & Eu. Fiz uma longa entrevista com o autor antes de produzir meu texto. O foco do papo estava, principalmente, na origem da HQ, nas inspirações do gibi e em algumas leituras possíveis para a obra. No entanto, a conversa foi bem além. Frazão me falou sobre seu esforço em transformar em narrativa gráfica e sequencial diferentes elementos da linguagem musical e também abordou o diálogo entre a realidade do protagonista do quadrinho e o atual contexto político brasileiro. Em um dos momentos mais tristes da democracia brasileira, é encorajador ler/ouvir as palavras de esperança de Frazão. Reproduzo a seguir o texto publicado na revista e a íntegra da entrevista com o quadrinista. Ó:

Pacto sinistro

As 64 páginas em preto e branco de O Diabo & Eu (editora Mino) adaptam para os quadrinhos os 27 anos de vida do músico Robert Johnson (1911-1938). Diz a lenda que o artista teria dado a alma ao demônio em troca de seus dotes musicais, em pacto feito em uma encruzilhada no interior do Mississippi. A obra do quadrinista Alcimar Frazão, lançada em tiragem limitada em 2013, ganha edição com páginas extras. Nelas, nomes fortes dos quadrinhos nacionais propõem mais de uma interpretação à suposta relação entre o tinhoso e o maior bluesman de todos os tempos.

Sem qualquer fala ou onomatopeia, O Diabo & Eu conta com a força dos traços e dos contrastes para contar a versão de Frazão para diversos momentos da vida de Johnson. O objetivo, explica o autor, foi ressaltar os aspectos dramáticos da vida de seu personagem.

“Era importante para mim que o drama estivesse colocado a partir das imagens, de alguma forma fosse apenas o eco do que é narrado nas músicas dele”. A HQ aborda a morte do pai de Johnson, os abusos de seu padrasto e passagens de sua carreira como artista itinerante.

A obra também serviu como espaço de experimentação para o autor. Músico amador, Frazão diz ter investido em um elemento usualmente pouco explorado da linguagem dos quadrinhos. “O tempo é o princípio menos controlável das HQs, mesmo sendo fundamental. Fiquei pensando como o tempo de uma música poderia me influenciar. Utilizei a relação de proporção entre os quadros, as viradas e a composição das páginas e o tamanho de uma cena para tentar influenciar esse tempo de leitura”.

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Por que contar a história do Robert Johnson?

Sempre desenho ouvindo música, não é uma regra, mas é natural. Nunca fui músico profissional, mas é a arte que mais dialoga comigo. Uma música que eu gosto consegue me colocar pra cima muito rapidamente. Quando tá tocando uma música que eu não gosto, posso fico numa situação muito horrível (risos). Me toca. No processo de criação isso está muito presente. De alguma forma, fazer essa história do Robert Johnson parte, em um primeiro momento, de pagar um tributo pelas coisas que ele me deu. A outra é que acho uma história bonita de ser contada do ponto de vista do drama existencial, de olhar para um cara que virou um mito, dentro da cultura pop de uma forma geral, não só da música, mas talvez não pelas razões concretas do que está no trabalho dele.

Historicamente, tendemos a não entender o que a história do pacto com o diabo representa do ponto de vista de uma estrutura social bastante opressora e do Blues ser considerado uma “música do diabo”. A coisa do pacto, que surgiu com um blueseiro, amigo do Robert Johnson nos primeiros ano de carreira dos dois, dialoga com uma estrutura de classe e com uma sociedade extremamente preconceituosa. Eu queria resgatar o mito do Robert Johnson pro contexto da luta de classes, de uma disputa política onde existia a dominação dos brancos em relação à maioria negra, com uma estrutura machista e com problemas sociais estabelecidos em um país que havia abolido a escravidão sem muita convicção do que estava fazendo, que até a década de 50 ainda tinham separações raciais dentro de um ônibus.

Do Brasil, olhando os direitos que os negros conquistaram nos Estados Unidos, a gente tende a não entender o que isso representa. Primeiro, por não termos esses avanços e, segundo, por não termos uma estrutura de segregação tão explícita. A nossa segregação existe, mas não nunca foi uma política de estado assumida, como foi nos Estados Unidos. Então eu tinha o desejo de trazer esse universo pra discussão, contar uma história dentro desse cenário. Não sei se consigo, mas a minha intenção inicial era essa. Até por isso, a história não tem texto: era importante para mim que o drama estivesse colocado a partir das imagens, de alguma forma fosse eco do que está na música.

