Papo com Dave McKean, o capista de Sandman e autor de Black Dog: “A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante como nunca”

O quadrinista britânico Dave McKean veio ao Brasil para o lançamento da edição nacional de Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash. O livro foi publicado pela editora DarkSide Books e terá uma sessão de autógrafos com a presença do autor na próxima quinta-feira, dia 7 de junho, no Rio de Janeiro (você confere outras informações sobre o evento por aqui). Dias antes da chegada de McKean ao país e de sua passagem pelo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) em Belo Horizonte, fiz uma longa entrevista por email com o autor. O papo virou matéria para o UOL, que você lê aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da nossa conversa. Um papo sobre Paul Nash, Black Dog, extremismos, tecnologias, super-heróis, música e arte. Saca só:

Você se lembra da primeira vez que ouviu falar do Paul Nash? Você se lembra das suas primeiras impressões sobre o trabalho dele?

Eu cresci próximo de Cookham, local no qual o Stanley Spencer viveu e pintou durante toda a vida. O Spencer estava no Slade com o Nash e um grupo importante de jovens artistas que se tornaram os primeiros modernistas britânicos. Inspirados por influências vanguardistas da Europa, eles abordavam temas referentes aos século 20 e brincavam com Expressionismo, Vorticismo, Surrealismo e todas as outras escolas que estivessem por perto, tentando dar sentido a um mundo moderno mecanizado. Então eu soube sobre o Nash quando ainda era muito jovem, e ele também nasceu perto do local onde eu cresci, por isso eu conhecia muito bem as paisagens e as árvores que ele pintava. Eu acredito que provavelmente preferia outros artistas quando era mais jovem – com trabalhos mais estilizados e obviamente com imagens mais surrealistas. Foi apenas muito tempo depois que eu comecei a apreciar o poder simbólico e a objetividade de suas pinturas da Primeira Guerra Mundial.

Como veio o convite para você criar esse livro? Você teve alguma reserva em criar um livro sobre um artista sendo você também um artista?

Eu fui procurado pela 14-18 Now Foundation de Londres para propor uma graphic novel e um projeto de performance com algum foco na Primeira Guerra Mundial. Eles encomendaram cerca de 20 obras de arte de diferentes mídias a cada ano entre 2014 e 2018 para marcar o centenário da Grande Guerra. Eu imediatamente pensei que gostaria de concentrar na experiência de um homem, nada na escala da guerra ou relacionado a aspectos geo-políticos, tecnológicos ou de batalhas, mas apenas pensar em em alguém indo àquele contexto, a primeira guerra mundial e industrial moderna. Eu achei que seria interessante ver isso tudo sob a perspectiva de uma pessoa criativa, fosse um escritor, um poeta ou um artista. O Nash me pareceu o mais poderoso desses artistas da Primeira Guerra Mundial. Não o melhor tecnicamente, também não era o mais extrovertido e nem um homem que viveu uma guerra dura, mas por algum motivo ele foi aquele que conseguiu encontrar uma linguagem para expressar a brutalidade e o niilismo não apenas da Primeira Guerra Mundial, mas de qualquer guerra – as imagens dele ainda são relevantes nos dias de hoje. E ele encontrou a própria voz nas trincheiras. Ele foi a Ypres como um simbolista romântico em crise e retornou para a Inglaterra transformando, raivoso, socialista e motivado por mostrar seus conterrâneos o que era passar por aquele inferno. Então foi uma escolha inteiramente minha e não tive qualquer preocupação em relação a representar a vida de outro artista. Foi quase o contrário, eu senti uma conexão intensa com o Nash por causa do passado da família dele e por ele ter vivido e trabalhado em lugares que eu conheço muito bem, além do desejo dele de expressar a própria consciência em seu trabalho. Nenhuma das paisagens dele eram realmente realistas, elas são sonhos ou interpretações psicológicas do mundo real mescladas com os sentimentos dele.

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“Eu sempre vou ao roteiro e pergunto o que ele deseja. Eu não tenho um estilo, eu apenos uso qualquer coisa que a história pedir”

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E foi difícil criar um diálogo entre a sua arte e a do Paul Nash? Aliás, foi desafiador criar esse diálogo e não se limitar a ser uma homenagem ao trabalho dele?

