Papo com Emil Ferris, autora de Minha Coisa Favorita é Monstro: “Estamos aqui para contar histórias e para ouvir, de peito aberto, para que cresçam nossa sabedoria e nossa empatia”

Minha Coisa Favorita é Monstro será lançado no Brasil no início do mês de março. A obra ganha edição em português após ser reconhecida com três prêmios Eisner (melhor álbum, melhor escritora e artista e melhor colorista) e com o Fauve d’Or, prêmio máximo do Festival de Angoulême. As 416 páginas da HQ de Emil Ferris foram desenhadas com esferográficas e canetinhas e compõem o diário ilustrado de Karen Reyes, uma menina de dez anos que se retrata como uma ‘lobismoça’ enquanto investiga o assassinato de uma vizinha sobrevivente do Holocausto num subúrbio da Chicago dos anos 1960.

Eu fiz duas entrevistas com Emil Ferris ao longo de 2018, uma no começo do ano e outra no segundo semestre. Essas conversas viraram matéria para o jornal Folha de São Paulo, na qual eu conto um pouco da história singular da autora e a longa saga de Minha Coisa Favorita é Monstro até sua chegada às livrarias. Recomendo a leitura do meu texto e, posteriormente, da entrevista a seguir, com a íntegra das minhas trocas de emails com Ferris. Nesse papo, a autora fala sobre as suas origens, conta um pouco da formação dela como artista e aborda algumas das inspirações que resultaram em Minha Coisa Favorita. Saca só:

[[a entrevista a seguir foi traduzida por Érico Assis, também tradutor da edição brasileira de Minha Coisa Favorita é Monstro, pela Companhia das Letras]]

“Assim como todo cientista louco, eu fui ladra de túmulos enquanto criava o livro. Alimentei minha fome visual com tudo que ela queria”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras

Você se lembra do momento em que teve a ideia de criar Minha Coisa Favorita é Monstro? Você poderia contar um pouco sobre a origem desse projeto?

Me veio a imagem de uma garotinha lobisomem protegida pela capa de chuva de um garoto mais alto com cara de Frankenstein. Aí eu pensei: ‘Que coisa curiosa. Por que essa imagem?’ A história se aglutinou em torno desse momento.

Eu li uma entrevista em que você conta como foi difícil encontrar uma editora para o livro. Você pode contar um pouco sobre essa jornada? Quanto do livro já estava finalizado quando você começou a apresentá-lo para editoras?

Acho importante que todo artista que esteja atrás de publicar seu livro saiba que o sucesso de Monstro não aconteceu da noite pro dia. Fico contente que saibam que 48 editoras recusaram o livro porque consideraram que era diferente demais e grande demais. Espero que outros quadrinistas animem-se e sejam mais PERSISTENTES!

Você poderia falar um pouco sobre as suas técnicas e os materiais que utiliza?

A maior parte do livro foi desenhada com canetas Bic e Flair. No início eu tentei desenhar em papel de caderno pautado, mas logo me dei conta que a edição e a tradução iam ficar impossíveis. Agora são desenhos que viram uma camada sobre uma camada de folha de caderno.

“Fiz esse livrão monstro no isolamento total. Ninguém leu antes de eu terminar, então não tive ideia do que eu ia criando”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras


Como é o seu ambiente de trabalho? Você poderia descrever o local no qual você criou Minha Coisa Favorita é Monstro?

No início eu estava trabalhando em um estúdio que ficava do lado dos trilhos do elevado e adorava o barulho do trem. Da minha janela eu conseguia ver as pessoas entrando e saindo dos trens. Como eu trabalho à noite, o trem iluminado e o elenco mutante eram minhas únicas companhias. Eu adorava morar ali. Mas aí a primeira editora não conseguiu publicar o livro, eu fui à falência e me despejaram. Agora estou em um apartamento horrível cheio de infiltração. Espero que em breve eu tenha como pagar um estúdio!

Eu gosto muito da singularidade de cada página de Minha Coisa Favorita É Monstro e das relações que você estabelece entre imagens e palavras. Você chegou a trabalhar com um roteiro fechado? Você teve alguma dificuldade em dar unidade ao livro em decorrência de toda essa variedade de designs e ideias?

