Filosofia do Mamilo narra os empenhos da quadrinista Kael Vitorelo pela remoção cirúrgica de seus seios. As 112 páginas em preto e branco do livro publicado pela editora Veneta narram os esforços e a frustração da autora, em meio a várias idas e vindas na Justiça, para conseguir a realização do procedimento com seu plano de saúde. Spoiler: ela não consegue. O álbum consiste em um longo relato de Vitorelo sobre suas reflexões pessoais e as conversas que teve com familiares, advogados e amigos enquanto ponderava sobre sua decisão e as dificuldades em colocá-la em prática.
Conheci Vitorelo em eventos na loja Ugra, em São Paulo, lá para 2017, e percebi imediatamente que compartilhávamos vários interesses em relação às possibilidades da linguagem das histórias em quadrinhos.
Ela publicou Perigeu e Tomboy e a convidei para participar da Série Postal, meu projeto de quadrinhos em formato de cartão postal. Ela produziu Crônica, que você lê aqui e confere os bastidores clicando aqui e aqui. Depois ela lançou as excelentes TILT, Lilibel e Judite (29º edição da coleção Ugritos). Seu trabalho mais conhecido é o Kit Gay, zine que acabou virando um livro de 96 páginas, também publicado pela editora Veneta, em 2021.
Acho que li tudo que Vitorelo publicou até aqui, então não hesito em dizer que Filosofia do Mamilo é seu trabalho mais elaborado e maduro – e também o mais pessoal. Ela concorda comigo, em partes. Conversamos um dia desses sobre o livro, em um papo por vídeo.
“No caso desse livro, acho que eu estava com muita raiva, eu sabia que ia acabar me colocando de uma forma um pouco mais assertiva”, ela me disse. “Sabendo disso tudo, acho que tive, de forma muito consciente, mecanismos para me preservar um pouco”.
Foi uma entrevista longa e compartilho a íntegra dessa conversa mais abaixo. Ela me contou sobre a produção do livro, seus sentimentos enquanto trabalhava nele, a experiência em produzir um quadrinho com o suporte do ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo) e as transformações do livro enquanto ele era concebido.
Filosofia do Mamilo consegue ser sóbrio e leve, sério e divertido, triste e otimista. É um livro incômodo e necessário, didático e instigante. Entrega muito do que gosto de uma obra de arte, sentimentos conflitantes e ideias originais, sendo sempre propositivo no uso da linguagem das HQs. Vitorelo está na vanguarda dos quadrinhos nacionais e volta a apresentar ao mundo uma obra singular. Com certeza, uma das minhas melhores leituras de 2024.
Compartilho agora a minha conversa com Kael Vitorelo. Papo bom demais, saca só:
“É importante rir”
Acho que dá para dizer que quase todos os seus quadrinhos têm elementos autobiográficos. Mesmo o Kit Gay, você ainda se coloca muito nele. Fiquei pensando se Filosofia do Mamilo não é o seu trabalho mais pessoal. É o seu trabalho mais pessoal?
Acho que é o trabalho mais pessoal, mas, ao mesmo tempo, de forma bastante consciente, né? Quando você coloca, “isso aqui é uma autobiografia”, as pessoas atentam o olhar para essa afirmação. Elas já tomam como verdade tudo que está no livro. Então acho que a gente vai para esse lugar da exposição. Tipo, eu tenho outros trabalhos com elementos autobiográficos, mas acho que feitos de uma forma um pouco mais mascarada. No caso desse livro, acho que eu estava com muita raiva, eu sabia que ia acabar me colocando de uma forma um pouco mais assertiva. Sabendo disso tudo, acho que tive, de forma muito consciente, mecanismos para me preservar um pouco.
Muito conscientemente, modifiquei algumas coisas na história, pensando que é uma autoficção também. E também, apesar de ser uma autobiografia, é uma história meio solitária, né? Tipo, não aparecem, sei lá, familiares, não aparecem amigos meus, porque me incomoda a ideia de expor outras pessoas. Me expor é uma coisa, né? Mesmo falar dos meus pais, eles aparecem brevemente, mas não aparecem os rostos deles. Então acaba sendo uma viagem solitária. O livro é, realmente, em parte, uma jornada solitária, mas tudo isso foi feito de forma muito consciente. Porque me incomoda a ideia de expor outras pessoas, me expor é uma coisa, o livro é meu, eu posso fazer isso. Mas também por ter controle da minha história.