É realmente um diálogo. Eu li tudo o que poderia encontrar do Nash e fui ver vários dos trabalhos dele nas salas do acervo do Imperial War Museum. Então eu tive uma impressão bem completa do homem, como ele pensava e como escrevia para outras pessoas – ele era um pródigo escritor de cartas. Quais eram os demônios internos dele, suas ansiedades e como eles expressava todas essas coisas em seu trabalho. Já que já existia muito material biográfico e autobiográfico sobre o Nash, eu decidi estruturar o livro como uma série de sonhos. As pinturas do Nash são cenários de sonhos – são espaços construídos a partir de de diferentes observações e depois misturados com as ansiedades problemáticas dele. Pensei que cada capítulo poderia ser uma sonho sobre um momento crucial da vida dele durante esses anos de formações, desde pouco antes da guerra até alguns anos depois. Eles podiam ser uma terra de ninguém na qual eu poderia falar com ele e fazer perguntas e tentar compreendê-las às minha maneira – por exemplo, por que ele nunca mais desenhou ou pintou pessoas após encerrar as encomendas que recebeu focadas na guerra?

Você tem um estilo muito característico, mas as suas técnicas e a sua arte variam bastante de livro para livro. Como você definiu as técnicas e os estilos que utilizaria em Black Dog? Você poderia falar um pouco sobre como define suas técnicas e estilos de trabalho pra trabalho?

Eu sempre tento encontrar um tom de voz favorável à atmosfera, ao clima e ao panorama emocional de cada livro. Cada capítulo e cada sonho de Black Dog são muito diferentes. Alguns tratam das brincadeiras de infância dele com o irmão John, imaginando árvores como gigantes e guardiões. Outros capítulos envolviam a passagem enevoada das docas de Southampton para a França, a vida nas trincheiras, o cumprimento de ordens e a busca por alívio nos detalhes da natureza em meio a um campo de batalho desolado. Cada um desses cenários é um espaço físico e emocional específico, então eu realmente precisava encontrar a forma certa de apresentar visualmente cada capítulo, capturar o clima e expressar as emoções. Um porto sujo e com neblina parece como acrílico e grafite em papel de aquarela amassado. o barulho de um grupo de estudantes em Londres em um pub parece mais detalhado, com linhas de caneta e traços mais bem definidos nos copos e nas decorações do lugar. Então eu sempre vou ao roteiro e pergunto o que ele deseja. Eu não tenho um estilo, eu apenos uso qualquer coisa que a história pedir.

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“Não podemos esquecer que liberdades que tomamos como garantidas na verdade vieram sob um custo imenso. A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante hoje como nunca”

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Você pode descrever cada etapa da criação de Black Dog?

Eu fiz muita pesquisa e várias anotações e depois reuni todas essas anotações em pequenos arcos narrativos que iriam compor cada capítulo. Cada parte precisava apresentar um ponto importante da vida do Nash durante esses anos de guerra. Eu comecei escrevendo a narração e os diálogos sempre que parecia apropriado, tirando frases das cartas dele e imaginando uma conversa em fluxo dentro dessas circunstâncias. Parte da narração eu pensei que poderia refletir os hábitos inicias dele de escrever versos poéticos em seus desenhos. Esse texto virou letra das músicas para a parte de performance desse projeto. Quando tinha um capítulo já mais bem desenvolvido, eu rascunhava como as páginas ficariam e depois as desenhava ou pintava. Algumas dessas páginas eu precisava refazer enquanto buscava o estilo certo que o roteiro pedia. Mas uma vez que já tivesse um ou dois painéis bem resolvidos, o resto fluia muito bem. Eu mantive o processo muito aberto e improvisei até o final. Eu ainda estava reescrevendo e reformatando o final do livro até os últimos dias. Isso me permitiu fazer todo tipo de conexão que eu tenho certeza que teria deixado passar se tivesse tudo fechado logo no início do processo.

De quais aspectos de Black Dog você tem mais orgulho?

De vários na verdade. Eu acho que pode ser o livro do qual tenho mais orgulho. Eu acho que o tema dele valeu o meu investimento e o Nash é um artista que merece ser mais conhecido – ele é completamente desconhecido fora da Inglaterra. Eu gosto de várias das artes e acho que o padrão das ilustrações e da narrativa são bons. Eu amei ter escrito e me senti estimulado a continuar escrevendo os meus próprios livros e também fiquei muito feliz por ser parte de um projeto tão forte envolvendo outros artistas. A apresentação ao vivo ocorreu no Tate, no memorial Somme em Amiens e também repetimos em vários festivais desde então. Esse lado do projeto tem sido maravilhoso e, outra vez, muito estimulante a continuar compondo e escrevendo músicas.