No material promocional que eu enviei, descrevi o livro como uma espécie de monstro. É uma grande verdade. Assim como todo cientista louco, eu fui ladra de túmulos enquanto criava o livro. Alimentei minha fome visual com tudo que ela queria e a sorte que eu venho tendo é que os leitores parecem ter a mesma liberdade na experiência do livro que eu tive na criação.

“Durante todos esses anos trabalhando no livro, eu me dizia: ‘Emil, é só seguir em frente.’ E ainda me digo, pelo menos uma vez por dia…”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras

O seu quadrinho me fez pensar bastante sobre a relação entre o escapismo intrínseco à leitura de quadrinhos (e obras de ficção em geral), mas também sobre o ato de desenhar como uma busca por escapismo. Eu vi isso na Karen assim como via em mim e nos meus amigos durante a infância, um hábito que fomos perdendo enquanto crescíamos. Você poderia me falar da sua relação com o ato de desenhar? Como você começou a desenhar? Desenhar sempre foi parte da sua vida?

Gostei muito que você comparou desenhar ao ‘escapismo’ sadio! Respondendo: Nasci com um tipo de escoliose que me incapacitou muito, deixou meus pés muito pequenos e, por conta disso, só consegui caminhar quando tinha mais de dois anos. Como eu não podia explorar o mundo com os pés, explorava desenhando. O desenho, como meu ‘prêmio de consolação’, foi meu primeiro escapismo na vida — bem literal, aliás. Fico contente pelo desenho sempre ter feito parte da minha vida e por ter me ajudado em épocas difíceis ou sinistras. Espero, com toda sinceridade, que quem ler isto aqui – alguém que já amou desenhar, quem sabe – volte a seu bloquinho. Desenhar é uma das grandes maneiras de cultivar amor próprio e honrar o que a existência tem de belo.

Ainda sobre escapismo: obras de horror e ficção sempre existiram como uma forma de retratar a nossa realidade. Seja falando sobre a Guerra Fria, o consumismo da nossa sociedade, a nossa relação com o meio ambiente… Enfim, esses são temas sempre presentes em trabalhos do gênero. O quanto você acha que esse aspecto de obras escapistas acabou se perdendo com o tempo? Você ainda vê essa mesma preocupação em tratar dos dilemas da nossa realidade na ficção feita nos dias de hoje?

Outra grande pergunta. Acho que Nietzsche foi muito visionário ao apresentar o conceito do ‘Último Homem’, o que se contenta em ter uma vida centrada na segurança, no conforto e no prazer. É um modelo de vida que exige que você fique plugado na cultura das celebridades, obcecada pelo entretenimento, comprometida com a distração. Acima de tudo, a meu ver, este modelo não valoriza o empenho artístico nem uma missão ou visão pessoal e idiossincrática.

É uma tendência que me preocupa. Recomendo a quem quiser nadar contra esta ‘onda anti-cultura’, que queira criar um obra que seja particular e complexa, que se livre da televisão e se desligue do noticiário, da mídia, o quanto for humanamente possível.

Eu nunca estive em Chicago, mas sei da relação da cidade com arquitetura, museus, autores de quadrinhos e arte em geral. Você se vê influenciada por esse ambiente tão criativo?

Com certeza. Chicago não só está entre as grandes cidades do mundo, Chicago também é osso duro. Em 1871 a cidade inteira pegou fogo, mas ergueu-se das cinzas para redefinir arquitetura, arte e cultura. Ela não desiste fácil!

“Quadrinhos são sussurrar uma história do jeito mais íntimo que se imaginar, bem no ouvido do leitor. É uma coisa muito, muito íntima, porque esse cochicho entra lá naquela cabeça e fixa residência na arquitetura que o componente visual construiu dentro da mente”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras

Eu também li uma entrevista na qual você fala sobre as várias origens da sua família e de seus antepassados. Você poderia falar como todas essas raízes influenciaram a sua formação e a forma como você vê e cria arte?

