Não lembro do meu primeiro contato com um quadrinho com roteiro do norte-americano Ed Brubaker. Talvez tenha sido Batman – O Homem que Ri ou a série Gotham Central, originalmente publicada em português como Gotham City Contra o Crime. Lembro que gostei muito das duas leituras, mas só passei a dar atenção especial aos trabalhos dele após ler os primeiros encadernados de Criminal, lá para o fim dos anos 2000.
Há alguns meses reli os primeiros Criminal, terminei a série e fui atrás de outros títulos do roteirista em parceria com o ilustrador Sean Philips. Me impressiona a regularidade e o volume de trabalho dos dois. Eles não se propõem a refletir ou experimentar em relação às possibilidades da linguagem dos quadrinhos, mas são claros e extremamente eficazes em sua proposta de divertir.
Aproveitei o anúncio do lançamento de uma série de títulos de Brubaker e Philips em português, pela editora Mino, e fui atrás do roteirista. Entrevistei o escritor e transformei esse papo em texto para a edição de julho da Sarjeta, minha coluna sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. A conversa rolou no início de junho, algumas semanas antes dos dois troféus do Prêmio Eisner recém-conquistados pelo autor – melhor novo álbum gráfico, por Pulp, e melhor quadrinho digital, por Friday, parceria com Marcos Martin.
O foco principal da entrevista com Brubaker foi em Pulp, primeiro dos títulos dele com Philips a ser lançado pela Mino. Mas ele também falou sobre a construção do universo de Criminal, comentou sobre sua dinâmica de trabalho com o parceiro criativo de mais de 20 anos e expôs algumas das mágoas que guarda de sua passagem pela Marvel. Você lê a Sarjeta clicando aqui e confere, a seguir, a íntegra da minha entrevista com Ed Brubaker:
“É um faroeste, mas ambientado na década de 1930”
Eu quero começar sabendo como você está. Como você está lidando com a pandemia? A pandemia afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Sim, para o bem e para o mal. Finalmente voltei a ler livros o tempo todo, o que é bom, e decidimos fazer graphic novels em vez de séries mensais, então o trabalho foi realmente produtivo. Mas não saí muito, nem fiz muitos exercícios, e estou pagando por isso agora, tentando voltar um pouco à forma.
E como você acha que isso vai afetar o seu ambiente profissional? Imagino que você esteja conversando com outros autores e com seus editores sobre isso tudo. Como você acha que isso pode mudar a forma como se produz e vende quadrinhos?
Eu não sei, honestamente. Acho que intensificaram coisas como a publicação via Kickstarter, mas as grandes editoras americanas parecem ter sobrevivido muito bem. Na verdade 2020 foi um dos maiores anos para os quadrinhos em muito tempo, eu acho, em termos de vendas. Mas acho que mais pessoas estão pensando em vender direto aos consumidores e coisas do tipo.
Pulp é protagonizado por fora-da-lei aposentando tentando viver em um ambiente urbano, mas não apenas. Qual era a sua proposta quando você começou a escrever esse quadrinho?
O livro foi feito principalmente para ser um estudo de personagem sobre um fora-da-lei que envelhece à medida que o fascismo está varrendo o mundo. Vendo aquela ligação entre os proprietários de terras do Velho Oeste com seus próprios exércitos privados, e a semelhança entre isso e o fascismo, como o capitalismo sempre teve esse lado sombrio. No final das contas, é um faroeste, mas ambientado na década de 1930.
“Pulp também é sobre eu quase morrendo”
Quadrinhos seguem sendo vistos por muitos como obras escapistas. Qual você considera o papel de bons escapismos em contextos tão tristes e pessimistas como o cenário de Pulp e a atual realidade mundial?
Eu acho que realmente depende. Eu sei que nos últimos anos, do jeito que o mundo tem andado, eu tive menos interesse em escrever histórias deprimentes, e quero trazer algo mais divertido para nossos leitores… Mas eu sempre tendo a adicionar algum tipo de tragédia ou tristeza de alguma forma. Isso é apenas vida, eu acho. Quero que as pessoas possam se identificar com as histórias que contamos, bem como se distrair um pouco com elas. Mas é possível fazer as duas coisas. Eu acho O Grande Gatsby tanto imensamente divertido quanto incrivelmente comovente, então esse é sempre o objetivo.
Você pode me falar, por favor, sobre a sua relação com publicações pulp? O que você vê de mais interessante nelas?
Tenho muitas lembranças nostálgicas desse tipo de coisa, desde a infância. Havia essas brochuras de Men’s Adventure quando eu era criança – como The Executioner, The Destroyer, etc – e também reimpressões de personagens antigos como Doc Savage e Conan, com capas pintadas realmente incríveis. Essas coisas realmente me atraíram, e ainda gosto da aparência de todos esses livros daquela época. A estética da coisa toda. Isso é o que nos inspirou, recentemente, para os livros de Reckless, a aparência e sensação daqueles velhos livros de bolso dos anos 1960 e 1970.
