Há algo de mágico em Pigmento, álbum da quadrinista Aline Zouvi publicado pela editora Companhia das Letras. A obra é protagonizada por Clarice, uma tatuadora que não consegue tatuar a própria pele. Quer dizer, ela até consegue se tatuar, mas as tatuagens desaparecem. É uma espécie de condição fantástica que a impede de expressar sua arte e quem ela é para o mundo.
Os dramas da personagem se desdobram com a chegada em seu estúdio de uma jovem restauradora de livros chamada Lívia, levando a avó para fazer sua primeira tatuagem. O romance entre as duas aflora a partir do interesse da personagem principal por um livro antigo sobre símbolos nórdicos.
“Eu me interesso por esse tipo de narrativa que só foge um milímetro da realidade, sabe?”, me contou Zouvi quando a perguntei sobre o dilema de sua protagonista. “Como se o problema dela tivesse algo de simbólico mesmo, de quase mágico e que não pudesse ser resolvido de forma prática. Me interessa essa mistura de terrenos”.
Conheci Zouvi na Comic Con Experience de 2016. Eu estava conversando com expositores quando a vi ao meu lado distribuindo seus zines para alguns autores e editores. Nos meses seguintes, ela se tornou presença constante em eventos de quadrinhos que eu também frequentava. No fim de 2017, na Comic Con seguinte, ela lançou Síncope.
As 64 páginas de Síncope, sobre uma jovem musicista ansiosa e os dramas da vida em uma grande metrópole, serviram de amostra para o que Zouvi tem de melhor a oferecer. As tramas humanas às vezes beirando o fantástico, um preto e branco de alto contraste digno dos melhores autores underground e uma clareza narrativa exemplar.
Ela investiu nesse contraste entre o mundano e o fantástico em Óleo Sobre Tela, 18ª edição da coleção Ugritos, mostrando uma visita a um museu que ganha contornos surreais. Em Pão Francês ela fez um caderno de viagens sobre idas à França. Tradução Simultânea retratou o empenho de uma tradutora em se fazer compreender por uma palestrante. Aí veio a excelente Não Nasci Sabendo, uma pensata em quadrinhos sobre a relação da autora com sua própria sexualidade.
Os trabalhos de Zouvi estão sempre girando em torno de autodescoberta e autocompreensão. Seus personagens estão habitualmente em busca de sua essência enquanto encaram os contrastes da realidade ao seu redor.
Volto à fala da autora sobre a protagonista de Pigmento: “Tatuar é o mundo dela, a função dela, o trabalho, o jeito dela de estar no mundo. O fato dela própria não conseguir vivenciar isso, acho que tem muito a ver com… Como eu posso dizer? Com uma certa dificuldade de ser você mesmo, de se inserir no seu próprio mundo”.
Pigmento é o maior e mais ousado álbum de Zouvi. Talvez ousado não seja o melhor dos adjetivos, porque ela não é particularmente inventiva em relação ao uso da linguagem dos quadrinhos. Ela ousa na condução de uma trama mínima por 256 páginas de HQ. Trata-se de uma das minhas leituras preferidas de 2024 até o momento.
Compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com Zouvi, realizada em abril. Conversamos sobre as memórias mais antigas dela em relação a HQs, seus cinco anos de investimento em Pigmento, a trama pessoal do livro, sua primeira experiência trabalhando com uma editora do porte da Companhia das Letras e muito mais. Papo muito massa, saca só:
“A prioridade é o livro”
Aline, qual é a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
A minha memória mais antiga de quadrinhos fica um pouco dividida entre alguns episódios isolados. Porque a minha avó tinha guardado alguns quadrinhos Disney, da época que ela era criança. Então, quando eu era criança tive acesso a esses livros, mas eu me lembro bem pouco. E tem também a lembrança que todo mundo tem, né? Dos quadrinhos da Turma da Mônica. Por mais que não seja a primeira memória, acho que ficou muito marcado para mim quando a minha mãe comprou [uma coletânea da] Aline, do Adão Iturrusgarai. Eu tinha 10 anos na época, então eu já tinha lido Turma da Mônica.
