Papo com Luli Penna, autora de Sem Dó: “O que mais me impressionou foi a diferença entre a liberdade sexual dos homens e das mulheres, brutal naquela época (e hoje)”

A quadrinista Luli Penna pretendia contar em quadrinhos a história da vinda de seu avô e do seu tio-avô espanhóis para o Brasil. Ela já havia desenhado a saída dos dois da Europa e estava trabalhando na travessia do Oceano Atlântico quando mudou de ideia. O foco do projeto então passou a estar em suas tias e o cenário passou a ser a São Paulo dos anos 20. Sem Dó trata do despertar de um romance em uma cidade em transformação, contrapondo os costumes conservadores da época com a modernização da capital paulista.

Impressiona no trabalho de Luli Penna principalmente seu pano de fundo. A ambientação do álbum é aprofundada com ilustrações retratando a arquitetura art decó de São Paulo na década de 20 e com reproduções de anúncios publicitários e textos jornalísticos da época. “Quando comecei o Sem Dó já colecionava livros sobre a história de São Paulo, obras com fotos antigas e cartões postais. Durante o trabalho a coisa foi só aumentando”, conta a autora em entrevista ao blog.

Sem Dó é o quadrinho de estreia da autora e primeira HQ nacional da editora Todavia. A obra será lançada amanhã (31/10), às 19h30, na Livraria da Vila (R. Fradique Coutinho, 915) em São Paulo. Recomendo o livro pela relevância dos temas abordados por Luli Penna e pela beleza de sua arte. Na entrevista a seguir, ela fala sobre a origem do projeto, a construção da HQ e sobre alguns dos tópicos abordados no quadrinho. O papo contém alguns spoilers da obra, então acho melhor guardar a entrevista pra depois da leitura da HQ, combinado? Segue a conversa:

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Você se lembra do instante em que teve a ideia de criar o Sem Dó? Qual é a origem do livro?

Eu estava desenhando a história do meu avô e do meu tio-avô, filhos de um pai anarquista radical que migrou para o Brasil no finalzinho do século XIX. Já tinha desenhado a vinda da família da Espanha pra cá, a travessia do Atlântico, mas estava ainda com o roteiro muito à deriva. Nesse meio tempo, continuava pesquisando, lendo sobre a época e principalmente conversando com parentes sobre a vida no Brás do começo do século passado, o dia-a-dia, etc. Numa dessas conversas, ouvi a história das irmãs dos dois. Aí pensei, “para tudo, não quero falar dos homens famosos da família (meu avô e meu tio avô se tornaram arquitetos importantes nos anos 50), quero falar dessas duas tias obscuras”!

O que mais me impressionou na história delas, não dá pra falar muito claramente sobre isso porque estragaria a leitura da HQ, é a diferença entre a liberdade sexual dos homens e das mulheres, brutal naquela época (e hoje). Há um elemento na história que é o exemplo máximo dessa disparidade: o dispositivo, digamos assim, que facilita a vida de prazeres dos homens é exatamente o mesmo que põe fim aos prazeres das mulheres. Foi exatamente quando essa prima dos meus avós me falou sobre isso que decidi desenhar o Sem Dó. Não ficou claro, né? É que, se eu disser exatamente do que se trata, entrego demais a história

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Me chamou muito a atenção seu trabalho para retratar a São Paulo do início do século XX. Em relação à arquitetura da época, que tipo de pesquisa você fez pra chegar a essa ambientação da obra?

Quando comecei o Sem Dó já colecionava livros sobre a história de São Paulo, livros de fotos antigas e cartões postais. Durante o trabalho a coisa foi só aumentando. Comprei muita coisa, emprestei, consultei muitos sites, andei muito pelo centro velho. E usei vários fotogramas de filmes mudos. O Limite, do Mårio Peixoto, por exemplo, um filme mudo brasileiro absolutamente maravilhoso lançado em 1931, eu vi muito. Vários quadrinhos foram copiados de lá (o retrós que a Lola usa enquanto costura, os sapatinhos dela saindo de casa e a própria idéia de passar um filme dentro da história foram coisas que eu copiei do Limite).