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“A terra é uma bagunça cada vez maior, precisando de soluções globais. Nacionalistas não acreditam em soluções globais, então não acreditam em problemas globais, por isso eles ignoram as evidências e contorcem a verdade para que ela fique coerente com a perspectiva insular de mundo que possuem”

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O Paul Nash parecia muito atormentado pelos tempos de guerra nos quais ele viveu, principalmente pelo que testemunhou no exército. Estamos vivendo um período muito belicoso da humanidade. Quais lições você acredita que podemos tirar das artes e das vivências do Paul Nash?

Que guerras precisam ser evitadas. Há falcões no poder no momento que nunca viveram em períodos de guerra e estão começando a sentir que esse possa ser uma forma legítima de lidar com desentendimentos. Após à Segunda Guerra Mundial, tivemos um senso social crescente de que deveríamos nos ajudar e oferecer apoio uns aos outros – o nascimento do NHS e outros programas sociais no Reino Unido e o empenho para unificação da Europa. Estamos começando a esquecer essas coisas e as pessoas estão novamente se escondendo sob argumentos nacionalistas e egoístas. É por isso que memoriais, comemorações e o hábito de contar essas histórias desses períodos são tão importantes, não podemos esquecer que essas liberdade que tomamos como garantidas na verdade vieram sob um custo imenso. A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante hoje como nunca.

Sobre esse mesmo período atual de extremismos: os cidadãos do Reino Unido estão testemunhando um crescimento de ideias conservadoras e xenófobas – aliás, algo que parece estar ocorrendo no mundo inteiro. Você é otimista em relação ao nosso futuro?

Não muito. Isso é algo em certo nível geracional. Eu fico emocionado que a geração dos meus filhos esteja muito mais tranquila em relação a questões de identidade cultural, identidade sexual e mudanças tecnológicas. A maior parte deles votou (se tiver votado) para que continuássemos na Europa e continua a votar por iniciativas e partidos mais responsáveis socialmente. Então os reacionários egoístas e cegos vão desaparecer e espero que uma geração mais esclarecida fique com o poder. No entanto, pode ser que não estejamos vivos para testemunhar isso. A terra é uma bagunça cada vez maior, precisando de soluções globais. Nacionalistas não acreditam em soluções globais, então não acreditam em problemas globais, por isso eles ignoram as evidências e contorcem a verdade para que ela fique coerente com a perspectiva insular de mundo que possuem. Eu acredito que as distorções decorrentes da internet em tudo são as questões mais alarmantes do momento. Sem dúvida tivemos muitos benefícios com a conectividade, mas estamos recusando a lidar com o impacto negativo da perda de confiança e compreensão do mundo real. Trump, Putin e outros são as criaturas de um mundo incapaz de separar realidade de ficção. Isso me fez mais determinado do que nunca para ficar do lado que acredito ser o certo. Eu costumava achar que a fantasia e ficção eram benignas, agora eu acho que são mais insidiosas do que isso.

Você tem muitos trabalhos em parceria com escritores, pensadores e artistas incríveis. Black Dog é um trabalho solo. É muito diferente para você criar algo individualmente e em parceria com outra pessoa?

É maravilhoso passar alguns períodos no universo de outra pessoa, mas é muito mais recompensador ilustrar meus próprios roteiros. Eu tenho a liberdade de ir aonde o roteiro me levar.

Sobre essas parcerias: imagino que sejam experiências muito interessantes, poder criar e dialogar com autores como Neil Gaiman, Richard Dawkins, Tori Amos, Alice Cooper, Alan Moore, Iain Sinclair… Como você define essas experiências? Alguma específica dessas teve algum impacto maior em particular em você?

Elas são todas muito diferentes. Foi maravilhoso trabalhar durante um ano com o Richard Dawkins e ele teve um impacto enorme no direcionamento do meu trabalho em relação à ciência e à realidade. No ano seguinte eu passei com a Wildworks e o Michael Sheen dirigindo The Gospel of Us e participando do projeto Passion of Port Talbot, uma reconstrução secular da história da Páscoa. Trabalhar com o Bill Mitchel na Wildworks mudou completamente a minha forma de trabalhar, longe da busca obsessiva por controle total e em busca de uma abordagem mais divertida e improvisada no desenvolvimento de um projeto.