Então, é o meu livro mais pessoal e ele também é um pouco impessoal. Foi uma narrativa bastante controlada, nesse sentido.
O Kit Gay é um livro quase didático que você se coloca como personagem. Nesse novo, fiquei pensando como é extremamente pessoal, mas tem elementos didáticos. Você explica leis e questões políticas, documenta fatos… Como você administrou tudo isso? Como você fez para que essa obra documental também fosse legível e legal? Legal no sentido de ser interessante para os leitores.
Isso foi um medo meu. Sabe, em muitos momentos eu pensei, “porra, isso aqui tá chato” (risos). Mesmo essa parte jurídica, tentei fazer com que ficasse mais compreensível, porque para mim também era muito complicado de entender. Eu fui passando por esses processos, o processo jurídico, o processo de tentar acessar certos serviços de saúde na UBS. Ou mesmo quando fui atrás de serviços particulares, também percebi que tinham certos roteiros a se seguir. Essas coisas também me interessam, de um ponto de vista, até meio obsessivamente: tentar entender como são esses mecanismos, como eles dificultam o acesso a certas coisas para certas pessoas.
E aí, nessa parte jurídica, por exemplo, é uma linguagem muito particular, que dificulta que pessoas comuns consigam entender o que está acontecendo. Nesse caso específico, tive uma reunião com a advogada que me representou e fui tirando dúvidas. Tipo, “ah, se eu entendi bem, a gente partiu para essa estratégia por causa disso e disso”. E aí, às vezes, ela me corrigia. Ela falava, “não, na verdade, na Justiça não é isso que acontece, é por causa disso e disso”. Eu fiz o que a gente está fazendo agora. A gente teve uma conversa de vídeo, eu transcrevi essa conversa toda. Também tiveram coisas que puxei da memória, de conversas do passado e eu fui perguntando para ela, se foi assim mesmo e tal.
Eu sei que nos processos de um quadrinho jornalístico, por exemplo, os jornalistas têm um apego muito maior aos fatos, com o que aconteceu e tal. Eu fiquei refletindo sobre esses processos e… Que bom que eu não sou jornalista (risos). Porque eu tive um desapego maior em relação aos fatos e tal, em relação ao que realmente saiu da boca de algumas pessoas ou não. É claro, eu pedi autorização das pessoas que são nomeadas e todas elas viram antes as páginas em que aparecem, só que certas coisas eu mudei porque achei que servia melhor à história ou porque simplesmente era impossível de se verificar, porque aconteceu no passado e tal.
No caso das dificuldades, tornar o livro didático foi uma dessas coisas, né? Porque no dia a dia, nem sempre as pessoas são didáticas. Mesmo entender as minúcias do processo, enquanto ele estava acontecendo… Por exemplo, eu não li a argumentação do plano de saúde quando ele recusou o meu pedido. Quando fui atrás disso, a advogada me mandou e aí eu tive acesso à íntegra de todos os documentos. Pela primeira vez, enquanto eu estava escrevendo o roteiro do quadrinho, li e foi uma experiência horrível. Foi dando muita raiva, o advogado vai por todos os lados para falar que você não merece. Ele vai por todos os lados mesmo. Por todos os lados mesmo, para falar que não é cabível e tal. É meio doido ver essa narrativa que, de certa forma, foi comprada também pelas juízas e foi acontecendo em paralelo e que eu não tive acesso na época – e que bom, porque acho que teria sido muito doloroso.
São muitas coisas complexas, são muitos níveis de complexidade e tem que ir medindo o que é para cortar. Porque nem faz sentido ter um excesso de informações para quem está lendo a história. E também tem que pensar: “Ok, isso aqui tem que ser minimamente entendível para servir à narrativa e ainda fazer sentido como funcionou o processo”.
“A minha relação com quadrinhos tem mudado nos últimos anos”
Você falou em raiva. Enquanto lia fiquei pensando na sua frustração. Ao mesmo tempo, já dando um spoiler, eu terminei o livro com uma sensação de otimismo da sua parte. Tem algo de contentamento: nem sempre as coisas são possíveis, mas a vida segue e a gente dá sentido às coisas. Como foi para você administrar esses sentimentos? Tem raiva e frustração e… Eu te conheço, não acho você particularmente pessimista ou negativa. Acho que essa obra reflete um pouco essa sua visão do mundo.
