Caso você esteja em Belo Horizonte no próximo sábado (30/11), recomendo um pulo na Livraria da Rua (R. Antônio de Albuquerque, 913, Funcionários), a partir das 13h, para o lançamento da coletânea PARAFUSO 1. Editada e idealizada pelo quadrinista Jão, o álbum de narrativas gráficas experimentais conta com trabalhos de 12 artistas de Belo Horizonte além do autor responsável pelo projeto: Aline Lemos, Batista, Bruno Pirata, Daniel Pizani, Estevam, Faw Carvalho, Gabriel Nascimento, Ing Lee, João Belo, Julhelena e Priscapaes.
Parceria das editoras Pulo e Miguilim, PARAFUSO 1 tem 48 páginas e é fruto de um período de três dias de trabalhos dos 12 artistas envolvidos no projeto no Laboratório de Quadrinhos Potenciais coordenado por Jão em janeiro de 2018. O Laboratório inclusive já rendeu dois posts de bastidores aqui no blog: um no qual Jão escreveu sobre a origem do projeto e outro sobre os temas e das restrições impostas aos artistas participantes. Também compartilhei por aqui uma prévia de sete páginas da PARAFUSO 1.
Às vésperas do lançamento de PARAFUSO 1 eu bati um papo com Jão sobre a criação, o desenvolvimento e a publicação da coletânea. Ele falou sobre a dinâmica dos trabalhos do Laboratório de Quadrinhos Potenciais, suas inspirações no OuBaPo, a opção pela cidade como tema central da obra e uma explicação didática sobre seu “universo PARAFUSO”. Como sempre, conversa bem massa. Saca só:
(na imagem que abre o post, quadros do trabalho de Ing Lee para a coletânea PARAFUSO 1)
“Minha ideia foi priorizar as trocas a partir do convívio de produção em conjunto”
Os quadrinhos presentes na PARAFUSO 1 foram criados durante o Laboratório de Quadrinhos Potenciais que você organizou em janeiro de 2018. O que foi o Laboratório? Como você concebeu esse projeto?
O Laboratório de Quadrinhos Potenciais foi uma residência artística que criei para desenvolver trabalhos em conjunto com outros profissionais que já tinham experiências com publicações impressas. É importante frisar que a proposta não era direcionada apenas para quadrinistas, mas também para pessoas de outras áreas ligadas às artes visuais, que poderiam contribuir por meio de um certo deslocamento em relação aos quadrinhos, o que é ótimo. Minha ideia, ao desenvolver a atividade, foi priorizar as trocas a partir do convívio de produção em conjunto, assim como fazer uma investigação sobre os recursos da linguagem das narrativas gráficas com o auxílio das restrições criativas do OuBaPo. Ao longo dos encontros uma série de exercícios foram propostos para os artistas, com várias limitações pré-estabelecidas, para analisarmos, em conjunto, a forma como esses desafios seriam trabalhados. Os resultados são incríveis e muito do que foi discutido no período está transposto na PARAFUSO 1! Além disso, temos ainda uma quantidade grande de páginas prontas para lançar em uma publicação futura.
“As histórias e narrativas presentes na PARAFUSO 1 ganharam outras dimensões para mim”
Quase dois anos depois dos encontros do Laboratório de Quadrinhos Potenciais, a PARAFUSO 1 está sendo finalmente lançada. Qual balanço você faz desse projeto? Você consegue fazer um comparativo entre o que imaginava que essa obra poderia ser e a versão que acabou sendo impressa?
Apesar do distanciamento em relação ao momento em que as histórias foram geradas e a publicação eu já tinha preparado a organização e como gostaria de apresentar este trabalho ainda no primeiro semestre de 2018. De todo modo, um lado bom da espera foi que quando retomei as conversas com a Miguilim, para finalmente lançarmos esse trabalho, percebi que as histórias e narrativas presentes na PARAFUSO 1 ganharam outras dimensões para mim, o que acho importante, pois não gostaria de desenvolver algo que ficasse datado. Ainda aprendo e ainda sou estimulado pelo que os autores criaram ali.
Por mais que você tivesse planos para o lançamento de uma obra impressa fruto do Laboratório de Quadrinhos Potenciais, esse é um projeto que você tinha controle mínimo em relação àquilo que era realizado pelos 12 autores. O que mais te surpreendeu nessa experiência?
