Papo com Lauro Larsen e Carlos Junqueira, os editores de Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias: “O Código mutilou a indústria no seu momento de maior explosão criativa”

O trabalho de Lauro Larsen e Carlos Junqueira na restauração e edição dos quadrinhos presentes na coletânea Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias resultou em um dos projetos editoriais mais interessantes publicados no Brasil em 2017. Como expliquei na minha matéria sobre o álbum para o UOL, a obra é uma coletânea de HQs norte-americanas de ficção científica produzidas entre 1939 e 1954, quando foi instaurado o catastrófico Comics Code Authority – código de autocensura focado em prezar pelo bom mocismo e a civilidade do conteúdo publicado nas HQs da época.

A coletânea publicada pela Mino presta um serviço imenso resgatando clássicos e várias obras esquecidas, mas de um vanguardismo ímpar mesmo nos dias de hoje. Publico a seguir a íntegra da minha conversa com os dois idealizadores do álbum. Recomendo antes uma lida na minha matéria pra você sacar ainda mais sobre o projeto. Aí depois volta aqui pra ler o que os editores disseram da obra. Papo bem massa e instigante em relação ao futuro da Coleção Incendiária. Ó:

“Era um período de ebulição criativa, de busca selvagem por chocar e surpreender os leitores”

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Como surgiu a ideia desse projeto?

Carlos Junqueira: Como colecionador fascinado pela Era de Ouro dos Quadrinhos, estou sempre procurando relançamentos desse tipo de material, principalmente no mercado norte-americano. Reparei que em muitas dessas edições as imagens pareciam simplesmente retiradas de páginas escaneadas da internet e impressas em papel. Por achar que conseguiria fazer algo melhor, comecei a desenvolver um meio de restaurar essas revistas e tentar deixar a arte com a melhor qualidade possível – e posso dizer que ficaram melhores do que as arte originalmente publicadas, por causa da qualidade de impressão daquela época. Assim que vi os primeiros resultados da restauração, pensei na hora que precisava lançar este material impresso! Como estaria apresentando artes com mais de 60 anos para um público novo, decidi pelo preto e branco. Devido à colorização utilizada na época, muitos dos desenhos foram prejudicados. Mostrei estas páginas para meu amigo e também colecionador Lauro Larsen e ele pensou a mesma coisa, precisávamos lançar esse material! A partir daí desenvolvemos a ideia de montar uma coletânea e tentar lançar via financiamento coletivo, mas assim que apresentamos o projeto para a Janaína de Luna, ela topou na hora lançar o livro pela Mino.

Lauro Larsen: O projeto partiu das experimentações do Carlos Junqueira com restauro de arquivos digitais. Assim que comecei a ver os resultados sabia que o destino natural seria montar uma antologia, o que eu não tinha previsto era a magnitude que o projeto iria tomar. Eu realmente não tinha dado conta do tanto de trabalho que envolveria a feitura. É bom salientar que o projeto do livro e totalmente nacional, não tínhamos um livro importado de base. Desde o recorte para a escolha das histórias, passando pela adaptação dos abres das HQs, tudo foi feito com o maior perfeccionismo.

Outro desafio inédito, pelo menos para mim, era como dar um destino editorial para o livro. Eu já não faço parte do conselho editorial da Mino, o que significou que quando começamos esse projeto eu ainda não sabia como ia conseguir publicar. A primeira ideia seria o Catarse, mas eu nunca fui um entusiasta deste tipo de financiamento e achava que sem o apoio de uma editora não conseguiria o patamar de excelência que eu via como única opção para o livro.

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Qual vocês consideram ser a principal importância de resgatar esse material?

Carlos Junqueira: Acredito que a principal importância deste trabalho está no resgate de artistas desconhecidos ou mesmo famosos, mas em começo de carreira naquela época, que produziram uma quantidade enorme de histórias, que hoje em dia são raríssimas, e apresentá-los para uma nova geração de leitores.

Lauro Larsen: Esse material representa o ápice da Era de Ouro, quando imaginação e experimentação ainda eram a regra do jogo. É importante para todo leitor ou profissional de HQ conhecer essas histórias, elas ajudaram a fundar o quadrinho moderno.