Essa história da Aline eu conto, já contei em outras entrevistas, porque é uma história engraçada e que foi importante para mim. A minha mãe comprou só porque tinha o meu nome, era a Aline e seus dois namorados. E ela ignorou que na capa, obviamente, tinha um [alerta de] conteúdo que não era para crianças e tal. Aí ela escondeu de mim, mas acabei lendo. Foi um evento importante para eu conhecer quadrinhos que não fossem da Turma da Mônica. [Para eu descobrir] Que existiam quadrinhos do Adão, da Laerte, do Angeli, do Glauco… Todos saíam em versão de bolso pela L&PM. Então para mim foi marcante essa fase também.
Você lembra alguma obra, autor ou leitura em particular que despertou seu interesse em quadrinhos?
Esse episódio em que a minha mãe comprou a Aline do Adão, quando eu era criança, acabou despertando meu interesse por quadrinhos. E também, quando era criança, tinha na minha casa… Ou na casa da minha avó ou em uma casa de veraneio que eu ia com a minha família, tinham umas revistas MAD esquecidas, bem antigas, já meio emboloradas. Tinha uns quadrinhos que eu amava ler, com autores que também despertaram um pouco meu interesse. Era o Sergio Aragonés e o Al Jaffee, mas quase todos os quadrinistas que apareciam na MAD eu gostava muito. Por causa do traço um pouco mais alternativo e dessa linguagem do humor.
Lá pelos anos 2010, eu voltei a ler quadrinhos, quando estava rolando aquela onda de blogs. Cada artista tinha seu blog pessoal. Nessa época eu gostava de ver os blogs do Rafael Sica, do Allan Sieber, da Fabiane Langona… E foi um pouquinho nessa época também, lá para 2007 ou 2008, que quadrinhos autobiográficos me fizeram voltar a querer ler quadrinhos. Primeiro foi Persépolis [de Marjane Satrapi] e depois Fun Home [de Alison Bechdel].
E o que mais te interessa hoje em relação à linguagem das histórias em quadrinhos? Tem algum aspecto da linguagem dos quadrinhos que é particularmente atraente para você?
Para mim, a linguagem dos quadrinhos primeiro remete ao mundo do impresso. Um mundo analógico que é um universo muito precioso para mim – e que me dá um pouco de agonia, porque às vezes dá impressão que esse mundo está cada vez mais distante, mais no passado. Pode ser só uma impressão, mas enfim, é algo que eu não quero que se perca. Eu sei que existem quadrinhos só feitos para serem lidos digitalmente, só que para mim a prioridade é o livro. Então, em primeiro lugar, me interessa esse universo.
A mistura entre escrita e desenho também é algo muito caro para mim, porque acho interessante que ela possibilite praticar os dois, para quem gosta de escrever e desenhar e não gostaria de fazer as duas coisas separadamente. E também tem a questão da construção narrativa. Acho muito precioso quem consegue dominar como usar o espaço da página e combinar elementos em cada quadro e também na sequência dos quadros, sabendo exatamente o que essa combinação vai provocar no leitor. Para mim, o elemento mais precioso do quadrinho é essa habilidade de moldar a narrativa com essa composição visual. E também tem o lado social dos quadrinhos, né? Eu gosto dessa ambiguidade. Eles são muito mainstream, têm um lado muito massificado, mas têm um lado também muito alternativo, muito representativo para minorias. Essa questão de ter sido considerada uma leitura menor do que a literatura ao longo de várias décadas, de estar próxima de um lado “excluído”, é algo que já me interessou bastante também.
Quanto tempo você levou para finalizar Pigmento? Quanto tempo levou entre você começar a trabalhar nesse livro e receber uma edição impressa?
Eu assinei o contrato em junho de 2019 e vi o livro impresso pela primeira vez no dia 11 de março de 2024, então foram quase cinco anos. Um pouquinho mais se contar o que aconteceu antes de assinar o contrato, né? Antes de chegar na ideia do livro, conversei com o Emílio [Fraia, editor do selo Quadrinhos na Companhia]. Acho que durou mais ou menos um ano a nossa conversa, porque tentei apresentar ideias para ele, só que a gente levou um tempo até chegar naquela que realmente pudesse virar um livro. Se contar com isso, acho que dá quase uns seis anos de processo.
E quais foram seus sentimentos quando recebeu o livro?