É. Eu não gosto de terminar uma história de forma completamente negativa. Ainda mais uma história que… Eu sei que muitas pessoas trans vão ler essa história. Se eu der uma história para elas falando, “olha que merda que é esse mundo, ó fodeu tudo e tal”… Se é para dedicar uma história para essas pessoas, que seja uma história de que as coisas podem dar certo. De um jeito ou de outro, mesmo que não seja do jeito que a gente queria. Acho que isso traduz a minha visão de mundo. Eu acho que geralmente as coisas não saem como a gente gostaria, mas elas saem, uma hora ou outra.
Acho também que tem essa realidade do ProAC, que é um tempo muito limitado para trabalhar uma história. Se eu tivesse mais tempo, acho que eu teria me debruçado um pouco mais sobre a cirurgia em si. No fim das contas é o grande tema, o grande objetivo do livro, e eu acabei colocando só uma elipse de tempo – dando um spoiler aqui também. Mas acho que quis resumir o que é a minha grande visão desse tema todo.
Você falou que esse quadrinho é uma história muito solitária. É muito você expondo as suas vivências durante os últimos anos, um período de muito isolamento para todo mundo, por conta de pandemia e tal. O quanto esse quadrinho representa o que estava passando na sua cabeça ao longo desse período?
Eu sou uma pessoa muito realista. Para a produção do quadrinho, eu sabia que eu tinha um tempo limitado para produzir uma história com começo, meio e fim. Então deixei o que fazia sentido dentro da narrativa. Agora, o que eu estava vivendo é um pouco diferente disso, né? Porque eu sinto que a questão trans, infelizmente, está muito em disputa agora. Está sendo um grande tema de disputa, inclusive da extrema direita. E eu acho que isso foi uma coisa que ocupou muito a minha mente nesse período, de forma negativa, obviamente. Do tipo, eu me preocupei muito com essas questões enquanto estava perseguindo uma coisa que é muito relevante para essas questões também. Nesse meio tempo, também briguei com pessoas por causa disso. Não por causa do meu corpo, necessariamente, mas por causa dessas questões que atravessam o meu corpo, né? Mas também por causa do meu corpo.
Então são coisas que acho que também acabam entrando nessa questão, da exposição da minha vida, que é diferente da questão do personagem Kael, que é uma outra coisa. Acho que essa curadoria do que é relevante mesmo para uma narrativa – com começo, meio e fim – e do que é pertinente para mim, uma pessoa tridimensional e tal, acaba sendo muito diferente no fim das contas. Eu sabia que tinham coisas que com certeza queria tratar no livro (e que estão no livro) e tem coisas que, se eu tivesse o dobro do tempo, talvez tivesse tratado de alguma forma. E outras coisas, com certeza, eu nunca trataria. Porque acho que ainda tenho direito à privacidade (risos) Apesar de tudo, né? Mas são muitas coisas que sinto que, conforme o tempo vai passando, também estão mudando. A forma como elas vão sendo pertinentes. Um dos vereadores, mais votados aqui no estado de São Paulo, a pauta dele é transfobia, tipo “ideologia de gênero”. Então vai mudando como a questão vai sendo tratada na mídia também.
Mesmo com esse distanciamento entre você e o personagem do livro, o quanto que sentar para escrever e desenhar essa obra contribuiu para colocar os seus pensamentos em ordem? Ou atrapalhou, não sei.
Felizmente, eu já estava com isso mais resolvido na minha cabeça quando eu comecei a trabalhar no livro, porque mandei esse projeto para o ProAC e já era uma questão da qual eu já tinha um distanciamento (não muuuito distanciamento). E conforme fui chegando na etapa de realmente começar a produzir, já tinha um distanciamento cada vez mais confortável, felizmente. Então eu acho que foi… Foi bom.
Tentei também tratar de uma forma bastante profissional, para falar a verdade. Acho que era a coisa mais saudável que podia fazer. Acho também que a minha relação com quadrinhos tem mudado nos últimos anos. Antes eu achava, sei lá, que o show tem que continuar, sabe? Mesmo que eu tivesse que virar a noite, ia fazer da forma que tinha imaginado, não importava o que acontecesse, mesmo que fosse prejudicial para a minha saúde. Agora sou mais realista. Acho que o mais importante é que chegue inteiro no fim. Tanto que já tô pensando nos próximos quadrinhos, o que é bom, né? Quer dizer que não morri. Então acho que criei um distanciamento em relação ao quadrinho. Talvez seja até por ser mesmo uma obra mais pessoal que criei esse distanciamento.