Você fez capas para CDs e também é músico. Como é para você o trabalho de criar esse tipo de capa? Que tipo de diálogo você tem com as bandas e os artistas antes começar a criar?

Também são todos muito diferentes. Alguns gostam de me deixar trabalhar sozinho e aí eu crio o que considero o que melhor captura o clima da música. Alguns gostam de ser mais participativos, oferecendo ideias que eu possa desenvolver. Eu não me incomodo com nenhuma das duas formas. São geralmente projetos curtos, então fico feliz em explorar uma atmosfera durante um ou dois dias antes de retornar ao meu próprio mundo.

Alguns de seus trabalhos mais famosos foram as capas de Sandman. O quanto esses trabalhos foram importantes para a sua carreira? Você pode falar um pouco da dinâmica da sua parceria com o Neil Gaiman?

Elas acabaram se tornando um diário de sete anos, enquanto eu explorava ilustração, fotografia, colagens, designs, desenhos e ferramentas digitals. Era ótimo ter uma janela inteira todo mês para experimentar algo novo, ilustrando um arco longo de histórias aberto à minha interpretação. Quando começamos eu tinha acesso às páginas internas, mas no final eu só tinha uma ou duas linhas de descrição do que aconteceria nos meses seguintes. É surpreendente como as capas acabaram casando tão bem com as páginas internas, principalmente por eu ter poucas referências com as quais trabalhar.

E qual você considera a principal diferença de criar a capa de um livro, de um disco e de um quadrinho?

Elas são semelhantes por serem todas janelas para o conteúdo da obra, o primeiro ponto de conexão entre um consumidor potencial e o conteúdo. Elas servem como filtros pelos quais ouvimos as músicas ou começamos a ler um livro. Eu acho que elas funcionam melhor quando são abertas e simbólicas, ao invés de pedantemente descritivas.

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“Eu ainda faço trabalhos para um mundo físico e não estou interessado em adaptar o que eu faço para o que me parece ser uma experiência virtual muito limitada”

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Estamos vivendo em tempos muito digitais. Ebooks, webcomics e arquivos de músicas ainda têm capas, mas é uma relação distinta entre esses produtos e seus consumidores. Essa diferença é muito grande pra você, não apenas como um criador, mas também como leitor, ouvinte e consumidor?

Eu ainda sou um grande consumidor dos objetos físicos. Eu compro CDs, blu-rays e livros. Eu não leio em tablets e não faço download de música. Eu prefiro música que tenha contexto, que seja parte de um corpo de trabalho de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, de uma localização geográfica específica, de um período histórico específico e que seja conectado a outros criadores em uma rede de conexões e forças sociais – música é uma forma de aprender sobre o mundo, não apenas uma amontoado aleatório de sons. Eu prefiro livros que venham com espíritos, cheiros e artisticamente trabalhados. Eles crescem e envelhecem comigo. Eu tenho consciência que gerações mais novas que não tenham crescido tão apegadas em um mundo de objetos físicos não tenham essas mesmas conexões emocionais, mas temo que é assim que me sinto sobre isso. Então eu ainda faço trabalhos para um mundo físico e não estou interessado em adaptar o que eu faço para o que me parece ser uma experiência virtual muito limitada. Eu acredito que a realidade virtual é um meio imensamente promissor, mas precisa ser explorado como uma linguagem independente, não como a adaptação de um filme ou livro. São linguagens completamente diferentes – um livro ou um filme são formas narrativas, realidade virtual não, ela tem uma natureza exploratória.

Você pode falar um pouco sobre as principais diferenças e semelhanças entre criar uma ilustração, fazer um quadrinho, escrever uma música e gravar um filme?

Apenas observe as qualidade intrínsecas de cada um desses formatos. Ilustrações são expressões curtas de ideias estáticas, um quadrinho expande isso para sequências narrativas, para que você possa explorar emoções e ideias de forma muito mais extensas. Música é abstração, é provavelmente a forma de arte mais poderosa por ultrapassar todas as lógicas e despertar conexões emocionais instantâneas. Filmes são massivamente complexos e estão constantemente comprometidos, mas quando funcionam podem recriar versões do mundo em formar extraordinariamente vívidas – talvez o mais próximo que existe de um sonho.