Nossa, existem tantas surpresas! É difícil até criar uma lista, mas vou citar duas situações que me marcaram:
Em primeiro lugar a produção da Ing Lee: até então ela não havia feito nenhuma história em quadrinhos, mas eu gostava muito do trabalho que ela desenvolvia com os zines e, em uma edição da Faísca, convidei ela para produzirmos alguma coisa juntos. Acabou que até o Laboratório não conseguimos, mas a participação dela na atividade e depois é fundamental para mim. A Ing tem uma energia e uma vontade, assim como uma sabedoria gráfica e narrativa, que sempre me levam a lugares que ainda não tinha estado. Desde os encontros do Laboratório que ela tem se tornado, cada vez mais, uma das grandes representantes dos quadrinhos em Belo Horizonte e no país.
A maior surpresa que tive, no entanto, foi com o trabalho do Batista: eu conhecia as obras dele por conta dos cartuns que lançava na internet e, até então, ainda não tinha visto nenhuma narrativa um pouco mais longa feita por ele. Lembro de uma conversa durante o Laboratório, que ele dizia que estava aberto e que queria experimentar situações que o tirassem da zona de conforto. Foi o que aconteceu. Quando a história que ele produziu chegou ao meu e-mail foi como uma explosão. O grau de amadurecimento e sensibilidade que estavam presentes nas páginas que ele enviou, e que estão presentes na revista, é gigantesco! É impressionante como, em apenas quatro páginas, ele consegue desenvolver algo tão denso, tão aberto, e que me fez pensar (e ainda estou) durante tanto tempo.
“O OuBaPo e a experimentação na linguagem eram isso: novos universos a serem explorados”
Nos posts de bastidores que fizemos aqui no blog você falou sobre seu interesse em uma “forma lúdica de criação”. Foi lúdico o processo de criação desse livro? Quais são as suas principais lições e experiências e suas melhores memórias desse processo de criação coletivo com esses 12 autores que participam do livro?
Acredito que em janeiro de 2018, quando o Laboratório foi realizado, eu precisava encontrar novos motivos para seguir com minha produção autoral. Para isso optei por procurar paralelos com o momento e a energia que me fizeram começar minha carreira nos quadrinhos. O que descobri foi que, naquela época (2007, 2008…), eu não criava histórias como um modelo de trabalho, mas sim porque era divertido para mim. Era um universo completamente novo a ser explorado, o que sempre me instigou. Ao chegar nessa conclusão, percebi que queria construir algo assim tanto para as atividades como para uma forma de produzir quadrinhos que pudesse ser passada para outras pessoas. O OuBaPo e a experimentação na linguagem eram isso: novos universos a serem explorados. Ao partir desta premissa, elaborei alguns exercícios para guiar os encontros, mas outras atividades foram pensadas em conjunto também. A residência foi muito boa nesse sentido, pois percebi que todos ali estavam se divertindo ao produzir e elaborar histórias, foi meio que um jeito de sair do cotidiano. Dos retornos que tive dos artistas quando o Laboratório já havia acabado e cada um estava criando as narrativas que comporiam a PARAFUSO 1, também recebi muitas mensagens deles sobre o quanto estavam gostando de fazer aquilo. Percebo que a imersão nesses processos foi um bom respiro para os participantes e para a cena de Belo Horizonte.
“Foi estabelecido uma espécie de tema, que permeia toda a obra, que é a ‘cidade'”
Pelos prévias já divulgadas por você, chama atenção a variedade de estilos e técnicas presentes no livro. Como foi conciliar toda essa diversidade e dar unidade à coletânea?
Acho que já falei aqui no Vitralizado sobre o meu grande interesse pelo formato revista. Eu fui criado assim e é algo que me atrai demais. Essa experiência vai também de encontro com as antologias de quadrinhos, sejam elas gringas ou nacionais, sendo que a principal influência que tenho é da Graffiti 76% Quadrinhos, que era uma antologia editada aqui em BH. Nesse tipo de publicação é comum essas reuniões de variados estilos e técnicas. No caso da PARAFUSO 1, o que fiz foi organizar tudo de um jeito que fazia algum sentido para mim, mas que também pudesse contar uma história por meio da sequência de narrativas, que gerasse uma experiência de leitura mesmo. Além disso, foi estabelecido uma espécie de tema, que permeia toda a obra, que é a “cidade”. Não Belo Horizonte ou algum outro lugar determinado, mas o espectro de cidade. Sendo assim, meio que uma unidade já havia sido formatada desde o início.