Não há nenhuma referência no Sem Dó à data exata em que se passa a história, mas tentei me concentrar no final da década de 20 para a pesquisa, nas revistas e no ano de 1927 para a pesquisa nos jornais. Mas dei umas roubadas… Há um anúncio de bonde dos anos 40, há vitrines anteriores à década de 20, enfim. Procurei me nortear por algumas datas específicas mas não me furtei a pegar coisas de outros carnavais.

“Esse mundo impresso era um luxo das elites, como, aliás, continua sendo. Imagina o número de pessoas que têm dinheiro pra comprar um álbum de HQ hoje no país…”

E sobre os anúncios publicitários e as matérias de jornais da época? Você trabalhou com alguma bibliografia específica?

Sempre gostei de folhear revistas antigas, Tenho uma coleção que herdei justamente de uma das tias avós em que se baseia o Sem Dó. Além disso, tive a sorte de começar a HQ num momento em que muita coisa já estava disponível na internet. A [revista] Scena Muda, boa parte das [revistas] ParaTodos, Cigarras, América estão disponíveis em vários sites. Isso facilitou muito a pesquisa. Digo o mesmo em relação aos jornais.

Mas, como os protagonistas do Sem Dó são duros, eles estão sempre espiando esses anúncios e matérias na publicação do passageiro ao lado, no trem ou no bonde. No caso da Lola, ela ganha do patrão uma pilha de revistas enorme, que ela e a mãe não se cansam de folhear. Esse mundo impresso era um luxo das elites, como, aliás, continua sendo. Imagina o número de pessoas que têm dinheiro pra comprar um álbum de HQ hoje no país…

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Aliás, é interessante não apenas seu cuidado em relação à arquitetura, às vestimentas e aos anúncios publicitários, mas também no que diz respeito à postura das pessoas. As interações dos protagonistas são marcadas por muitas sutilezas, como troca de olhares, decorrentes de imposições sociais da época. Foi desafiador pra você pensar com a perspectiva dessa época?

Isso tudo foi feito com base em histórias que ouvi. A cena da Lola, por exemplo, correndo pra janela do quarto ao chegar em casa pra ver o paquera com quem ela acabou de trocar olhares no bonde. Essa cena se passa exatamente como minha avó me contou que eram os namoros da época. Troca de olhares na rua; homem segue mulher pela cidade até descobrir onde ela mora; homem fica andando de um lado ao outro da calçada; homem tira o chapéu pra mulher quando passa embaixo do lampião… Hoje em dia, primeiro você dá um match no Tinder, depois sai pra rua. Lá naquela época, conhecer o cara, dar uma olhada pra ver se rola o match e todo o processo da paquera, envolvia as ruas da cidade.

Hoje as pessoas saem de suas garagens, vão até a garagem de um shopping, fazem compras, passeiam e voltam pra casa sem se relacionar com as ruas. Lá naquela época, as coisas aconteciam muito mais nas ruas, embora já estivesse previsto ali naquela São Paulo antiga esse império do automóvel. Na cena em que eles vão ao cinema Santa Helena, há um quadrinho em que aparece a Praça da Sé com metade da catedral construída e a praça toda tomada por carros estacionados. A praça era um estacionamento! Embora o Santa Helena seja hoje a estação do metrô e a praça um calçadão, sabemos como os pedestres são maltratados nessa cidade de carros. Por isso também que eu pensei no contraponto Estação da Luz-Rodoviária antiga. São Paulo começando no trem e acabando na rodoviária, no congestionamento total.

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Eu fiquei curioso em relação à construção do quadrinho. Você não trabalha com um gride fixo e insere páginas de jornais e anúncios publicitários durante a HQ. Você trabalhou com um roteiro?