Você tem todas essas áreas de interesse e atuação. Você consegue definir o que você faz em uma única palavra? Qual você considera ser a sua profissão?

Eu tento não fazer isso. Os italianos têm uma palavra, ‘creativo’. Fico feliz com ela.

O seu trabalho ficou famoso nos Estados Unidos principalmente por conta de suas parcerias com o Neil Gaiman em Sandman e Orquídea Negra e com o Grant Morrison em Asilo Arkham. Como foi para você essas primeiras experiências no mercado editorial norte-americano? Foi um período muito produtivo para você e seus colegas britânico, correto?

Foi um grande momento para entrar nessa área, os editores estavam em busca de novas vozes e nós trouxemos um frescor europeu e uma arrogância juvenil para o mercado. A maioria dos meios têm esses momentos de ouro, quando estão afundando e precisam de rejuvenescimento, e se você tiver sorte pode encontrar um lugar para brincar, se divertir e começar uma carreira. Mas esses momentos nunca duram. Eventualmente, as companhias acabam definindo seus trabalhos por termos financeiros e esse momento de liberdade e anarquia criativa chega ao fim. Eu gostei de fazer esse trabalho e de conhecer essas pessoas, mas eu precisei seguir com a minha vida depois de alguns anos – fazer esses trabalhos deixou de ser um interesse real para mim.

Você não fez muitos quadrinhos de super-heróis, mas ilustrou muitos livros publicados por essa indústria. O que você acha da indústria norte-americana de quadrinhos e seus super-heróis nos dias de hoje?

Eu acho que são uma imensa porcaria – um veneno que destruiu o meio dos quadrinhos nos Estados Unidos e agora arruinou a indústria de cinema. São fantasias de poder de crianças para uma cultura infantilizada e amedrontada. Muito deprimente.

O que mais te interessa em artes gráficas e no mundo dos quadrinhos hoje? Há algum tipo particular de trabalho ou algum artista que te interessa mais atualmente?

Com exceção dos quadrinhos mainstream da Marvel e da DC Comics, os quadrinhos estão passando por uma era de ouro de criatividade. Todas as novas vozes estão sendo ouvidas ao redor do mundo e sendo expressas em estilos sem qualquer peso nostálgico de quadrinhos antigos. Eu continuo encontrando novos artistas para exaltar, de Mattotti a Jorge Gonzales, do Pedrosa ao Auladell.

O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos ocidentais, mas vivemos culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?

Óbvio, é maravilhoso ver como os livros serão recebidos. E também incrível ver como livros estão sendo criados em outros trabalhos. Eu sempre tento encontrar uma loja local de CDs em qualquer lugar que eu vá e pergunto por recomendações de lançamentos musicais locais.

No que você está trabalhando atualmente? Você tem algum livro novo nos seus planos?

Eu estou finalizando um livro de pinturas e ilustrações inspiradas em filmes mudos, eu acabei de terminar um livro com o escritor americano Jack Gantos, eu estou para começar uma graphic novel que escrevi sobre natureza, luto e monstros (da espécie política). Eu ainda estou trabalhando em Caligaro, minha graphic novel inspirada em O Cabinete do Dr. Caligari. E também tenho algumas outras coisas em andamento, incluindo um novo filme chamado Wolf’s Child.

A última! Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?

Eu tenho lido muitos textos sobre viagens e natureza, principalmente do Patrick Leigh Fermor e Robert Macfarlane. Eu costumo assistir a documentários ao invés de assistir a dramas na TV, então deixei passar várias das séries mais populares. Eu tenho gostado de séries escandinávas noir como The Bridge. O meu gosto por filmes mudou muito, estou cada vez mais impaciente com coisas mainstream pré-digeridas e formatadas. Todos esses filmes me parecem a mesma coisa para mim. Então eu tendo a buscar vozes singulares como Herzog, Enyedi e Svankmajer, e é ótimo encontrar vozes originais em filmes como Três Anúncios Para Um Crime e um favorito recente, The Mountain. Música? Praticamente qualquer coisa, me principalmente música ambiente e orquestras. Jazz europeu e escandinavo, a música folk contemporânea está passando por um renascimento no Reino Unido no momento.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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