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Mas acho que ainda pode existir uma certa estranheza para algumas pessoas você ter optado por um quadrinho “mudo”, sem texto e onomatopéias, para contar a história de um músico.

A música me influencia de diversas formas. Pode ser como o sussurro de uma ideia que não consigo elaborar. De repente eu tô ouvindo um som e concluo que algo tem que acontecer desse ou daquele jeito. Na produção do Diabo & Eu eu tinha uma lista de 13 músicas do Robert Johnson, só escutava isso e blues de gente da geração dele, coisas das década de 20 até, no máximo, 40. Mas sempre começava ouvindo essas 13 músicas, que são citadas no quadrinho de alguma forma. Pra mim, era importante passar essas sensações pra história e por isso não tinha texto. Queria transmitir o eco do drama que está na música, que a história estivesse impregnada disso, mas sem citação. Acho meio bobo quando a letra da música vem citada no quadrinho como se fosse a fala. A música está lá, citada de outras formas, colocar na boca do personagem tende a ficar bobo.

Mas tem outra coisa. O que mais me alimenta na relação entre música e quadrinho é a relação do tempo. Essa relação é um dos fundamentos da linguagem dos quadrinhos, mas talvez o menos controlável de todos. Isso é fundamental na linguagem das HQs: o autor esculpir o tempo, lapidar quadro a quadro a passagem de tempo pra narrativa ir acontecendo. A história acontece em um determinado tempo e não me refiro ao tempo narrativo, é o tempo do cara sentado lendo. Então qual é a minha onda? Pensar em como faço para o cara, sentado e lendo, gastar o mesmo tempo que eu acredito que ele deveria ter passado lendo. Qual a distância entre o tempo que a pessoa gasta efetivamente lendo e o tempo que eu quero que ele tenha gasto lendo? Quando você vai escutar uma música, se ela tem uns seis minutos, você passa os seis minutos ouvindo caso queira escutar na íntegra. Ela vai ter uma ponte, um refrão e um solo – unidades de tempo que pro sentido geral da música fazem diferença. Se o refrão ou o solo forem mais longos ou menores, eles farão diferença. Tudo é pensado pra essa alquimia do tempo. No cinema isso acontece também, o cara te obriga a ver um plano de dois minutos e esses dois minutos que você passou assistindo são determinantes pro resultado final do filme. No quadrinho isso não acontece, é muito difícil você controlar o tempo de leitura. Uma página que eu espero que uma pessoa passe cinco minutos lendo, ela pode só olhar, achar bonito e passar. Fiquei pensando como o tempo de uma música poderia me influenciar. No Diabo & Eu, não sei se isso acontece efetivamente, mas a relação de proporção entre os quadros, as viradas de páginas e o tamanho de uma cena, são estratégias que utilizei pra influenciarem esse tempo de leitura. A composição de cada uma das páginas foi pensada em função de um possível tempo de leitura. Ao mesmo tempo, a arte também diz respeito a não conseguir resolver problemas e esse é um problema que a linguagem propõe. Isso me estimula a pensar.

Tem outra coisa relacionada a música. Ela me dá a chave de quando e como cada coisa vai acontecer. Por exemplo, agora eu estou fazendo uma história, que sai no final do ano, e que demorei muito pra começar porque foi difícil chegar em um universo visual. Uma história que se passa no Rio e estou envolvido com ela desde o começo, mas só consegui a chegar num lugar imagético e ver o ambiente que se passava e ver como ela deveria ser construída, por acaso, ouvindo uma música. Aí contruí uma playlist pra história. Isso não vai aparecer no quadrinho, as pessoas não vão saber que música eu estava ouvindo e talvez eu nem queira que elas saibam. Mas se trata de entender o ritmo e as pausas da história, a construção do tempo.

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O Diabo tem uma linguagem muito própria, dividido em blocos e quadros muito rígidos. Houve algum momento em que você compreendeu que essa seria a formatação do livro? Tenho essa curiosidade até porque quando penso em blues associo a imagens muito menos rígidas. Vejo no quadrinho algumas das nuances do estilo, mas é um quadrinho duro e pesado.

Acho que tem duas coisas aí. A primeira é que o quadrinho foi se construindo desse jeito. A outra tem a ver com a forma como eu faço HQ. O meu desenho é muito de massa e isso determina algumas composições. Eu demorei pra entender isso no meu próprio trabalho. Não gosto de variações de câmera e altura. Se você reparar, no quadrinho a câmera tá sempre em um tripé no nível de um observador pedestre. Tem uma cena ou outra que a câmera desce ou sobe um pouco, mas ela tá sempre em lugar possível de estar alguém ali vendo a cena daquela posição. Demorei pra entender isso: o meu desenho é meio monolítico, são linhas paralelas, sem muitas diagonais. Isso é muito particular

O Lourenço Mutarelli diz um negócio muito bonito que é mais ou menos assim: “as coisas que as pessoas falam que tá errado no seu desenho você precisa pegar e avançar, porque isso é você. Use o que o público está vaiando, porque isso é você”. Foi assim que entendi o que é o meu trabalho, essa dureza. Não gosto, visualmente, no meu trampo, de ficar fazendo grandes saltos na página ou meter um quadro explodido. Tá tudo dentro da calha, que é um elemento muito importante, tem que ter uma razão muito forte para não usá-la. Enfim, acho que essa dureza tem a ver como o meu desenho foi se construindo e eu fui me descobrindo.

Na real, o Diabo foi o que mais me deu pistas do que é o meu trabalho e eu faço quadrinhos há 11 anos. Aliás, não acho que o meu trabalho está fechado. O Diabo está tendo uma vida bastante longa, foi publicado na Europa, vai sair agora na Galícia. E aqui no Brasil ele circulou pouco na real. A primeira edição foi lançada em 2013, no FIQ, com uma tiragem de 500 exemplares que acabou em três meses. Muita gente não sabe do que se trata e nunca nem viu. Por isso é boa a edição da Mino, pra circular mais. De qualquer forma, ele foi me ensinando para o que é meu desenho, que tem a ver com aquilo ali e tal. Acho que é por aí, na real. Eu gosto muito por exemplo da margem em preto, ela ajuda a segurar o tempo. Ao contrário do que se pensa, o branco salta muito mais do que o preto em termos compositivos, ele interfere mais no tempo, por nós estarmos mais acostumados a ler em branco – ele acaba passando desapercebido, aío tempo entre cada quadro não é percebido. Quando a margem está em preto, o leitor para a cada quadro, no branco você passa mais rápido. Não que isso seja uma regra, funciona assim pra mim (risos).

Na história em que estou trabalhando agora, a margem é toda em branco e demorei pra entender que é isso mesmo e é pra continuar assim. Talvez a forma mais prática de responder isso que você me perguntou é: sim, é blocadona, é daquele jeito, porque o meu desenho é assim, meio monolítico. Ele tem essa densidade que é dele e enquanto estiver sendo legal comigo eu vou respeitar isso.

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Ao mesmo tempo que há toda essa rigidez estética, a história tem muita nuance, né? A questão relacionada a quem é o diabo e qual a relação dele com o músico, tem muitas deixas simbólicas pro leitor interpretar da forma que quiser.

Sim. Acho que o fato de não ter texto ajuda a coisa também, fica meio aberto. Na história eu me preocupei menos em conduzir um linha do que iria acontecer e isso me parece estar claro. Mas também fui colocando dicas pra mostrar a relação entre ele e outros personagens. Pra mostrar, por exemplo, quem é o padastro e expor a relação entre as pessoas,…

Tem uns detalhes de cenário também. Gosto bastante da última história, que eu desenhei primeiro e mostra a morte do Robert Johnson. Tem essa coisa de que a morte dele é bem obscura e possui várias versões, a mais aceita é que ele foi envenenado no bar em que estava tocando e flertando com a mulher do dono do estabelecimento. Dizem que esse cara botou veneno no whisky, ele bebeu, ficou doente e morreu uma semana depois. Tem histórias de que ele uivou igual um cachorro porque estava sentindo muita dor. Daí tem a lenda do Diabo e fiz essa menina com rosto de cachorro, que acho um elemento muito curioso visualmente. O tempo todo na história eu mostro o copo e a garrafa de whisky. Na primeira história a bebida é um elemento bastante presente também, por conta do padastro dele – que eu digo que é o padastro, mas cada um entende da forma que quer. Mas acho que passa por aí, dar pistas. Na última história isso fica mais claro, eu mostro a mesma coisa duas vezes, mas com duas interpretações distintas: em uma ele está engasgado com moedas e na outra, idêntica, não está engasgando com nada. Ele tá alucinando ou não? Os tempos das histórias são muito diferentes também. Uma é mais quebrada e fragmentada.

