Papo com Julio Shimamoto, autor de O Ditador Frankenstein: “Sinto muito orgulho de ter exercido meu papel de cidadão, me servindo da arte como minha arma de protesto”

Entrevistei o quadrinista Julio Shimamoto para escrever sobre a coletânea O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos para a Sarjeta, minha coluna mensal sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural.

O meu texto é focado principalmente nos 18 dias de 1969 que o artista passou preso entre as sedes da Operação Bandeirante (Oban) e da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), órgãos do governo militar voltados para a captura, tortura e assassinato de indivíduos considerados subversivos pelas autoridades da época.

Você lê aqui o meu texto sobre O Ditador Frankenstein, obra lançada pela editora MMArte e editada e organizada pelo quadrinista, pesquisador e músico Márcio Paixão Júnior.

Reproduzo agora a íntegra da minha entrevista com Shimamoto. Na conversa a seguir ele aprofunda seus temores sobre o Brasil presidido por Jair Bolsonaro, fala sobre como vem enfrentando seu período de isolamento social durante a pandemia do novo coronavírus e trata de sua busca constante por novas técnicas de trabalho.

“Hoje prefiro lidar mais com ferramentas do que desenhar”

Quadros de uma das HQs presentes na coletânea O Ditador Frankenstein, de Julio Shimamoto (Divulgação)

Antes de tudo, como vai o senhor? Como o senhor está encarando a pandemia do coronavírus?

Aqui  estamos bem, confinados dentro de nosso ‘bunker’, mas quatro vizinhos de nossa quadra se foram devido à COVID-19.

Mesmo como quadrinista, eu jamais seria capaz de imaginar uma pandemia como essa, capaz de deixar o mundo inteiro de joelhos.

O contexto de isolamento social afetou de alguma forma a sua rotina diária?

Sou do tipo eremita, daqueles que pagam para não sair de casa, logo não me sinto nem um pouco afetado por causa do confinamento compulsório. Mas me incomoda o fato de não poder sair para comprar um simples eletrodo numa casa de ferragens, mesmo estando localizada perto de minha casa. Pedi por telefone por recomendação de minhas filhas. Ah, devo esclarecer que hoje prefiro lidar mais com ferramentas do que desenhar…

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Tinha cinco anos de idade, em 1944, no distante sertão próximo das divisas de São Paulo com Mato Grosso, quando papai, ao retornar de uma viagem, me trouxe de presente três revistas de quadrinhos: Gibi, Globo Juvenil e Guri. Foram os presentes mais marcantes da minha vida.

“O desenhista também pode acabar virando canastrão se seguir produzindo no modo ‘piloto automático'”

Página de uma das HQs presentes em O Ditador Frankenstein, de Julio Shimamoto (Divulgação)

O que mais interessa ao senhor no uso da linguagem dos  quadrinhos?
 
O timing ou o ritmo da narrativa e a ênfase na ação.

Em termos de fantasia e terror, gêneros predominantes em O Ditador Frankenstein, quais são as principais leituras e influências do senhor?

Serei abrangente. Movido por curiosidade, sou um leitor eclético que aprecia ler sobre diversos assuntos. Mas tive minhas fases específicas. Na pré-adolescência li muitos livros de aventura de autores como Rudyard Kipling, Karl May e Monteiro Lobato. Na adolescência mergulhei nos livros policiais de Ellery Queen, Agatha Christie, Conan Doyle e Raymond Chandler. E na ficção científica: Isaac Asimov, H. G. Wells, Julio Verne e Arthur C. Clarke. Passei a ler os livros de terror por necessidade profissional, a fim de estudar a estrutura narrativa do gênero: Edgar Alan Poe, H. P. Lovecraft, E.T.A. Hoffmann,  Bram Stocker. O Ditador Frankenstein é uma coletânea de HQs de terror de vários autores, onde me incluo,  sem influências específicas, a não ser o foco comum no autoritarismo e na repressão. Essas HQs todas foram produzidas no período da ditadura militar no Brasil. 

O Márcio Jr publicou com o senhor o Cidade de Sangue e agora a coletânea O Ditador Frankenstein, são obras produzidas a partir de técnicas muito distintas, correto? O senhor pode falar um pouco sobre as suas técnicas, por favor?

Exatamente. Costumo variar de estilo para não sentir tédio. O desenhista também pode acabar virando canastrão se seguir produzindo no modo ‘piloto automático’. Ninguém gosta de repetir o mesmo prato todos os dias. Ao buscar um traço distinto para cada trabalho, sinto-me desafiado, e bastante motivado.  

O senhor tem alguma técnica preferida no momento?

Sim. Gosto muito do estilo xilográfico, mas não da forma de fazê-lo, entalhando com formão ou goiva a superfície da tábua. É muito trabalhoso e demanda tempo excessivo. Desenvolvi uma técnica bem mais simples, que chamo de ‘esvaziamento’: cubro uma cerâmica ou azulejo branco com tinta acrílica preta fosca, e depois de seca, desenho figuras em cima por raspagem, usando ponta de prego ou de espetinho de bambú. O efeito é de autêntica xilografia.

“Externar essa insatisfação nos quadrinhos era a nossa forma de protestar e expurgar nossa contrariedade”

Página de uma das HQs presentes em O Ditador Frankenstein, de Julio Shimamoto (Divulgação)


Ao longo de O Ditador Frankenstein também são apresentadas algumas técnicas distintas, certo? Quais eram os seus materiais preferidos na época?