Eu estava muito nervosa antes de abrir a caixa [com os livros], porque foram cinco anos imaginando como seria esse momento. Tipo, eu imaginei muitas coisas, porque… Talvez, se não tivesse acontecido a pandemia, esse processo teria sido menos longo. Só que não tanto também, porque eu levo um tempo para desenhar as páginas, para corrigir o roteiro, refazer o que for necessário corrigir, então ainda assim teria sido um processo longo. E eu sou uma pessoa muito ansiosa. Já fiz quadrinhos sobre ansiedade, né? É um tema bem presente na minha vida e quando a gente lida com ansiedade, lidar com processos a longo prazo é uma coisa muito delicada.
Durante todo esse tempo, eu imaginei como seria pegar o livro nas mãos, como seria o primeiro evento de lançamento… Entre várias outras coisas. Quando eu peguei o livro na mão, eu estava nervosa, mas ao mesmo tempo, claro, eu estava muito feliz, porque foi muita energia depositada nesse trabalho. Muita dedicação. Sei lá, muito amor mesmo. Tirando o lado piegas de falar isso, mas a gente fica tanto tempo num projeto é mais por isso também, né? E quando vi o projeto gráfico, na prática, a coisa feita, o verniz na capa, tudo lindo, a diagramação, tudo maravilhoso, fiquei muito feliz. Porque tem muito a ver com toda essa estrutura que uma editora grande pode te dar, né? Eu me senti muito feliz com o resultado. Achei o livro lindo. Fiquei muito grata com todos os profissionais envolvidos nesse processo e, nossa, fiquei bastante emocionada.
“Tem bastante coisa minha na história”
Eu tenho uma tendência a preferir HQs em preto e branco e curto muito o seu preto e branco. Me fala, por favor, sobre a sua relação com preto e branco? O que mais te atrai no uso do preto e branco?
O uso do preto e branco para mim remete muito ao universo do quadrinho underground e alternativo. Tanto por ele ser financeiramente mais viável – então muitos zines vão ser em preto e branco porque é mais barato de imprimir -, mas tem a ver também com a linguagem. Acho que permite que algumas composições sejam um pouco mais agressivas. Não sei se é “agressiva” a palavra, mas dependendo de como você usa as hachuras, os conjuntos de luz e sombra, acho que você consegue transmitir um desprendimento maior, uma ideia de subversão. Não necessariamente precisa ser algo punk, mas existe um pouquinho de irreverência no preto e branco. É até um pouco difícil explicar o que exatamente causa isso. Acho que é o conjunto, é o contexto. Muitos autores que me inspiraram usam essa linguagem, como a Satrapi, os próprios autores da MAD que eu tinha comentado, alguns autores franceses também. Mas acho que tem a ver com esses fatores: a linguagem que foge um pouco do mainstream e algo que nos força a não publicar colorido, que depende de quanto você pode gastar ou não na sua autopublicação.
Existe essa ideia também de que a cor é uma ferramenta narrativa e a ausência da cor te força a tomar outras decisões em relação à construção da sua história, ao efeito que você quer causar no leitor. Gosto do preto e branco também como esse desafio de você tentar reconfigurar a página sem a ferramenta da cor e como isso te força a pensar em soluções narrativas. Acho que isso me interessa bastante também. Então, mesmo para editoras grandes, é válido o uso do preto e branco, pensando nesse outro lado.
Você pode me falar, por favor, sobre o ponto de partida de Pigmento? Houve alguma vivência ou algum estímulo em particular que serviu de inspiração para essa HQ?
Acho que o ponto de partida para Pigmento foi o símbolo do vegvísir, aquele símbolo viking que tem um significado… Tô tentando lembrar pela definição da Wikipédia, algo como, “o portador desse símbolo poderá enfrentar grandes tempestades e mesmo sem saber direito o caminho ele estará protegido”. É algo mais ou menos assim, aí tem a história de que os vikings pintavam esse símbolo no meio da testa como sinal de proteção e tal. Visualmente eu achei ele bem bonito, ele lembra até uns pontos de Umbanda. Ponto riscado, né? E me deixou intrigada. Me interesso um pouco por essa cultura. Tento entender de onde vem esse interesse. Porque acho muito clichê, eu sou de um país que foi colonizado e me interesso por uma cultura europeia (risos). Eu tento ver isso criticamente, mas gosto de algumas coisas e gosto desse símbolo. E aí no começo eu tentei basear uma narrativa com esse fundo, o significado desse símbolo
Quais foram as suas técnicas de ilustração em Pigmento? Quais materiais de trabalho você usou nesse quadrinho novo?
Pigmento eu fiz 99% à mão, no papel mesmo, com canetas que a gente chama de nanquim descartável, canetas que você não repõe a tinta. Em algumas páginas usei pincel mesmo, com nanquim, e fui preenchendo as áreas de preto com nanquim também ou com aquelas canetas de ponta chanfrada, sabe? Com marcadores. Para alterações bem pequenas eu trabalhei no computador, no digital, e alguns ajustes eu fiz no tablet, com o Procreate.
Me fala, por favor, sobre a construção da HQ? O quanto você já tinha fechado da história quando começou a trabalhar nela? O quanto ela mudou desse conceito original para a versão final? Você chegou a finalizar um roteiro antes de começar a desenhar?
Eu tentei já saber começo, meio e fim [quando comecei]. Por mais que muita coisa fosse mudar depois, eu tenho dificuldade de começar a desenhar uma história sem saber o final e sem saber detalhes que possam ser importantes, até para o começo da história. Então eu finalizei um roteiro antes de começar a desenhar. Antes do roteiro, eu fiz a escaleta do roteiro. Que é uma versão resumida desse roteiro. Mesmo assim, muita coisa mudou, principalmente em relação ao ritmo da narrativa. Antes de Pigmento, a história mais longa que eu já tinha feito, acho que tinha 64 páginas, Síncope. De 64 para 256 páginas é muita coisa, né? É muita diferença.
Então eu precisava me guiar pelo roteiro, até para entender o que eu estava fazendo, como eu iria manter o ritmo da história. Foi bem desafiador fazer uma história mais longa e aprender sobre isso ao longo do processo. Eu tentei estudar o máximo que pude. Até antes de fazer Pigmento sempre tentei estudar quadrinho e roteiro, mas eu vejo que é na prática que a gente consolida alguns aprendizados mesmo.
Alguns detalhes mudaram, algumas características das personagens que iam aparecer eu tirei. Interações entre personagens secundários, eu tirei também. Porque acabou não sendo tão importante para narrativa. E o Emílio, o editor do quadrinho, me ajudou muito nessa parte do andamento da narrativa. Ele me sinalizou bastante onde eu precisava alentar um pouco mais, onde eu precisava acelerar, cortar excesso de texto ou desenvolver textos que talvez não estivessem muito claros para o leitor. Nesse processo de ajustes de narrativa, ele me ajudou bastante, com essa construção do ritmo.
Eu fico curioso, todos os seus quadrinhos são histórias muito intimistas, com ares sempre pessoais, mas você não costuma se colocar como personagem (ou talvez se coloque e nós leitores que não sabemos). O quanto tem de vivências suas em Pigmento?
É interessante essa ideia, se colocar ou não nos livros. Porque foi isso que eu estudei no mestrado. Parte disso, né? A questão da autobiografia. E para mim são territórios muito misturados, a ficção e a autobiografia. Eu acho muito difícil de marcar um limite entre os dois. Tem bastante coisa minha, com certeza, nessa história, a começar pelo interesse em tatuagem. Gosto bastante desse universo, não tenho tantas tatuagens assim, quero ter mais, mas desde que fiz a primeira é algo que está sempre no meu radar, sempre pensando em fazer outras. Em Pigmento também tem algumas questões de psicanálise, de saúde mental, que também são questões muito importantes para mim, além da inclusão de personagem LGBT. E o que eu me interessei também para essa história foi inserir uma personagem que estivesse na terceira idade, porque eu não não vejo muito isso em quadrinhos, pelo menos os que eu li até agora. E o que me inspirou muito foi o quadrinho A Propriedade, da Rutu Modan, que tem uma protagonista que é uma mulher idosa. E eu me interessei nessa representação, de uma avó de uma forma não idealizada, porque às vezes idosos talvez sejam mal representados, eu acho, em algumas algumas mídias. Isso para mim tem um lado pessoal também porque eu quis de alguma forma fazer uma homenagem para minha avó.