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Vocês estabeleceram dois recortes: pré-Comics Code e histórias do gênero de ficção científica. O que motivou esse filtro?

Carlos Junqueira: Acredito que antes do Comics Code os artistas tinham total liberdade de expressão sob o que estavam produzindo, isso caracterizou as artes e os enredos dessas histórias produzidas pré-Code e depois se perdeu. Além disso, é um material muito difícil de se encontrar por conta da grande quantidade de revistas que foram destruídas, literalmente queimadas, por serem apontadas como causa da ‘delinquência’ da juventude daquela época. Quase todos os relançamentos com material desta época gira em torno do tema terror, mas a quantidade de quadrinhos produzidos de ficção científica durante esse mesmo período foi muito marcante e vem sendo negligenciada pelas editoras até hoje. Juntando a isso tudo a nossa grande paixão pessoal pelo gênero, foi fácil chegar nesse filtro.

Lauro Larsen: Sabe, eu acho que aconteceu algo bem singular nesse período de 10 ou 15 anos que precede o Código. É uma mistura bem inusitada, em primeiro lugar existia o Macartismo, uma caça às bruxas promovida por pessoas e senhoras católicas com muito pouco a fazer. Em segundo lugar, existia um anseio desmedido dos donos das editoras e estúdios por produzir material em massa seguindo modismos de gênero e sem muita preocupação com o conteúdo desde que conseguisse atrair o máximo de leitores possível. No meio disso tudo, eu acredito que grande parte dos autores que produziam quadrinhos somente como um modo de sustento começou, a ver o real potencial de suas artes e importar suas ideias e seus desejos. Eles pouco se importavam se era uma aventura ambientada no espaço ou em uma cripta… Era um período de ebulição criativa, de afirmação das revistas em quadrinhos que se afastavam do seu primo rico, as tiras de jornais. Era uma fase de busca selvagem por chocar e surpreender os leitores e tudo isso é muito fascinante. São trabalhos que continuam a influenciar até hoje.

A escolha do tema de ficção científica é bem mais simples. Tínhamos que começar de algum lugar e, realmente, você não encontra tantas antologias de ficção como as de terror e até de romance. A ideia era trazer um material relevante, até mesmo para leitores acostumados a comprar essas antologias importadas.

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Na apresentação do trabalho vocês falam como conseguiram os scans dessas obras em domínio público em sites focados em preservação da história dos quadrinhos. Em quais condições estavam esses scans? Eles eram feitos a partir das edições originais? Quanto tempo levou pra recuperar todas essas HQs presentes no livro?

Carlos Junqueira:
A maioria destes scans possui uma ótima qualidade para se ler no computador ou em tablets, mas quando impressas ficam serrilhadas. Se você reparar bem, a maior parte das revistas sendo impressas hoje, por diversas editoras diferentes, vem do mesmo scan, apenas com tratamentos de imagem diferente e, em sua grande maioria, as editoras mantém as revistas com suas cores originais. Foi graças ao trabalho dos responsáveis por esses sites e de colecionadores que emprestam suas revistas para serem escaneadas que todos estes relançamentos estão sendo possíveis. Sem esse material online disponível, seria impossível pensar em um projeto como o nosso, devido ao alto custo para se adquirir as revistas originais, sem falar no tempo necessário para encontrá-las.

Do começo do processo até o produto final que temos agora, já se passaram quase dois anos de tentativas e erros até chegar ao melhor resultado possível, sempre trabalhando em cima do material disponível online. Cada página é tratada manualmente para remover toda a cor e restaurar todas as imperfeições, chegando a demorar até uma hora por página, dependo da qualidade do scan. Para chegarmos às 31 histórias do livro, cheguei a tratar mais de 150 HQs, que foram sendo filtradas até chegar à seleção final.

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Eu contei o nome de 23 autores nas biografias do livro. Há alguns artistas mais conhecidos, como Alex Toth, Jack Kirby e Joe Kubert, mas outros que imagino que poucos leitores conheçam. Desses nomes mais desconhecidos, há algum trabalho que chamou a sua atenção por algum motivo especial?