Mas, realmente, acho que na hora de levantar algumas questões, senti raiva de novo. Porque algumas coisas eu não sabia que existiam. Tipo a defesa do meu plano de saúde, eu não sabia que era daquela forma. É bastante agressiva. E pelo que conversei com a minha advogada, é padrão, todas as defesas de plano de saúde são assim. Ela não achou nada demais, são todas escrotas.
Foi bom revisitar certas coisas no sentido de algo que acredito muito. Às vezes, essas jornadas são muito solitárias. E o movimento contrário, a busca por uma comunidade ao invés do recolhimento e de não falar a respeito, mas sim falar mais sobre essas coisas, acho que é muito positivo. No fim das contas, foi um pouco isso também que acabei fazendo no ato de falar em uma produção. Porque eu acabei indo falar com Indianarae Siqueira, Kairos Castro, Brune Bonassi, pessoas não-binárias, cada qual com uma questão diferente, e também pelas pessoas que estiverem envolvidas na produção mesmo, mais mão na massa do livro, por ter sido um ProAC.
“Estou em busca de uma resposta, uma resposta visual, uma resposta mais filosófica”
Eu adoro seus desenhos, acho o seu texto muito bom, mas a mágica, sendo um quadrinho, está em como você junta as duas coisas. Você falou que “fechou um roteiro”, me fala dos seus métodos? Como alguém que nunca fez um quadrinho, é muito mais fácil para mim pensar um roteiro como “texto e descrição de imagem” e esse livro é muito fluido, quase como um fluxo de pensamento. E aí, como você faz? Como você fez?
Eu vou te mostrar o meu roteiro. É uma caixa que tenho guardada aqui. No começo, o projeto se chamava Semiótica do Mamilo. Eu mudei. No começo era essa caixa aqui [mostra uma caixa com vários papéis soltos], porque eu escrevia as coisas em vários papéis diferentes, eram papéis que eu achava e fui acumulando. Eram coisas que tinham a ver entre si, então é um pouco de fluxo de pensamento mesmo. Tipo, tenho isso aqui [mostra uma folha com várias anotações], que arranquei de um caderno, anotei nela: “primeira coisa que escrevi, janeiro/fevereiro de 2022”. Eu escrevo tudo em versos, como se fossem poesias. E aí tem até uns desenhos juntos. Vários versinhos.
E aí tem umas outras coisas, desenhos, várias coisas que fui juntando. Tem até uma colagem junto, são coisas que eu nem usei no livro, coisas que estavam relacionadas e que achei que fazia sentido e no final acabei descartando. Tem uns thumbs [rascunhos em miniatura] no meio, de quando eu fui tentando transformar esses versos em imagem. E aí tem muita coisa que escrevi no Google Docs. Eu tinha um documento que de vez em quando pegava e escrevia um pouco mais. Sempre escrevi tudo em versos, até que chegou a hora, “OK, agora tenho que transformar isso em quadrinho”. Chegou um momento em que, tipo, “OK, agora eu tenho que dar imagens para essas coisas”. Algumas coisas eu escrevia e já sabia mais ou menos o que seria a imagem, mas outras não, eu só fui escrevendo (risos), o que se tornou um problema depois. Aí tirei alguns dias para pensar nessas imagens. Daí eu ficava com meu celular aberto nesses documentos do Google e ficava fazendo vários thumbs.
Eram dias que eu ia até algum café e eu ficava: “só vou sair daqui quando eu tiver, sei lá, não sei quantas páginas resolvidas”. Aí eu ficava fazendo os thumbs. Aqui eu tenho thumbs e mais thumbs e é em um tamanho muito pequenininho, porque senão eu começo a desenhar para valer, sabe? Eu perco a noção do tempo e vou desenhando eternamente. Tenho aqui umas páginas que comecei a desenhar maior, comecei a tentar resolver melhor, aí depois me arrependi.
Fiz algo de forma estratégica: trouxe uma convenção autobiográfica mais para o começo, mostrar a infância e tal, porque imaginei que o leitor estaria mais acostumado com a coisa de mostrar a infância. E aí pegaria mais no ritmo, mais no tranco. Aí eu poderia trazer depois a parte que julguei que seria mais chata. Falar de teorias e coisas e tal. Fui tentando trazer isso em doses homeopáticas. Fui tentando fazer esse equilíbrio, com o que eu achava que ficaria interessante visualmente também. Fiz o quadrinho todo no iPad, no Procreate, depois que desenhei os esboços – e os meus esboços estavam meio complexos. Fiz uma consultoria de roteiro com a [quadrinista] Lalo [Sousa]. Ela também fez algumas sugestões bem legais, tipo, “ah, por que que você não pega essa metade dessa página, transforma em uma página inteira, e aí você junta essas duas páginas?”. Ela já tinha esse raciocínio, “você pega essas duas páginas aqui, mexe para cá. E aí resolve tudo”.
Fiquei pensando como deve ter sido editar esse livro. Cortar uma palavra pode quebrar uma página inteira.
Teve muita coisa que editei e escrevi enquanto estava desenhando. Tanto que o roteiro, esse pseudoroteiro, porque ele não é nem um pouco parecido com um roteiro tradicional, a versão original, não dá para usar de guia para o livro, porque ele está muito diferente. Tem muita coisa que fui editando enquanto desenhava no próprio programa de imagem, aí depois tive que editar tudo. Eu não, a Lalo, porque ela me ajudou com isso.
Na minha forma de fazer quadrinho, acho que as duas coisas são muito inseparáveis, a palavra e a imagem. Senão não tem graça. Para ser quadrinhos elas têm que ser muito pensadas juntas. Caso contrário vira, sei lá, só um roteiro com imagens.
Algo que penso quando leio os quadrinhos da Alison Bechdel é como ela vai seguindo com as reflexões dela, deixa as coisas fluindo, aí sempre chega uma hora que ela parece pensar, “opa, espera aí, deixa eu voltar lá atrás”. Parece que ela intencionalmente se perde nas próprias ideias. faz sentido? Isso aconteceu com você? “Espera aí, vou voltar aqui porque estou indo além…”
Sim, teve uma parte que eu fiquei “caramba, cheguei aqui, queria falar de outra coisa, mas não está dando liga”. Não lembro direito mais onde foi, era mais para o finalzinho. Mas até considerei botar mais páginas no livro para ver se dava certo. Acho que tive que redesenhar a página. É confuso desenhar pensamentos. Foi muito cansativo fazer esses desenhos.
E ser simbólico sem ser explícito, né?
Sim, exatamente.
“A gente tem que deixar o cinismo para a direita”
São propostas completamente diferentes, o seu trabalho é documental e preto e branco, mas lembrei da Lynda Barry. Ela defende que desenhar, fazer quadrinhos, é uma brincadeira, uma prática que as pessoas vão perdendo com o tempo. O quanto você se divertiu fazendo esse livro? Sendo que se trata de uma vivência muito pesada para você. Enfim, você se divertiu?
Sim! Eu me diverti. Eu conheci a Lynda Barry por sua causa. Os quadrinhos dela, né? Ela pessoalmente ainda não tive a honra. Mas é uma coisa que tento levar para vida, não esquecer disso. Porque é difícil, né? A gente que tem o desenho como trabalho, é meio foda, transformar em labuta uma coisa que a gente é apaixonado
Fico tentando buscar prazer nisso. Acaba virando muito mundano, desenhar, mas é uma coisa muito bonita de se pensar: no que era uma página em branco, de repente, se materializam muitas coisas diferentes. E foi muito divertido mesmo. Às vezes eu me pergunto: “por que que eu desenho? Será que eu gosto de desenhar?”. E foi muito divertido desenhar. Eu gosto muito de pensar em soluções. Tipo, não sei como fazer uma página, alguma coisa não está funcionando e tento descobrir porque não tá funcionando.
Muita gente fala que é subjetivo, o desenho e o gosto, o negócio da página e do desenho funcionarem ou não, mas não é tão subjetivo assim, né? Porque se você se debruça em cima disso e fica tentando coisas diferentes, tem uma hora que dá aquele estalo e aí, “olha, deu certo!”. Quando eu estava na escola, tinha momentos em que eu me surpreendia, porque eu estava me divertindo resolvendo problemas de matemática. Às vezes me dá essa sensação quando estou desenhando: tô buscando o X (risos).
Estou tentando descobrir alguma coisa, em busca de uma resposta, uma resposta visual, uma resposta mais filosófica. Acho que o desenho é uma ferramenta muito interessante para essas coisas. Acho que me inspiro muito na Lynda Barry também. Porque às vezes me perco, me distancio dessa coisa de desenhar só porque é legal. Fazer quadrinhos me lembra disso: eu quero fazer quadrinhos porque eu gosto, porque eu escolhi fazer. Eu não gosto de fazer quadrinho em um trabalho mais institucional.