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Você lembra da primeira vez que ouviu Robert Johnson e da primeira vez que ouviu falar dessa lenda sobre o diabo?

Cara, a primeira vez que ouvi Robert Johnson foi uma versão de uma das minhas músicas preferidas dele, Traveling Riverside Blues. Que na verdade é uma versão feita pelo Led Zeppelin da canção original, que ainda cita várias outras músicas dele. Foi lá pra 95 ou 96, eu achava aquela música animal e não sabia do que se tratava. O Led Zeppelin sempre foi minha banda preferida e eles citam o Robert Johnson em várias músicas. Também assisti ao filme Encruzilhadas com o Ralph Macchio, bem divertido, dos anos 80, que termina com um duelo de guitarra entre o Steve Vai e o Macchio. Quem aparece no filme é o Willie Brown, que é um parceiro histórico do Robert Johnson e o sujeito que ele cita na Crossroad Blues, dizendo que caso alguma coisa desse errada, era pra ir atrás dele. Ali eu comecei a correr atrás. Na segunda temporada de Supernatural tem um episódio que chama Crossroads, que começa com o Robert Johnson tocando em um bar e o diabo vem buscar a alma dele. Naquele momento eu notei que aquilo ali estava aparecendo muitas vezes na minha vida, em momentos diferentes (risos). Daí fui atrás, era 2007 ou 2008, por aí. Achei tudo animal, comecei a ouvir e fui atrás da geração dele. Descobri vários blueseiros do Delta do Mississipi da mesma época que ele, coisa muito fina.

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E você gosta de tocar, né?

Eu toquei em algumas bandas, mas sempre de Heavy Metal. Tocava contrabaixo, parei e comecei a cantar. Daí fiquei de 2002 até 2013 tocando em bandas diferentes, com maior ou menor intervalo entre elas, mas tocando com alguma frequência. Aí parei em 2013. Quando escrevi o quadrinho eu estava tirando algumas músicas do Robert Johnson com um amigo que é violonista, mas porque era legal e a gente queria gravar, mas acabou não rolando.

Fiquei pensando na relação entre quadrinhos e música. Música é abstração da imagem enquanto o quadrinho é a abstração, dentre outras coisas, do som. Que tipo de diálogo você vê entre essas duas linguagens?

Cara, acho que o principal diálogo que vejo é relacionado à construção do tempo que eu falei antes. Mas não acho que sejam linguagens próximas estruturalmente. Elas dialogam em relação ao tempo, mas não avançaria muito além disso. Acho legal que a música seja a música e o quadrinho o quadrinho. Acho legal a possibilidade de um quadrinho despertar coisas em um músico que nós dos quadrinhos não vemos. Uma vez eu estava falando com um amigo que é músico profissional sobre essa questão do tempo, de descobrirmos o tempo. E o cara disse que isso não tem nada a ver com música, mas pra mim tem tudo a ver (risos), pra mim isso é música. Mas as pessoas veem um pouco do que querem ver.

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Você falou sobre o aspecto político do quadrinho, disse que ele é ambientado “em um país que na época não tinha muitas convicções do que estava acontecendo”. Você vê um diálogo com a nossa realidade? Um cenário em que nós brasileiros não temos muitas convicções em relação à nossa realidade e com muitas dúvidas sobre tudo que está acontecendo.

Eu fiz esse livro em 2013 e era um outro momento, não tinha uma relação direta com o que está acontecendo agora. Mas o fato dele estar saindo agora como se fosse a primeira vez, a tiragem original foi de 500 exemplares, fez com que ele circulasse mais. Agora, acho que tem coisas ali que dizem respeito a esse tipo de angústia política que estamos vivendo e vamos voltar a viver em vários momentos. O Blues foi concebido como uma forma de resistência, ele vem das canções que os escravos cantavam nos campos de algodão, pra deixar a rotina de trabalho menos extenuante. Eles colocavam nessa canções um pouco do que estavam sentindo, a relação e a opressão com o trabalho. Depois, o que era cantado só por vozes passou a ser cantado por instrumentos. Os blues da primeira geração falam do cara que perdeu a mulher e depois o filho, o pai morreu, o trabalho é demais. Vai falar dessa vida pequena, à margem e difícil. Nesse sentido ele fala de um lugar que a gente precisa ter atenção neste momento porque estamos prestes a entrar num dos períodos mais sombrios pelo qual o país já passou.