Acho que uma grande sacada de Pulp é ser um quadrinho pulp sobre obras pulp. O que veio primeiro: a história de Pulp ou a ideia de desenvolver um quadrinho pulp? Ou veio tudo junto (uma HQ pulp sobre obras pulp)?
Tudo começou porque Sean queria um faroeste e eu não tinha nenhuma ideia. Então comecei a pensar em meus filmes de faroeste favoritos, e aí me lembrei que havia alguns homens nos anos 1930 que afirmavam ser o Butch Cassidy (nenhum deles realmente era, no fim das contas) e a partir daí a história começou a se encaixar. Gostei da ideia de um velho fora-da-lei escrevendo histórias pulp que eram a versão mais feliz de sua juventude.
Além disso, o livro também é muito sobre eu quase morrendo e me preocupando em deixar minha esposa sem nada. Isso me assombrou por cerca de um ano antes de eu finalmente escrever Pulp, então foi uma maneira de processar esses sentimentos como ficção.
“Várias pessoas me acusaram de ser um esquerdista maluco”
Vivemos um período de ascensão do fascismo em todo o mundo. Foi de alguma forma satisfatório para você ter um herói em uma missão de encarar fascistas?
Sim, eu pensei que seria muito “pulp” ter os bandidos como nazistas, mas sendo o mais realista possível. Todas aquelas coisas no livro realmente aconteceram em Nova York naquele momento. Muitas pessoas ainda ficam surpresas ao saber sobre aquele comício nazista naquela noite, o que é triste. E várias pessoas me acusaram de ser um esquerdista maluco por fazer dos nazistas os bandidos de uma obra de ficção histórica, o que não passa de insanidade. De repente, é como se algumas pessoas não quisessem admitir que os nazistas eram os bandidos. Eu nunca pensei que isso aconteceria na minha vida, honestamente.
Aliás, a maior parte dos seus trabalhos que li são sombrios, violentos e pessimistas de diferentes maneiras. Você se considera uma pessoa pessimista?
Acho que depende do dia. Sou pessimista em relação às pessoas e ao nosso futuro. Sou pessimista sobre as mudanças climáticas e nossa capacidade de lidar com elas. Mas na maioria das vezes eu tento não pensar sobre essas coisas e apenas vivo a minha vida da melhor maneira que posso e aproveitando cada dia. Às vezes escrevo coisas sombrias porque são histórias de crime e porque acho que tenho algumas coisas dentro de mim que precisam aflorar.
Apesar de My Heroes Have Always Been Junkies ser um spin-off de Criminal, ela funciona como uma obra autônoma, assim como Pulp. Como é essa experiência para você? Trabalhar tendo em visto um número limitado de páginas? Como esse tipo de restrição espacial contribuiu para o desenvolvimento das suas histórias?
Eu odeio ter que me preocupar com o tamanho de uma história. Prefiro apenas escrevê-las, sem ter uma contagem de páginas definida, mas por causa da realidade do mercado de quadrinhos e dos prazos, temos que ter um objetivo geral antes de começarmos a trabalhar, para descobrirmos quanto vai custar a impressão e coisas do tipo e quanto tempo o Sean vai levar para desenhar.
“Quando já está tudo desenhado, deixo o Sean maluco pedindo um monte de pequenos ajustes”
Você tem planos para outras obras fechadas como Pulp e My Heroes Have Always Been Junkies?
Não tem nada certo neste momento. Estamos fazendo livros com o dobro do tamanho agora, e acabando de terminar o terceiro do que será uma série de cinco em sequência.
Você pode me falar um pouco sobre a sua dinâmica com o Sean Phillips? Vocês são parceiros de longa data, como funciona a relação de vocês? Como um contribui para o trabalho do outro? Que tipo de troca ocorre entre vocês?
Fazemos o mesmo desde o início. Dou a ele uma vaga ideia de como será o livro e envio um roteiro de oito ou doze páginas por vez, ele desenha à medida que eu escrevo e nunca quer saber o que virá a seguir. Trocamos muitos e-mails e às vezes peço a ele para alterar algo que não funcione, mas na maioria das vezes nos entendemos perfeitamente. No final, quando já está tudo desenhado e com letras, eu deixo ele maluco pedindo um monte de pequenos ajustes no diálogo ou na narração, ou partes que quero cortar porque soa redundante.
Acho que as cores do Jacob Philips estão contribuindo imensamente para as suas parcerias com o Sean Phillips. Como é a sua dinâmica de trabalho com ele?
Assim como faço com o pai dele, eu envio ao Jake algumas instruções aqui e ali depois que as páginas chegam, e é isso. De vez em quando dou conselhos sobre carreira ou sobre Hollywood para seus outros quadrinhos. Normalmente apenas digo ao Jake o que gosto no que ele está fazendo. E quando Reckless estava começando, enviei a ele algumas fotos e cenas de filmes para ajudá-lo na paleta de cores de Los Angeles na década de 1980.