Pensando sobre seus trabalhos anteriores, tinha muita experimentação relacionada à forma, aos métodos de impressão. Por mais que o Kit Gay também tenha um formatinho diferente, tanto ele quanto o Filosofia do Mamilo são livros, no sentido mais convencional da palavra. Você acha que acabou dando vazão às suas experimentações nos designs de páginas? Foi a alternativa que você encontrou para brincar?
O que eu queria mesmo… (risos) O que eu queria mesmo era ter usado mais colagem nesse livro. Eu teria gostado muito de ter feito isso, mas aí a gente tem aquela questão do tempo. Eu tinha cronometrado um número de páginas para fazer por dia, eu estava finalizando três ou quatro páginas por dia para ficar tudo pronto a tempo. E aí não dá tempo de pirar muito, infelizmente. Eu queria mesmo, mas quem sabe no próximo?
E me fala da capa? Eu gostei dela, você também disse que curtiu.
Então, essa capa só existe porque o Rogério [de Campos], editor da Veneta, insistiu, insistiu muito. A gente conversou por telefone e ele falou que achava que seria legal uma capa fotográfica. A gente foi conversando, ele exemplificou e nos vimos pessoalmente depois. Ele falou, “ah, se fosse uma capa desenhada por cima da foto?”. E eu falei que já tinha feito uns trabalhos assim, com uma foto antiga que eu usava no Google, mostrei para ele e aí, “nossa, exatamente isso”. Daí beleza, né? Então bora fazer, só que a gente estava com um tempo super limitado. A capa teria que vir ao mundo, tipo, sei lá, em uma semana. Aí o Lui, produtor do projeto, me indicou um fotógrafe, que é Dany. A gente foi no estúdio para fotografar e nos baseamos em umas poses que eu tinha desenhado. A ideia, no começo, era que elas fossem desenhadas. Eram poses quase impossíveis, mas deu certo.
A ideia eram poses que remetessem à ideia de estar dentro de uma caixa. Ou estar saindo de uma caixa, um pouco brincando com a ideia do corpo que não é facilmente categorizado e que também não quer se categorizar. E também tinha a questão de como diagramar essa capa, porque não bastava ter a foto. Eram a foto e as interferências gráficas. Tentei desenhar de forma que tivesse a ver com a identidade visual do livro e os desenhos internos, que tivessem essa conversa, mas ainda deixando claro que é uma foto. Tinha essa questão, né? É um livro que fala da permissão de se mostrar os mamilos (ou não). Eu fiquei refletindo, porque sou eu posando na foto e os meus mamilos são… Oficialmente, eles são mamilos femininos, né? E aí tem essa questão: a gente deixa eles ou não? Uma das propostas de diagramação era com o título escondendo os mamilos. E aí eu fui mostrando umas ideias de capa para vários amigos. Mostrei para uma amiga minha, a Marcela Tamari, ela é diretora de arte em um filme que eu estou participando agora – eu faço assistência com ela. Daí ela perguntou: “você não pensa em desenhar também os peitos?”. Era uma das primeiras versões que eu tinha feito e eu meio que tinha descartado. Aí voltei atrás, por causa dela, e gostei. É muito simbólico, tipo, ter essa interferência gráfica acontecendo em cima de um corpo. Dessa interferência gráfica não se encaixar necessariamente no corpo e ela ser até um pouco agressiva no traçado. Ao mesmo tempo, ela está meio que escondendo os mamilos. É engraçado, quando postei a capa no meu Instagram, recebi um aviso falando que a minha conta podia ser limitada por causa da imagem. E é meio revoltante, né? Porra, nem mostrei os mamilos e eles estão me ameaçando já.
É a coisa do cachimbo, né? Ei, Instagram, isso aí não é um mamilo.
Exatamente! Sei lá, foi só uma ameaça, não tinha nem como questionar. Foi só uma ameaça. Mas é isso, o processo da capa foi super corrido, muito rápido e deu muito certo. Foi uma experiência bem feliz, bem legal.
E me fala, como foi ter o livro em mãos? Qual foi a sensação?