Minha primeira ideia foi contar simultaneamente a história do Sebastião nas páginas esquerdas e a da Lola nas páginas direitas… Fiz isso durante um tempo, mas felizmente parei a tempo de não ser internada. Daí voltei prum grid que eu queria que fosse fixo o tempo todo pra dar mais a impressão de filme mudo. Mas as poucas pessoas pra quem mostrei os desenhos iniciais foram unânimes num comentário: “não é melhor dar uma variada nisso aí, não?” Daí, comecei a variar e achei legal, tomei gosto pela coisa.

Quanto ao roteiro, já comecei a desenhar com ele pronto. Tinha muitas dúvidas sobre o final, mas o grosso do roteiro estava definido desde o início. Mesmo porque, o enredo do Sem Dó é muito simples. O que mudou muito, o tempo todo, em todas as páginas, foi a sequência dos quadrinhos, os enquadramentos, etc. Se o livro tiver três páginas que foram esboçadas da maneira em que foram impressas, é muito. Assim que finalizava uma página e a via lá, prontinha, toda caprichada no nanquim, recortava tudo, mudava os quadrinhos de lugar, refazia, inseria um anúncio, remontava tudo de novo. Posso dizer que o material utilizado foi papel, nanquim e tesoura.

Nesse processo, os anúncios foram uma parte importante tanto da composição da página quanto do sentido da história, mesmo que ninguém perceba. No início, na cena do trem ainda, por exemplo, a primeira leva de anúncios que o Sebastião vê no jornal do passageiro ao lado, funciona como um resumo da história toda que está por vir. Ninguém nunca vai pensar nisso, mas foi assim que eu escolhi cada um deles. No final, cada anúncio que aparece faz um contraponto com os anúncios iniciais, etc. Mas isso é viagem minha, é como um prazer secreto de fazer algo que só a gente sabe.

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No começo do quadrinho, na cena da chegada do trem, você desenhou algumas formas circulares sobrepostas. É uma solução gráfica singular, pra mim representa tanto o som quanto a fumaça do trem. Você pode falar um pouco de como chegou nesses símbolos?

Que legal que você achou isso! Essa cena é um bom exemplo de como é possível fazer uma coisa muito legal sem virtuosismo. Fiz mil esboços desses quadrinhos tentando desenhar a fumaça do trem chegando à estação. Não conseguia uma fumaça legal de jeito nenhum até que, rasbiscando distraída no papel, comecei a desenhar esses arcos que são típicos da arquitetura e do mobiliário art deco da época e PLIMMM!!! Achei que aquilo parecia fumaça e, ao mesmo tempo, as engrenagens do trem, o que dava justamente essa impressão daquela máquina enorme se aproximando. Não pensei exatamente no barulho mas no funcionamento das engrenagens. Amei que você ouviu o barulho delas…

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O quadrinho é ambientado na época em que o cinema estava surgindo. Há uma cena com a protagonista utilizando um praxinoscópio e a chegada do trem me remete a um diálogo com o filme dos irmãos Lumière. A sua opção por não fazer uso de balões e colocar os diálogos em quadros pretos semelhantes às telas de filmes mudos do início do século passado também são uma referência às origens do cinema?

Sim! O Sem Dó se passa exatamente nessa época em que o cinema ainda era uma novidade, um espetáculo grandioso. Era imenso o prazer que as pessoas sentiam ao ver as imagens se movimentando, não só no cinema mas na grande variedade de engenhocas ópticas da época. Por isso me demorei tanto na cena em que a Lola faz uma pausa no trabalho para girar um zootrópico (o praxinoscópio é derivado dele. O zootrópico tem fendas na roda giratória, por onde o espectador vê as imagens que parecem se movimentar. O praxinoscópio – adoro esses nomes esdrúxulos – tem espelhos no eixo central que refletem as imagens da roda giratória). O prazer de desenhar uma HQ e tentar colocar as personagens em movimento é muito parecido com esse prazer de girar um zootrópico da Lola. Acho que esses brinquedos ópticos que aparecem no livro, a ida ao cinema do casal e a cena em que eles vão fazer um retrato no Parque da Luz (esse momento da captura da imagem) falam muito não só da época mas do trabalho todo de fazer uma HQ.