“Amo a sensação tátil de livros e quadrinhos, bem como as histórias que eles contam”
Sobre Criminal, o quanto você já tinha traçado desse universo quando deu início à série lá em 2006? Como se dá essa construção e costura das tramas de Criminal?
Eu tinha os primeiros três ou quatro livros mais ou menos mapeados e as ligações entre alguns dos personagens. Mas muito disso é apenas instintivo. Eu escrevo todas as histórias que sinto que precisam ser escritas para aquele mundo e não planejo mesmo com antecedência. Por exemplo, enquanto trabalhávamos no ano mais recente de Criminal eu não fazia ideia que ia acabar contando o arco maior de história que tinha em mente desde o começo, Cruel Summer, mas então pareceu certo e fui lá e fiz.
Aliás, vocês têm planos de dar continuidade a Criminal após os eventos de Cruel Summer? Vocês consideram explorar outras tramas com coadjuvantes como fizeram em My Heroes Have Always Been Junkies?
Claro, sempre espero retornar a Criminal para mais histórias.
No ano passado entrevistei um ex-parceiro de trabalho seu, o Jason Lutes, por causa do lançamento da edição brasileira de Berlim. Ele me falou algo que passa para os alunos dele sobre a importância da clareza em uma HQ. Não que elas devam ser desenhados com clareza, mas que as intenções e a forma como você está se expressando devem ser claras. Vejo muita dessa clareza nos seus trabalhos. O que você considera mais importante quando está criando uma história em quadrinhos?
Contar uma boa história, provavelmente. Manter os leitores envolvidos e dar a eles uma história que valha à pena e todo um pacote que valha seu dinheiro. Eu amo a sensação tátil de livros e quadrinhos, bem como as histórias que eles contam. Mas sim, eu, o Jason e todo o nosso grupo de amigos na década de 1990… Tínhamos um grupo semanal que se reunia e conversava sobre quadrinhos e mostrávamos nossos trabalhos uns aos outros, e todos nós estávamos muito interessados em quadrinhos como uma forma de arte a ser explorada. Portanto, não me surpreende que tenhamos várias propostas semelhantes com os nossos trabalhos.
“A Image é como ter a sua própria editora com outra pessoa que investindo todo o dinheiro”
A Image é uma editora que trabalha com a manutenção dos direitos das obras com seus autores. Como tem sido a sua experiência com eles até aqui?
Excelente. A Image é como ter a sua própria editora com outra pessoa que investindo todo o dinheiro. Consegui um acordo único com eles, que nos permite fazer qualquer coisa que quisermos sem ter que apresentar ideias ou tentar ser comercial e essa foi a melhor coisa que já aconteceu na minha carreira. Liberdade total, propriedade total e controle de todos os aspectos da impressão.
Você falou recentemente sobre sua decepção com a ausência de créditos ao seu nome nas adaptações da Marvel para o cinema com o Soldado Invernal. Esse tipo de crítica e questionamento com as grandes empresas da indústria do entretenimento não é de hoje, mesmo lendas dos quadrinhos como Jack Kirby, Joe Simon e Joe Schuster sofreram com isso. Qual lição você tira dessa sua experiência com os Estúdios Marvel?
Não se trata de falta de crédito, mas de falta de pagamento por esse crédito. Eles percorreram uma longa estrada ao dar mais reconhecimento aos autores dos trabalhos que eles exploram, mas não vai muito além disso. Mas eu sabia que eles eram assim quando trabalhei lá, não é nenhuma novidade. Minha reclamação é mais específica à minha situação pessoal e às coisas que me foram prometidas. Não é surpresa que essas corporações gigantescas não queiram tratar os criadores de maneira justa, essa é a história do mercado editorial e do cinema.
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
São as tiras de jornal de Peanuts ou os desenhos animados da Marvel dos anos 60. Depois, quando eu tinha uns 3 ou 4 anos, meu pai deu para mim e para o meu irmão uma caixa enorme de quadrinhos que ele ganhou de amigos do escritório. Muitos quadrinhos antigos de várias editoras, Marvel, Archie, EC. Todo o tipo de coisa. Foi assim que vi pela primeira vez o Homem-Aranha.
No que você está trabalhando no momento?
Estou tentando terminar o roteiro de Destroy All Monsters, o terceiro livro da série de graphic novels Reckless.
Fico curioso: o que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu trabalho é lido e interpretado em uma realidade tão distinta da sua?
Sim, claro. E eu realmente espero que as traduções sejam ótimas.
Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido recentemente?
Claro. Se você conseguir encontrar, o sexto episódio da segunda temporada de Mythic Quest é um dos melhores episódios de série de televisão que já assisti. E recentemente assisti a todos os episódios de Columbo, que é bobo, mas divertido. No momento, estou atualizando os livros do [inspetor] Rebus, do Ian Rankin, eles são sempre viciantes.