Pode parece um pouco catastrófico da minha parte, mas com todas as críticas possíveis que podem ser feitas ao governo Dilma e aos mandatos do Lula, do ponto de vista do humanismo, de como isso poderia ter avançado mais e não avançou, acho que tínhamos um cenário que favorecia um debate mais aberto. Agora estamos entrando num lugar em que as opiniões estão sendo disputadas no tapa e quem perde nessa disputa é a democracia. Quem perde é quem não tem dinheiro, quem está vivendo essa mesma vida à margem, que é pequena mesmo, de migalhas. Aliás, a vida de todo mundo, no dia a dia, é pequena e corriqueira. No caso, estou falando daquela vida pequena das pessoas que pensam como vão fechar o dia. Acho que vamos entrar em um momento em que essas pessoas voltarão ser ignoradas. Já vimos sinais disso, os caras estão falando de cortes no sistema de saúde, falaram em mexer na aposentadoria, que o Bolsa Família talvez passe a atender menos gente…cara, é como se estivessem falando que precisam tirar de um sujeito os 70 conto que não deixam o cara passar fome. Saca? Quando você entra nesse tipo de discussão, o que se avizinha são trevas.

Nesse sentido, eu gosto de acreditar, penso o meu trabalho todo a partir disso, só topo fazer roteiros que tenham a ver com isso, falar dessa vida miúda. O roteiro que estou fazendo agora, com roteiro do Lobo, é a história de um policial carioca que é casado com uma travesti. Aí é um negócio sobre essa estrutura de violência e machismo em que vivemos. Não é um texto panfletário, não podemos ser inocentes de fazer arte panfletária porque esse tipo de trabalho não dialoga nem com quem faz essa arte. Não dialoga nem com quem é favorável àquela discussão. Acho que a gente tem que debater de forma generosa, colocar o que pensa e acredita. Eu e o Dalton (Cara) temos uma brincadeira que a gente repete bastante: não fazemos quadrinhos para agradar, fazemos para agredir. No fim das contas, não é o quadrinho que paga as contas, o aluguel. Faço porque é preciso, é necessário, eu não conseguiria não fazer. Esse quadrinho não deve agradar ninguém, deve agredir. Se ele agredir as pessoas certas vai ser legal.

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Você acha possível com esse “quadrinho de agressão” contribuir para melhorar esse cenário que estamos vivendo?

Eu tô vendo uma movimentação de uma galera de quadrinho contra o golpe. Existe uma disputa colocada que não é em relação a quem vai assumir o governo. É uma disputa que trata do tipo de sociedade que queremos construir no Brasil e isso está na berlinda. Não digo que o projeto político do PT apontava para um horizonte luminoso, não. Nossa realidade já estava desgastada, mas eu nunca poderia esperar o que virou agora. Estamos em frente a um retrocesso político em campos importantes, como acabar com o sistema público de saúde, com a educação e o estado de direito, com o cara podendo ir preso sem ser julgado. O ministro da justiça do governo golpista é um criminoso, um cara que deveria estar preso. O Serra, ministro das relações exteriores, já foi denunciado no Wikileaks como um cara que estava negociando coisas do interesse nacional. O ministro das relações exteriores já cometeu crime contra a soberania nacional. Caso a gente não se coloque em combate, vamos tomar porrada. Não é um golpe, são vários.

O momento favorável dos nossos quadrinhos tem a ver com o momento favorável do país. Da produção cultural do país. São uns 15 anos de centros de cultura abrindo em tudo e qualquer lugar e as pessoas lendo mais. O que precisamos, como artistas, é termos essa clareza do processo mais amplo. Inicialmente acabar com o Ministério da Cultura foi um negócio muito sério, mais do que isso: acabar com as políticas que o Ministério da Cultura conduzia do ponto de vista de uma formação cultural mais ampla. Talvez nas grandes capitais, São Paulo, BH e Rio de Janeiro, a gente não perceba de forma tão direta, porque há alguns centros de cultura já estabelecidos, mas saiu 13 Km do centro de São Paulo e você percebe a diferença. Dos grupos independentes que surgiram na periferia de São Paulo, sejam grupos de rap, dança ou poesia. Todas essas coisas estão acontecendo porque existe uma estrutura de cultura – que do ponto de vista financeiro era ridícula, a verba do Ministério da Cultura era mínima dentro da União, mas era importante.