Por que “a cidade” como tema desse projeto?
Quando estava elaborando o Laboratório de Quadrinhos Potenciais pensei que deveria encontrar um mote para ligar tudo aquilo que seria produzido na residência, mas estava com dificuldades para achar isso. Foi a Helen Murta, minha companheira e sócia na Editora Pulo, que sugeriu o tema “cidade”. Pesquei na hora essa ideia porque já era algo que estava muito enraizado em meu trabalho, mas percebi que seria legal que a troca de experiências entre os participantes partisse desse lugar para que outras conclusões sobre os centros urbanos fossem discutidas a partir da linguagem dos quadrinhos.
“Já tenho dois ou três universos distintos para números posteriores da PARAFUSO”
Você já lançou a PARAFUSO 0, agora esta lançando a PARAFUSO 1 e prometeu para breve o lançamento da PARAFUSO ZERO – Expansão. Qual a diferença entre cada um desses trabalhos? Por que esse interesse por parafusos?
Desde o início, com o lançamento da revista PARAFUSO 0, eu tinha definido que queria desenvolver 10 edições da PARAFUSO. A ideia, no início, era fazer duas ou três por ano, mas acabei percebendo que PARAFUSO é um projeto de vida, é meu laboratório e um jeito de dar vazão ao que estou pensando e criando como autor. Dessa forma, acho que o projeto vai me acompanhar durante um bom tempo.
Para complicar um pouco as coisas, percebi que as edições não precisavam, necessariamente, serem fechadas em um número. Então tenho trabalhado cada obra como um universo, que pode ter desdobramentos ou não.
O universo PARAFUSO ZERO é uma série sobre superseres, uma reflexão sobre a sociedade e uma jornada pelos estudos que tenho feito sobre autoritarismo e democracia, que são, no fim, o que tenho vivido e pensado. Ela está sendo ampliada por meio da construção do PARAFUSO ZERO – Expansão, que em breve será publicado.
Já o universo PARAFUSO UM é mais ligado à produção de quadrinhos do que sobre uma temática específica. A ideia é que outras antologias e outras formas de pensar o processo de confecção das narrativas gráficas sejam desdobrados a partir daí.
Como não me canso, já tenho dois ou três universos distintos para números posteriores da PARAFUSO. Vamos ver quando começo a trabalhar neles…
“Minha forma de apreciação para essa linguagem está muito mais focada na narrativa ou no desenho do que nos textos”
O que mais te interessa em termos de quadrinhos hoje? O que você mais tem interesse em ler e tentar fazer e experimentar com a linguagem das HQs?
Eu tenho lido poucos quadrinhos nos últimos anos, apesar de ser bem nerd quando sismo de encontrar trabalhos por conta própria. Mas normalmente eu não leio quadrinhos, ou, pelo menos, não do jeito que costumamos tratar como leitura. Minha forma de apreciação para essa linguagem está muito mais focada na narrativa ou no desenho do que nos textos ou para saber o que acontece a seguir numa história. Tive uma conversa com o Bruno Pirata (que também participa da PARAFUSO 1), há algum tempo, em que chegamos juntos na conclusão de que os quadrinhos se tornaram um meio obsoleto para se contar histórias por conta de toda a quantidade de informação e mecanismos que existem, como Netflix, cinema, literatura etc. Estou muito mais interessado nos conceitos sobre a narrativa gráfica. Vez ou outra eu me pergunto os motivos para seguir fazendo quadrinhos e não partir para outros caminhos artísticos, mas sempre chego na conclusão de que esta é minha forma de expressão, é como consigo passar o que penso, que, de certa forma, é como segue o meu fluxo de pensamentos no cotidiano. Enfim, fui para um lugar bem distante do que me perguntou, então retomando: pesquiso muito sobre novos autores ou artistas que estão desenvolvendo trabalhos nessa linguagem pelo mundo. Sigo acompanhando também o que hoje pode ser considerado um recorte do nosso mercado, que seriam os trabalhos de vanguarda dos quadrinhos, aqueles que estão à margem, mas que empurram a nossa produção para frente, como o Gerlach, a Puiupo, a Lovelove 6, o Sica, o Odyr, o Dahmer, o Gabriel Góes, o Lucas Gehre, a Ing Lee, a Aline Lemos, e mais um monte de gente. E o Chris Ware sempre.