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Nós estamos vivendo um período de conservadorismo crescente. As últimas páginas do quadrinho apontam para um período de mudança que soa de alguma forma mais otimista e progressista. Como você vê o nosso futuro?

Nosso futuro? Torpe e melancólico.

Essas últimas páginas não estavam previstas. Passei muitos anos fazendo essa HQ. Quando comecei, o país ainda não tinha levado a surra do 7×1, não tinha sofrido um golpe, não estava descendo esse poço fundo. Quando fui chegando ao final da HQ, que ainda só se passava no começo do século passado, o país já estava mergulhado nessa depressão e eu achei que, mesmo com o final nada feliz da protagonista, havia uma sensação de resistência ali, uma sensação de nostalgia de uma cidade antiga e linda etc. Comecei a achar que seria mais interessante dar uma nota menos redentora, menos grandiosa pra coisa, e comecei a pensar num final mais melancólico, mais torpe. Foi aí que comecei essa espécie de posfácio nos anos 70, tentando um paralelo com o começo: Estação da Luz/Rodoviária velha; gramofone/gravador cassete; luvas de pelica/mini-saia; cotação do café/projetos desenvolvimentistas na Amazônia.

Nessa seleção de anúncios, o mais importante pra mim é o anúncio final, em que se lê: “CHEGA DE LENDAS! VAMOS FATURAR!”. Quando encontrei esse anúncio da SUDAM oferecendo empréstimos para quem quisesse explorar a Amazônia com esse slogan infame, pensei: taí o final. Era como se essas cenas dos anos 70 nos mostrassem o beco em que a gente já estava se metendo lá atrás naquela São Paulo antiga. Na verdade, tudo que estou falando é uma simples cena em que a Pilar guarda em cima do armário a caixa de onde veio tirando fotos e cartões postais, vai até a rodoviária antiga e pega um ônibus. É muita viagem minha achar que, com essa meia dúzia de anúncios que ela vê no trajeto, eu tenha conseguido falar tudo isso. Mas foi o que eu pensei. Em todo caso, é por isso que o quadrinho final é aquela cena da cidade de São Paulo inteiramente congestionada e sem-saída.

Ainda sobre o desencantamento do final, há algo mais além dos anúncios e do engarrafamento final. Há também o fato de que a grande heroína não consegue seguir adiante mas a irmã acuada, sem graça e meio torpe consegue. Isso tudo acaba desembocando nesse final que não tem nada de redentor nem de empoderador, mas que me pareceu um boa maneira de falar da nossa própria torpeza geral. No fim, quando finalmente descobrimos que Pilar é a narradora e que ela resistiu a tudo, fica um gosto meio ruim na boca de ver uma resistência que se dá não pela coragem mas, ao contrário, pela conformação e por pequenos gestos nada heróicos (refiro-me por exemplo ao fato de ela entregar a foto da irmã com o namorado para os pais). Acho que nos falta esse reconhecimento de que, afinal, tanto de um ponto de vista geral de projeto da nação quanto de um ponto de vista mais microscópico, estamos todos meio envolvidos na grade torpeza geral.

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3 respostas para “Papo com Luli Penna, autora de Sem Dó: “O que mais me impressionou foi a diferença entre a liberdade sexual dos homens e das mulheres, brutal naquela época (e hoje)””

  1. Avatar de Caíque
    Caíque

    que bom ter lido essa entrevista. obrigado, Ramon. obrigado, Luli.

    1. Avatar de Ramon Vitral

      feliz que tenha gostado, Caíque!

  2. Avatar de Tarso do Amaral

    Obra-prima a HQ. Maravilha a entrevista. Obrigado e parabéns.

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