“Me interessa a mistura de terrenos”
Fiquei particularmente curioso sobre a personagem Teresa. Ela tem esse nome e você dedica o livro à sua avó, Therezinha. Você pode falar um pouco sobre a sua avó? O quanto ela inspirou essa personagem? O que ela representava para você?
Então, a personagem da Teresa foi um uma tentativa de homenagear minha avó, que já faleceu, mas uma homenagem bem livre. Tipo, essa personagem não tem a ver com a minha avó. A minha avó nunca faria uma tatuagem (risos), mas ela tinha, de alguma forma, um espírito mais livre, mais voltado para arte. Ela tocava piano, ela fazia muitas artes manuais, como tricô e crochê, um pouco de pintura. Ela gostava de pintar objetos de artesanato, como caixinhas e peças de decoração.
A gente teve uma relação bem próxima. Ela me incentivou muito, me incentivava muito a desenhar, a estudar, a ir atrás do que eu quisesse desenvolver profissionalmente. Eu fazia muitos programas culturais com ela, ela gostava de tudo que tinha a ver com esse mundo. Ir ao cinema, a gente ia muito ao teatro, fomos juntas também a algumas exposições. Ela morava no Rio de Janeiro e eu morava em Campinas, então a gente não estava o tempo todo próximas, mas quando estávamos juntas a gente tentava aproveitar do jeito que era possível esses rolês culturais. Até ficar em casa mesmo, mas conversando, sobre tudo.
Foi importante para mim fazer uma mini-homenagem a ela, com essa personagem de uma avó. E também pelo fato de que minha avó faleceu quando eu estava perto de publicar o meu primeiro zine, em 2016. Para mim faz muita falta que ela não tenha visto nenhuma HQ que eu publiquei, sabe? Eu não sei se ela iria gostar (risos). Porque, honestamente, sei lá… Por vários motivos, eu nunca falei com ela abertamente sobre a questão de ser uma pessoa LGBT. Enfim, a gente tinha algumas questões geracionais, mas nada muito muito difícil. Mas é isso, me fez falta que ela nunca viu nenhum quadrinho que eu fiz, mas ela gostava muito dos meus desenhos. Então eu quis fazer essa homenagem para ela.
Eu adoro o drama da protagonista, Clarice: uma tatuadora que não consegue tatuar a própria pele. Ou melhor, que não consegue que sua pele seja tatuada. O que essa situação significa para você?
Eu me interesso por esse tipo de narrativa que só foge um milímetro da realidade, sabe? Como se o problema da Clarice tivesse algo de simbólico mesmo, de quase mágico e que não pudesse ser resolvido de forma prática. Me interessa essa mistura de terrenos. Também tem a ver com essa questão de que tatuar é o mundo dela, a função dela, o trabalho, o jeito dela de estar no mundo. O fato dela própria não conseguir vivenciar isso, acho que tem muito a ver com… Como eu posso dizer? Com uma certa dificuldade de ser você mesmo, de se inserir no seu próprio mundo. Tem a ver com uma forma de narrar um drama pessoal. Como uma narrativa precisa apresentar um problema que será resolvido, acho que essa é considerada a base de toda narrativa, né? Eu me interessei em criar esse problema da Clarice de forma que a solução dele fosse muito subjetiva. Sem querer dar muito spoiler da história, mas eu gostei de ficar numa construção que não fosse preto no branco, com o perdão do trocadilho.
E eu acho que esse mal-estar da Clarice pode ser interpretado como outras coisas também. Não só uma dificuldade de se inserir no seu próprio mundo, no nível profissional, como é a tatuagem para Clarice, mas pode ter a ver com identidade mesmo. Isso acho que pode ser aplicado, por exemplo, a uma pessoa LGBT, que que tem dificuldade para se apropriar da sua vida e não ter medo de ser ela mesma, sabe? Acho que dá para aplicar em outros contextos também.
Você é pesquisadora do trabalho da Alison Bechdel. Algumas digressões, talvez entreatos, de Pigmento me lembraram de alguns parênteses que a Bechdel abre nos quadrinhos dela. Você pode falar um pouco mais, por favor, sobre o impacto da obra dela na sua vida e nas suas práticas como quadrinista?