Se a gente não se engajar nessa luta agora e perceber que é uma puxada de tapete, esses últimos 16 anos de grande produção do quadrinho brasileiro, que acho que vem de 1999 em diante, esse momento áureo, corremos o risco de voltar pra um tipo de produção que era do início da década de 90. Precisamos entender que estamos em um momento de virada e que sustentar o avanço político e o nosso espaço para falar de quadrinho tem a ver com entender direito o que está acontecendo politicamente.

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Tá claro na sua resposta que você acredita que estamos entrando em um momento sombrio. Mas você propõe uma reação. Você é otimista em relação a uma mudança? Pra você, essa agitação por parte de artistas é possível resultar em alguma transformação real?

Eu acho que sim. Acredito. História é narrativa. A gente recebeu uma lição sobre isso nos últimos anos: a gente viu uma narrativa bastante coerente sendo construída pela imprensa de que o país estava em uma crise absurda e estava em uma calamidade e etc e etc, apesar dos elementos não indicarem nada disso. Ainda assim, vimos a construção de uma narrativa extremamente coerente. A história é narrativa. Se não assumirmos os nossos papéis como contadores de história no sentido de construir uma contranarrativa ao que está sendo colocado, a Globo vai continuar dizendo que está tudo bem. Não é verdade. Internacionalmente, esse governo vem sendo chamado de golpista. Tá todo mundo dizendo: o que aconteceu coloca em risco a democracia no país.

Passar por um processo de impeachment e colocar um governo interino que propõe mudanças não é novidade, já vivemos isso. Só que a forma como vivemos isso agora, tirar uma presidente que foi eleita sem a imputação de crime? Por mais que eu discorde da forma como ela conduzia o governo, não teve crime. Ela está sendo tirada porque não conseguiu maioria no Congresso e nem no Senado e porque os caras que estão no Congresso e no Senado querem assumir o poder de outra forma. É muito sintomático que o governo golpista seja configurado fundamentalmente por pessoas que perderam as últimas eleições. E não só por pessoas que perderam as eleições, mas que professam um tipo de convicção política que é completamente distinta daquela que venceu nas eleições. Esse que é o negócio. Quando colocam o Gilberto Kassab no governo, a mensagem é muito clara. Ele tem um papel a cumprir ali e cada ministério foi escolhido a dedo. Colocar um cara que é um ruralista, que é completamente contrário aos direitos humanos, como ministro de desenvolvimento, isso é voltar pra 1500. Enfim, o recado é esse aí, quem mandou quer continuar mandando.

É nosso papel construir a contranarrativa. Você entende? Como o Alan Moore fez com o V de Vingança. O Alan Moore escreveu o V quando a Margaret Thatcher venceu as eleições e ele olhou praquele cenário e imaginou que a coisa mais provável é que a Inglaterra se tornasse um estado fascista em um futuro muito próximo. Aí ele foi lá e deu a resposta dele. A gente tem que ir pro combate. Eu gosto de acreditar que a gente pode fazer essa parte. De irmos lá, nos colocarmos e nos posicionarmos. Fazer história pra ir pra cima. E não só isso, né? O ofício do quadrinho é muito solitário, a gente precisa entender que a criação pode ser solitária, e aí tudo certo, mas que o resultado material da nossa criação é coletivo e que se a gente não se engajar coletivamente, vamos ficar fazendo quadrinhos alienígenas, nosso quadrinho não vai falar com ninguém, a gente vai ficar contando as mesmas historinhas bobas e falando de sentimentos vazios. Histórias que não dizem nada, de quem repete a mesma forma o tempo inteiro. Se você não está na rua, não lê, não conhece gente, não dialoga com a sua realidade, o seu quadrinho é menor. Menor no sentido de não ter causa. Ele não vai sair e não sou eu que estou dizendo, é o seu próprio trabalho. Aliás, a minha opinião em relação ao seu trabalho pouco importa (risos) Eu gosto dela, mas não importa nada. É importante a gente ter clareza que a nossa contranarrativa é determinante e precisamos nos engajar.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

2 comentários

  1. Ótima entrevista! Bom demais!

    Fiquei com mais vontade de conferir O Diabo & Eu. 🙂

    Além disso, inspiradoras as palavras do Alcimar!

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