A quadrinista Luli Penna adaptou para a linguagem dos quadrinhos o poema Milágrimas, escrito por Alice Ruiz e transformado em música por Itamar Assumpção em 1990. Como canção, além da versão de Assumpção, também foi interpretada por cantoras como Zélia Duncan, Ná Ozzetti, Anelis Assumpção, Alzira E. e outras.
“Sempre quis desenhar uma letra de música e topei na hora porque amo essa letra”, me diz Luli Penna, autora do excelente Sem Dó (todavia), sobre o convite da editora Isabel Malzoni para transformar Milágrimas em quadrinhos para editora Caixote.
Acredito que o elemento básico da boa adaptação é a autonomia de existência em relação à obra que a inspirou. Mesmo seguindo à risca a letra de Ruiz e dialogando com vários dos elementos da música de Assumpção, a obra de Luli Penna independe de qualquer contato prévio com esses dois trabalhos que a inspiraram para funcionar.
Bati um papo com Penna na última semanas de 2020 sobre o desenvolvimento de Milágrimas. Ela falou de seu empenho para criar “rimas gráficas”, expôs suas impressões sobre os trabalhos de Alice Ruiz e Itamar Assumpção, comentou sua leitura recente de Akira e entregou um pouco sobre sua próxima HQ longa. Papo massa, saca só:
“Sempre quis desenhar uma letra de música”
Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. Faltam só alguns dias para o fim do ano, então acho que já dá para perguntar: como foi esse seu 2020 de pandemia? Como a pandemia afetou sua rotina de trabalho?
Acho que o pior do confinamento foi ver o país sendo estropiado diariamente pelo governo bolsonaro e seu projeto de genocídio e destruição. A impotência diante desse quadro desolador foi o pior da pandemia porque de resto meu dia-a-dia não mudou muito. Sempre trabalhei em casa. Claro que tudo ficou mais difícil sem poder contar com coisas tipo mandar o filho pra padaria no dia em que o trabalho aperta. Mas acho que o pior mesmo foi assistir o país sendo destruído com apenas uma panela e uma colher de pau na mão pra protestar pela janela.
Qual foi o ponto de partida do Milágrimas? Como surgiu a ideia de adaptar a letra da Alice Ruiz?
A ideia do livro foi da Isabel Malzoni, da editora Caixote, que tem toda uma relação muito linda e forte com essa música. Ela me ligou perguntando se eu topava transformar a letra em quadrinhos. Sempre quis desenhar uma letra de música e topei na hora porque amo essa letra.
“O que mais gosto em Milágrimas é que há uma aceitação muito linda de que viver é doído”
O que você pode contar desse processo de adaptação? Como foi transformar essa letra em HQ? Como foi o desenvolvimento desse projeto?
Minha ideia principal era que os desenhos pudessem rimar visualmente, que eles tivessem algum elemento gráfico que funcionasse como rimas, rimas gráficas. Acho que consegui isso em alguns momentos mas acho que poderia ter deixado esse recurso bem mais explícito.
Outra coisa que eu fiz questão foi não deixar que o milagre da música se resolvesse numa saída tipo Cinderela, com príncipe na porta da donzela chorosa.
Aliás, você se lembra do seu primeiro contato com esse trabalho da Alice Ruiz? Foi com alguma apresentação de algum músico específico? O que você mais gosta nessa letra?
Acho que essa letra marcou muita gente. No meu caso, ouvi pela primeira vez na voz do Itamar, que foi um artista muito importante na minha vida de frequentadora do teatro Lira Paulistana, na Teodoro Sampaio, onde o conheci .
A Alice Ruiz entrou na minha vida depois do Itamar. O que mais gosto em Milágrimas, e em Socorro, que parece uma letra prima da Milágrimas, é que há uma aceitação muito linda de que viver é doído. Há um acolhimento da dor. Acho precioso isso numa época como esta em que, a cada pôr do sol, as pessoas correm pra tirar uma selfie mostrando como estão incrivelmente felizes. A pandemia deu uma amenizada inicial nesse modo blogueirinha da alegria permanente que habita a todos nas redes sociais, mas as pessoas inventaram muito rapidamente um cabeçalho qualquer (apesar da pandemia, etc) pra introduzir mensagem de gratidão pela varanda gourmet com pôr de sol mágico.