A Bechdel é realmente uma referência tão importante para mim que eu acabo fazendo muitas coisas de forma parecida com ela. Às vezes não é nem intencional, mas como as obras dela me impactaram tanto, alguns mecanismos de narrativa eu uso de forma parecida porque acredito que são importantes e válidos. Como essas camadas de narrativa, essas referências a outros livros, a outra produções culturais. O que é importante na Bechdel para mim que, às vezes, tento reproduzir é essa construção de significado usando outros elementos já presentes na nossa cultura.
Tipo, a forma como a gente reutiliza essas obras pode criar novos significados, mas não de um jeito vazio. Acho importante não só mostrar outro livro, mas tentar fazer um uso produtivo dessa comunicação com outras obras, essa intertextualidade. Fora isso, ela é muito importante para mim pelo fato do contexto dela, né? Dos quadrinhos terem começado como muito alternativos e underground, já representando uma comunidade que na época era muito mais sub-representada do que é hoje. Então tem essa parte também, que para mim é muito especial e muito inspiradora. Tanto que a [escritora, pesquisadora e tradutora] Natalia Polesso, que chamei para fazer o blurb do livro… Chamei ela e a Laerte, né? Mas a Natalia até fez essa brincadeira. Tipo, “às vezes eu gosto de falar que a Aline é a nossa Alison Bechdel brasileira”, mas não é por aí e tal. Então eu sempre fico muito feliz, quando faz essa comparação. Tipo, eu tento criar a minha narrativa, do meu jeito, mas é muito difícil não transparecer as referências que a gente tem, né?
“Quero continuar trabalhando na produção de histórias longas”
Você também pode falar um pouco, por favor, sobre a sua relação com tatuagem? Você tem muitas tatuagens? O que tatuagens representam para você? Você já trabalhou como tatuadora?
Para mim, tatuagem tem a ver com esse grupo de pessoas… Sei lá, dissidentes socialmente. Isso também me interessa enquanto questão social, para estudar. Para fazer Pigmento eu li Uma História da Tatuagem no Brasil, da Silvana Jeha, que saiu pela editora Veneta. Ela fala com muito mais detalhes sobre o fato da tatuagem, historicamente, ter a ver com grupos, de alguma forma, rejeitados socialmente. Não só rejeitados, mas grupos oprimidos de alguma maneira. Tipo, presidiários, marinheiros ou estrangeiros que vinham para o Brasil na época que a tatuagem ainda estava começando a se tornar algo mais comum. Sem contar outras marcações corporais que o livro da Silvana fala também. Ela fala sobre pessoas escravizadas que tinham suas próprias marcações. Para mim, é interessante porque tem muito a ver com essa ideia de identidade cultural que marca certos coletivos. Além da questão estética também, que também tem a sua importância.
Se tornou algo interessante para mim porque visualmente é um universo muito amplo e eu nunca tinha visto uma uma HQ que tratasse disso. Como a HQ também é muito visual, achei muito válido explorar o universo da tatuagem nessa linguagem de quadrinhos. Pelo que contei, tenho 14 tatuagens, não é muito mas também não é pouco. Então tô no meio do caminho. Eu gosto bastante de tatuagem e estou sempre tentando pensar em fazer alguma. Como é algo que envolve um certo investimento, dependendo do tamanho, não é sempre que eu posso fazer. Mas eu tenho isso sempre em mente, planejando a próxima.
Eu nunca trabalhei como tatuadora. Tentei uma vez só, esse ano mesmo. Eu estudei tatuagem com uma pele falsa, com uma tatuadora que me orientou. Ela também está começando a fazer quadrinhos agora – o Instagram dela é @wasabi_tattoo. Ela me orientou, mas foi uma vez só e eu vi como é difícil, como é trabalhoso. Sem querer me furei com a agulha algumas vezes e isso me deixou um pouco assustada. Eu gostaria de tentar mais vezes, treinar tatuagem, mas não sei se teria coragem de levar isso adiante profissionalmente. Acho que é bastante responsabilidade você marcar a pele de alguém, então admiro muito quem trabalha com isso.
Até Pigmento seus trabalhos tinham sido independentes ou saído por editoras independentes. Você está publicando agora pelo maior grupo editorial do Brasil. Está sendo uma experiência muito diferente publicar pela Companhia das Letras? Tem algum paralelo com suas experiências prévias? Quais são os maiores contrastes?