Sou muito grata por ser – assim como a maioria das pessoas – toda remendada. Um Frankenstein, por assim dizer, de imigrantes, colonizadores e nativos. Essas origens, todas elas, são intensas e são complexas. Cada experiência tem uma mensagem forte que ilumina a dor e a beleza da vida. Na melhor das hipóteses, eu acredito que a herança ancestral de cada um pode nos ajudar a decifrar os problemas e grandes questões da vida de um modo que é mais pessoal e que cria uma narrativa. Na pior, nossa herança pode dar uma sensação de orgulho que é falsa e perigosa. Já vimos aonde isso leva.

Portanto, a meu ver, tendo uma parte da família de imigrantes mais recentes e outra parte de colonizados e colonizadores, eu penso muito em história. Penso em como ela vive conosco, consigamos ver ou não, porque tem vários sentidos em que nossa HISTÓRIA é o VERDADEIRO ‘Homem Invisível’. (Aqui estou pensando em Anka.)

DIGO ISSO PORQUE ESPERO MUITO QUE OS ARTISTAS CONTEM SUAS HISTÓRIAS DE FAMÍLIA. Nas Comic Cons, já ouvi artistas me contarem histórias dos ancestrais que me levaram às lágrimas.

Ou seja, boa parte do que digo aqui é direcionado a futuros autores às portas do sucesso e a leitores criativos (leitores também são grandes magos!)

Embora nossas raízes possam nos dar força e sustento, não creio que devíamos ser obedientes às raízes – em termos tanto do que elas desejam quanto da aptidão para nos segurar em um lugar só (no sentido que se quiser de ‘lugar’), mas principalmente no sentido artístico e espiritual. Acho que devíamos nos permitir contar nossas histórias de família, mas também nos dispormos a sair, como nômades, desenraizados, até os confins do mundos, e tentar entender as experiências dos outros no que elas têm de diferente. Também acredito que é assim que nós – como autores – armamos uma oportunidade para nossos leitores desenvolverem a empatia. Temos que nos decidir pela fidelidade às imaginações perfeitas que temos e nos empenharmos em ser de confiança quando formos levar gente na jornada que criamos.

Eu não sei se foi a sua intenção, mas o seu livro, para mim, trata de indivíduos singulares e da dificuldade de ser original e ver e pensar o mundo de maneiras singulares. Há um conservadorismo crescente no planeta que vê toda essa diversidade e originalidade de pensamentos como um problema. Você é otimista em relação ao mundo em que vivemos?

Sou muito, muito otimista. Tem uma mudança singular, grande e linda que eu acredito que vai acontecer em breve. Estamos aqui para um alçar o outro. Estamos aqui para contar histórias e para ouvir, de peito aberto, para que cresçam nossa sabedoria e nossa empatia. Eu acredito que somos conectados por uma energia. Quando uma pessoa fica mais sábia, mais bondosa, mais nobre no sentido humano, todos ficamos melhores. A maioria de nós anseia por amor. O amor sem disfarces e seus rebentos: aceitação, carinho e pertença. Quase todo mundo gosta de festejar quando supera os conflitos pessoais. Nos unimos através de toda Magia que nos torna humanos e creio que isso é uma coisa que, em breve, todo mundo vai descobrir.

“Recomendo a quem quiser nadar contra esta ‘onda anti-cultura’, que queira criar um obra que seja particular e complexa, que se livre da televisão e se desligue do noticiário, da mídia, o quanto for humanamente possível”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras

Eu li alguns artigos sobre os efeitos da Febre do Nilo Ocidental na sua vida. Quais foram as principais lições que você tirou dessa experiência?

A Febre do Nilo Ocidental em ensinou que, quando temos grandes dificuldades, pode ser que eles nos preparem para ter mais força e mais dedicação. Perder a capacidade de desenhar fez eu valorizar muito esses dons, de um jeito que não tem precedentes. Também fez eu me sentir vinculada ao empenho de outros. Às vezes, quando as coisas ficam bem difíceis, a simples capacidade de seguir em frente já é uma vitória. Durante todos esses anos trabalhando no livro, eu me dizia: ‘Emil, é só seguir em frente.’ E ainda me digo, pelo menos uma vez por dia… e o importante é que eu me obedeço. Eu sigo em frente.