Carlos Junqueira: Para mim, a qualidade artística do trabalho produzido nesta época pelo Basil Wolverton, que depois ficou mais conhecido por seu trabalho de humor para a revista Mad, estava muito além do que vinha sendo feito por seus companheiros. Se você folhear as revistas originais em que estes trabalhos aparecem, não tem como comparar as outras histórias contidas nas publicações com as dele. Ele estava anos luz à frente do que estava sendo produzido.

Lauro Larsen: Fletcher Hanks, sem dúvidas. Ele tinha uma imagética selvagem, um destempero alucinado que impressiona até hoje. Não é de se surpreender que muitas de suas historias foram republicadas pela notória revista RAW, sem contar os livros dedicados a ele pela Fantagraphics.

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Eu fico muito impressionado com a criatividade não só dos enredos como também das artes e dos designs de páginas dos quadrinhos do livro. Você consegue fazer um comparativo entre esse conteúdo produzido até 1954 e ficções científicas e HQs norte-americanas do nosso presente? É generalista falar de todo um gênero e até de uma indústria, mas você vê muita influência dos trabalhos desses artistas em publicações recentes? Vê algum tipo de retrocesso ou avanço em relação a o que esses quadrinistas faziam e o que é feito nos dias de hoje?

Lauro Larsen: Bom, podemos dizer que esse período e a fundação do que se tornou o quadrinho moderno, em todos os graus. Você tem gente como Jack Kirby, Steve Ditko e Joe Kubert, que praticamente pavimentaram todo o quadrinho mainstream americano. Não existiria o mercado de super-heróis sem Jack Kirby. Por outro lado, você tem caras como Basil Wolverton e o Fletcher Hanks e fica claro o impacto que eles têm num quadrinho mais underground americano. Caras como o Charles Burns tem muita influência destes autores.

É complicado a questão do retrocesso. É claro que o Código mutilou a indústria no seu momento de maior explosão criativa e o cenário seria muito diferente sem ele, mas as coisas são como são. E muito dessa base foi usada na indústria de super-heróis da Era de Prata.

Carlos Junqueira: Acredito que muitas dessas artes poderiam estar sendo produzidas hoje em dia, de tão avançadas que eram para a época em que foram lançadas – e creio que a maioria dos leitores acreditaria se falássemos que são criações dos dias atuais.

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Qual balanço você faz em relação ao conteúdo que vocês selecionaram para o livro? Quando você vê todo esse material reunido, qual você considera ser o maior legado desses artistas para a linguagem dos quadrinhos?

Carlos Junqueira: Estou muito contente com o resultado final do livro, acho que conseguimos chegar onde queríamos: um produto de qualidade, feito com muito respeito pelos artistas envolvidos e principalmente respeito pelos fãs. Acho que muitos descobrirão gênios completamente desconhecidos e, assim como nós, vão se apaixonar pelos seus trabalhos.

Lauro Larsen: Não tem como quantificar o legado destes artistas para o quadrinho moderno. Acho que o livro dá um escopo bem completo do que era produzido nesses anos selvagens e eu não podia estar mais contente com todo o trabalho, acho que vai agradar tanto a jovens leitores quanto a leitores hardcore.

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O livro sai com o selo Coleção Incendiária. Quais são os planos de vocês para essa coleção?

Carlos Junqueira: O plano é conseguir chegar o mais longe possível (risos) Vai depender da recepção dos leitores. O que posso adiantar é que além de terror e ficção científica, esse período ainda teve uma quantidade enorme de histórias de outros gêneros, como western, super-heróis, romance e etc. Durante esses dois anos de projeto já restaurei mais de duas mil páginas, de diversos outros temas. Quem sabe o que pode vir por aí? Western? Terror? Só o tempo dirá…

Lauro Larsen: A Coleção Incendiária é auto-explicativa, né? A ideia é conseguir apresentar o maior número de gêneros que permeavam o quadrinho pré-Code, sempre com todo esmero e cuidado que essas obras merecem. E vou te falar, com o barulho que o anúncio do projeto conseguiu, estou bem confiante que não vai demorar muito para vermos um segundo volume da coleção.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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