Os maiores contrastes entre trabalhar com uma editora grande e trabalhar de forma independente, ou com editoras independentes: primeiro, a diversidade de profissionais com quem eu vou lidar numa editora grande. Coisas que eu fazia completamente sozinha ou com poucas pessoas agora estão mais divididas. Vou estar em contato com alguém do design; alguém do marketing e outra pessoa responsável por eventos; o próprio editor, o Emílio; outra pessoa para falar de contratos; uma outra para falar de envio de livros,… São muitas muitas áreas, divididas por mais pessoas.
O alcance da distribuição nas lojas é muito maior, a divulgação também, existe um pouco mais de estrutura para essa parte. Pelo nome da editora, né? É uma editora que já está, obviamente, muito bem infiltrada. Essa questão dos mailings, a possibilidade de enviar livros para produtores de conteúdo, a possibilidade de imprimir uma tiragem maior também é um ganho muito significativo. Isso que tem me saltado os olhos. E também uma maior possibilidade de ter esse quadrinho traduzido para outros idiomas. É uma vontade muito grande que eu tenho, principalmente para o francês e para o inglês. Acho que uma editora de grande porte aumenta essas possibilidades.
Outras coisas que me vieram à mente agora: a possibilidade de usar outros materiais na impressão. Por exemplo, se eu fizesse esse livro sozinha, eu não poderia ter colocado o verniz na capa – e o verniz na capa de Pigmento fez toda diferença. E também senti diferença no tempo das coisas. Como são muitos lançamentos para sair pela Companhia, são muitos projetos gerenciados ao mesmo tempo, existe uma outra dinâmica para tratar do livro, né? Talvez, fazendo de forma independente ou com uma editora de médio e pequeno porte, sendo o número de projetos menor, existe essa chance do lançamento sair em menos tempo. Foi outro contraste que me veio à mente.
Agora uma pergunta injusta, porque Pigmento nem saiu direito, mas você já tem algum trabalho seguinte em mente? No que você está trabalhando agora?
No momento, estou começando a ver a possibilidade, junto com o selo Harvi, do Marc KZ, de fazer uma coletânea de quadrinhos meus que estão fora de circulação. Para histórias novas, eu tenho algumas ideias, mas eu ainda não posso divulgar. Com certeza quero continuar trabalhando na produção de histórias longas. Isso é algo que eu percebi que me traz muito mais felicidade, elaborar projetos com um pouco mais de profundidade.
Você pode recomendar algo que tenha lido, visto ou ouvido nos últimos tempos? O que tem te divertido ultimamente?
Um filme recente que eu vi, que me afetou muito assim positivamente, foi o Dias Perfeitos, do Wim Wenders. Porque eu gosto muito de coisas analógicas e esse filme tem muito a ver com isso, com gostar de colocar um CD para ouvir ou pegar um livro e ficar lendo. São coisas muito simples que às vezes a gente acaba deixando de lado.
Em relação a leitura, eu tô um pouquinho para trás, tenho andado sem tempo para ler, mas o último quadrinho que eu li foi O Grande Vazio, da Léa Murawiec. É bem interessante, bem diferente do que a gente tá acostumado a ver, como narrativa. Acho que vale a pena conhecer. E outras coisas que não são tão recentes assim, mas que me afetaram nos últimos tempos foram: Nectarina, de Lee Lai, eu achei incrível o traço, a construção da história, gostei muito desse quadrinho; e O Segredo da Força Sobre-humana da Alison Bechdel, obviamente, eu amei. Eu sabia que eu ia amar, mas não sabia que iria me impressionar tanto. De tudo que ela publicou, esse quadrinho foge um pouco, não sei explicar. Ele segue a estrutura que a Bechdel gosta de usar, com as camadas narrativas, mas é um quadrinho muito mais existencial. Eu achei muito bonito, ele é muito emocionante. Acho que vale muito a leitura.
Eu consumo bastante podcast também. Acho que vale a pena recomendar um que não é recente, mas que me impactou muito e nem todo mundo ficou sabendo, então acho que vale recomendar: o projeto Querino, da Rádio Novelo, do Tiago Rogero. É incrível, acho que todo brasileiro deveria ouvir para saber um pouco mais da nossa história, é maravilhoso.