“O Itamar me marcou profundamente durante a adolescência”
Sobre essas várias interpretações da letra, você tem alguma preferida? Tem alguma particularidade em alguma dessas versões que chama mais a sua atenção?
Sempre vou preferir a do Itamar, que foi um artista que me marcou profundamente durante a adolescência.
Lembro como gostei da forma como você retratou a fumaça do trem no início Sem Dó. Cheguei a comentar com você como achei uma sacada ótima. Vi muitas soluções do tipo se repetindo no Milágrimas. Imagino que adaptar uma música, com tantas metáforas, tenha exigido mais de você em relação a soluções gráficas. O que você pode contar dessa experiência?
Vitral! Muito legal ler isso porque juro que pensei em você quando desenhava isso, justamente porque me lembrei do seu comentário sobre o Sem Dó. Sim, como disse aí pra cima, minha ideia era compor rimais gráficas que fossem se repetindo ao longo do livro e esses círculos foram dando corpo a isso. O que eu acho legal é que no Sem Dó você sugeriu que meus círculos de fumaça lembravam as engrenagens do trem e sugeriam também a ideia do barulho da coisa, não apenas a imagem. Desenho sonoro. Amei isso.
No Milágrimas, tentei criar isso pelo movimento circular do disco e dos olhos girando nesse movimento permanente da música e da dor que vai acabar escorrendo pelos olhos.
Aí você pode falar um pouco sobre a costura que fez entre os guarda-chuvas da primeira página com os cabelos da personagem e dos discos dela?
Foi isso mesmo. A ideia era que algo girasse o livro todo, como um disco, os olhos e a dor que escorre como lágrimas no final.
Qual o balanço que você faz desse trabalho de adaptar essa letra/música? Foi mais difícil ou mais fácil do que você imaginou quando começou esse trabalho?
Demorei muito pra dar a forma inicial. Não veio fácil. Tentei começar várias vezes mas não progredia. Pela dificuldade que é criar uma personagem, um roteiro e tal, mas sobretudo porque tinha de conter a própria ideia da musica e tal. Além dessas dificuldades habituais, o trabalho me pegou num momento especialmente difícil, num momento em que estava muito sobrecarregada de trabalho, das dores da pandemia em geral e de uma separação recente que ainda estava doendo bastante. A separação poderia ter me ajudado, já que eu era a própria personagem, mas não é assim que funciona, né? rs Pra resumir, achei inicialmente que seria muito fácil porque a letra já existia, não precisaria criar o texto, mas as próprias dificuldades de adaptação acabaram se mostrando mais difíceis que eu imaginava.
“Akira é uma dose de imagens antidepressivas fortíssima”
Acho injusto perguntar sobre trabalhos futuros quando um artista acabou de lançar um trabalho novo, mas não resisto… Você já tem alguma próxima HQ em mente?
Estou já há bastante tempo fazendo uma segunda graphic novel. Comecei toda uma história que se passava no Rio De Janeiro, um projeto antigo que eu tinha de situar algo no Copacabana Palace, esse hotel incrível que inaugurou a própria ideia de Copacabana como praia. Mas o Brasil do Bolsonaro me tirou inteiramente a razão de ser dessa ideia e eu abandonei tudo (já tinha um roteiro e muitas páginas esboçadas). Comecei algo inteiramente novo e de caráter pessoal mas o roteiro está bem arrastado ainda. Como a vida. O mundo.
Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido nos últimos tempos? Teve alguma obra que te ajudou a encarar esses meses mais recentes de pandemia?
Cara, eu amei ler Akira, que eu nunca tinha lido. Acho que a Amanda Miranda também comentou isso outro dia, que estava lendo o Akira. O Guilherme Wancke também. Foi louco ver que havia mais gente lendo isso no mesmo momento. Não sei o que rolou pra eles, preciso até perguntar mas, no meu caso, essa HQ me deu um gás, uma vontade muito forte de continuar fazendo HQ, criando novas formas e tal. Aquele espetáculo todo, sabe?, de grids, movimentos, enquadramentos maravilhosos. Aquilo é uma dose de imagens antidepressivas fortíssima. Recomendo.