Todo mundo me pergunta isso (risos) É meio surreal, eu nem quis ver muito. Não olhei muito ainda. Eu não estava pronto ainda. E aí vi, é um livro, de verdade, quem diria? É bem maluco, viu? Está aqui, não é fake news.
É uma coisa que eu estou trabalhando, não quero deixar as minhas preocupações serem maiores do que as alegrias. Estou bem feliz com ele prontinho. Ficou bem bonito.
“É bom ter perguntas e é bom não ter respostas também”
Voltando lá para o começo, por que vocês mudaram de Semiótica do Mamilo para Filosofia do Mamilo?
Foi um teste caseiro que fiz, com algumas populações, um teste A/B. As pessoas não sabem o que é semiótica, né? Elas não conhecem a palavra semiótica. Eu sou mestre em Comunicação e Semiótica. Quando me tornei mestre e contei para minha tia… Ela não sabe até hoje, não sei se ela pensa em alguma coisa a ver com Física. Sei lá, eu não sei, tentei explicar. Quando você explica que é o estudo dos signos, piora tudo. Acho que é uma questão de ser um título mais acessível.
Também, tipo, nas últimas feiras que participei, muitos professores vieram falar comigo, para contar que eles têm alunos que são trans. E às vezes são alunos novos. Fiquei pensando nisso, sabe? Tipo, vai que eles vão numa livraria e falam, “putz, qual que é o nome daquele livro?”. Aí eles não conseguem lembrar. Fiquei pensando nisso. Prefiro abrir mão de um título do que largar mão dos leitores. Seria uma coisa muito pequena para eu fazer questão.
Essa procura dos professores é por causa do Kit Gay?
É por causa do Kit Gay. É engraçado, tem muitos professores que levam o Kit Gay clandestinamente para os próprios alunos. Acho que toda feira que vou tem pelo menos um professor que vem me contar isso. E tem muitos professores que me pedem conselhos, falam, “nossa, tem um aluno que é trans”.
E aí eles me contam: tem uma questão com a escola ou tem uma questão com os pais, geralmente é uma das duas coisas. É super difícil, né? Porque é sempre um dilema que esse professor está vivendo, um professor que está de mãos atadas. Porque se é uma briga com a escola, o professor não pode fazer muita coisa. Se é alguma briga com os pais, a escola também não consegue fazer muita coisa. São coisas que fico sabendo nas feiras.
Sobre o título, eu gosto de Filosofia do Mamilo porque dá um tom bem-humorado para a coisa toda.
É importante rir.
E a sua pose na capa é bem-humorada também. Eu gosto disso, como a capa reflete esse tom sóbrio, mas divertido, do livro.
É engraçado, as pessoas que já leram, geralmente me falam, “nossa, esse seu livro é mais sério”. Não sei se é porque elas tem como repertório recente o Kit Gay, que é mais leve e tal. Ou se esse livro é muito mais pesado do que eu imaginava. Eu não sei.
Ele é mais sério e ele é triste. É triste porque expõe o que o mundo é. Acho que a beleza dele está na forma como você encerra. Eu saí dessa leitura otimista. Seria justo você encerrar dizendo que o mundo é uma merda, mas me senti aliviado. Não que eu espere alívio de uma obra de arte, mas fiquei bem por você – e pelo mundo também.
Eu penso que a gente tem que deixar o cinismo para a direita. Porque nem sempre me vem de uma forma natural ver as coisas com otimismo. Na verdade, isso exige certo esforço para mim, mas acho que é uma teimosia importante. Até como sobrevivência mesmo, porque senão é difícil ver sentido nas coisas. Se não for por essa esperança… Nem precisa ser uma esperança por algo que não é palpável. Na minha experiência mesmo, muitas pessoas foram gentis comigo. Eu espero que esse livro também seja gentil para alguém.
Eu queria que esse final também fosse um paralelo, ainda que não um duplo, de outros encontros que tive, que são retratados no livro, com pessoas transeuntes que fizeram questão de interagir comigo fazendo essa pergunta: “ah, você é homem ou mulher?”. Ou fazendo algum tipo de comentário desse tipo. Talvez nem sempre fosse com a intenção de me ofender, talvez fosse com uma ingenuidade legítima. Acho que quando você é adulto, ou mesmo quando você é criança, às vezes você tem uma pressa de ter as respostas que você nem pensa na pergunta. Eu queria trazer um final em que a dúvida também possa ser o bastante. É bom ter perguntas e é bom não ter respostas também.