Quando conversamos pela primeira vez, o livro já havia sido muito elogiado pela crítica especializada, mas agora você tem três prêmios Eisner por causa dele. O que esse reconhecimento significa para você?

Acordei na manhã seguinte à premiação e foi bem difícil acreditar que tinha acontecido. A homenagem é especial sobretudo por causa do imenso talento do senhor Eisner e porque muitos dos meus colegas, autores de dons extraordinários, e muitos amantes dos quadrinhos votaram em mim. Saber disso me deixa profundamente comovida!

Eu gostaria de saber sobre a sua relação com a crítica e com esse interesse crescente pelo seu livro por parte da imprensa. O que você sente ao ver o seu trabalho tão analisado e interpretado e tantas pessoas interessadas no seu quadrinho?

Fico lisonjeada e um pouco ‘perplexa’ por essa coisa toda. Fiz esse livrão monstro no isolamento total. Ninguém leu antes de eu terminar, então não tive ideia do que eu ia criando. Tal como o Dr. Frankenstein, eu não tinha ideia de que ele ia ‘viver’ até que a ‘eletricidade’ das imaginações dos leitores começasse a fluir pelos seus ‘ossos’.

“Fico contente pelo desenho sempre ter feito parte da minha vida e por ter me ajudado em épocas difíceis ou sinistras”

Página de Minha Coisa Favorita é Monstro, HQ da quadrinista Emil Ferris, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras

O que você pode contar sobre os próximos livros da série?

Karen vai crescer bastante. Em parte, isso foi difícil pra mim. Não quis que ela passasse pelo que ela tem que passar. Estou dando duro!

Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

Quando eu tinha acho que um e meio ou dois anos, minha mãe me deu as Funny Pages (a página dominical de quadrinhos no jornal) para recortar e transformar em colagem. Eu gostava muito de recortar, colar e desenhar quando era pequena. Era assim porque eu não podia caminhar, devido à curvatura da minha espinha, então eu explorei o mundo no desenho. Eu gostava principalmente de recortar Ferdinando. Eu adorava as cores esmaecidas, o pontilhado. Adorava que a cor raramente fechava com os contornos. Eu transformava aquelas imagens nos meus gibizinhos de bebê, alegres e toscos.

O que são histórias em quadrinhos para você?

Quadrinhos são sussurrar uma história do jeito mais íntimo que se imaginar, bem no ouvido do leitor. É uma coisa muito, muito íntima, porque esse cochicho entra lá naquela cabeça e fixa residência na arquitetura que o componente visual construiu dentro da mente. Para mim, isso é uma mistura de teatro de bonecos, generosidade mágica e uma transfusão de sangue espiritual, tudo junto na mesma coisa.

(Ramon, dito isso tudo, há outras mentes dos quadrinhos melhores que a minha que podem dar mais complexidade a minhas ideias – sou relativamente nova nas HQs e tem muitos que sabem bem mais que eu!)

Você poderia recomendar algo que esteja lendo, ouvindo ou assistindo no momento? [pergunta feira em fevereiro de 2018]

Enquanto eu desenho, não consigo ler como gostaria, mas enquanto escrevo esta resposta eu ouço Pelléas e Mélisande, de Debussy. Ouço muito The Hanged Man, de Ted Leo, assim como o blues de Chicago e música dos anos 60.

Algumas coisas de quadrinhos que eu recomendo: How to Read Nancy: The Elements of Comics in Three Easy Panels, de Mark Newgarden e Paul Karasik; Fetch, de Nicole J. Georges; The Customer is Always Wrong, de Mimi Pond; Krazy: George Herriman, A life in Black and White, de Michael Tisserand; Legend, de Sam Sattin e Chris Koehler; King Kong, Skull Island, de Joe DeVito.

E livros textuais: The Girl With All The Gifts, de MR Carey.

Praticamente só vou no cinema, não assisto tevê. Achei A Forma da Água maravilhoso, assim como Vazante, Pantera Negra, Corra! e Uma Mulher Fantástica.

A capa da edição brasileira de Minha Coisa Favorita é Monstro
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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