Correto. Pincel, bico de pena, palito de dente, aerógrafo e água sanitária.

Como era a dinâmica de trabalho do senhor com os roteiristas e outros profissionais envolvidos na produção das HQs de O Ditador Frankenstein?

Nada excepcional. No Rio de Janeiro, eu ia até as editoras apanhar os roteiros, e das que ficavam em outros estados recebia por correio. Naquela época não havia fax, nem internet. O contato entre roteirista e desenhista era zero.

Por mais fantásticas que sejam, acho que as melhores histórias de terror tratam da nossa realidade, do nosso mundo, do nosso presente. O Ditador Frankenstein assusta exatamente por isso, mesmo as tramas com elementos mais fantásticos estão falando de terrores reais, como censura e tortura. Foi desafiador, de alguma forma, tratar de temas tão sérios e atuais dentro dos gêneros que o senhor e seus parceiros criativos escolheram trabalhar?

Havia o risco de cairmos na malha da censura, mas também era insuportável o sentimento de repulsa em relação ao regime de força a que todos estávamos submetidos. Externar essa insatisfação nos quadrinhos era a nossa forma de protestar e expurgar nossa contrariedade.

O que o senhor pensa ao ver esses trabalhos publicados há tantos anos serem reeditados no Brasil de 2020?

Foi do Márcio Júnior a ideia de republicar esses trabalhos, diante da ameaça da ideologia extremista que está em fermentação crescente no país, e concordei de imediato. Essas HQs podem ajudar os leitores mais distraídos a enxergar o sinal amarelo no nosso cotidiano político.   

“Se desaparecesse naquele quartel, torturado e morto, ninguém no mundo ficaria sabendo”

A capa da coletânea O Ditador Frankenstein, de Julio Shimamoto (Divulgação)


O que representava para o senhor trabalhar em histórias sobre a ditadura durante a ditadura? E o que representa para o senhor hoje ter feito esses trabalhos durante a ditadura e sobre a ditadura?

Acho que foi respondida antes. Essas HQs serviram como nossa válvula de descompressão da raiva contra a ditadura. Sinto muito orgulho de ter exercido meu papel de cidadão, me servindo da arte como minha arma de protesto.  

O senhor vê paralelos entre o Brasil pós-golpe de 64 e a nossa realidade atual? Se sim, quais seriam?

A tensão se assemelha, mas o contexto difere completamente. O golpe de 64 tinha componente externo, motivado pela Guerra Fria (EUA x União Soviética). Nossos generais e nossos políticos conservadores estavam alinhados com os EUA, e o governo vigente exercia a neutralidade,  mantendo intercâmbio com socialistas e com capitalistas. 

Hoje temos um militar no governo eleito democraticamente, mas que está militarizando toda a estrutura para buscar presidir o país monocraticamente, como numa ditadura. Está tentando sufocar o Congresso e o Judiciário.

O Márcio também fala no prefácio sobre o período do senhor detido nas sedes da Oban e do Dops. Quais sentimentos e memórias o senhor tem desse período preso?

Foi uma experiência terrível e única, igual a pesadelo desperto. Imagine ser detido no meio de seu trabalho cotidiano e ser levado preso e jogado num xadrez sujo, sem água na pia, sem leito, sem chuveiro, e sem vaso na privada (apenas um buraco sobre esgoto), e uma única refeição por dia, temperada com salitre para inibir sua libido, servida em prato encardido, mal-lavado de propósito para abater seu moral e sua dignidade. Tinha que dormir no chão sob uma folha de jornal, assaltado pelas pulgas. A insônia era provocada pelos gritos lancinantes, principalmente de mulheres que estariam sendo torturadas. Isso em 1969, e a Oban era dirigida pelo [Carlos Alberto] Brilhante Ustra, coronel carniceiro, reverenciado por Bolsonaro como grande herói nacional.  Isso sem direito a nenhum advogado. Se desaparecesse naquele quartel, torturado e morto, ninguém no mundo ficaria sabendo.

“Eu acho maravilhoso estar vivo”

Página de uma das HQs presentes em O Ditador Frankenstein, de Julio Shimamoto (Divulgação)


O que o senhor sente quando vê o atual presidente se dizer um admirador de Carlos Alberto Brilhante Ustra?

Deveria sentir arrepio, mas tal afirmação só me desperta profundo desprezo e asco.

Tenho curiosidade em relação à visão de mundo do senhor no momento. O que o senhor acha que está acontecendo com o mundo? O senhor é otimista em relação ao nosso futuro?

Eu acho maravilhoso estar vivo, apesar dos meus 81 anos de vida. As coisas que vivenciei até agora, boas e más, fazem parte desse fenômeno que é viver. Sei que não viverei muito tempo, e estou sendo muito sovina com o tempo que me resta, e não planejo mais fazer quadrinhos, salvo alguma exceção extraordinária. Estou ilustrando capas e fazendo ilustrações avulsas, mas o que prezo mesmo é lidar com ferramentas, até onde eu tiver forças e lucidez. O mundo não será pior nem melhor, será sempre o que foi, com gerações se revezando em conflitos e em paz. Com pandemia ou sem pandemia.

O quadrinista Julio Shimamoto (Divulgação/Márcia Yumi)
Avatar photo
Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *