Há dois eventos marcados para o lançamento do álbum Notas do Underground, do quadrinista Pedro D’Apremont: o primeiro no próximo sábado, dia 15 de junho, na Loja Monstra, em São Paulo, e o segundo no sábado seguinte, dia 22 de junho, na Itiban Comic Shop, em Curitiba. Na capital paulista, D’Apremont estará na companhia do editor da obra e do selo Pé-de-Cabra, Carlos Panhoca, da artista Arame Surtado e do editor Lobo Ramirez – que estarão lançando a revista Ketacop pelo selo Escória Comix. Já no evento no Paraná, também estará sendo lançada a nona edição da revista Weird Comix, do quadrinista Fábio Vermelho.
As 44 páginas coloridas de Notas do Underground reúnem pela primeira vez em português as sete histórias em quadrinhos publicadas por D’Apremont no site americano da revista Vice protagonizadas por músicos, fãs de música e figuras pouco usuais do punk e do metal.
“Desde a adolescência que sou apaixonado por metal e punk, toquei em bandas, contribuí pra blogs de resenha de discos, fui em centenas de shows, etc”, conta o quadrinista em conversa com o blog. “Me amarro em explorar microgêneros estranhos, discos raros e subculturas associadas a todo tipo de música e lugar, então esse tema de música underground sempre me foi muito querido”, explica o autor em relação ao tema da coletânea publicada pelo selo Pé-de-Cabra.
Reproduzo a seguir a íntegra da entrevista com D’Apremont, na qual ele fala mais sobre o desenvolvimento das histórias que estão impressas em Notas do Underground, expõe algumas de suas técnicas e influências e comenta a sua paixão pelos trabalhos do quadrinista Peter Bagge. Papo bem massa, saca só:
“Resolvi que ia voltar a fazer histórias curtas sobre coisas que eu gosto, não importa o quão de nicho elas são”
Eu queria saber como o Notas do Undergound teve início. A revista é uma coletânea das histórias que você publicou na Vice, certo? Mas como começou esse projeto com a Vice? Eles te passaram um tema ou você que sugeriu? Quanto tempo durou a parceria com eles? Que tipo de retorno você teve dos editores e dos leitores?
Eu e o Gabriel Góes já fazíamos a série Vania pra Vice desde 2016 (que também foi compilada e saiu como um gibi pela Ugra Press em 2017, Anexia é um Paraíso). Eu sempre gostei de fazer HQs pro portal deles porque o editor da seção de quadrinhos, o Nick Gazin, tinha uma preferência por histórias curtas e experimentais, o que criava uma espécie de laboratório onde nós podíamos testar diferentes formatos, estilos, narrativas e ver o que funcionava bem ou não. O problema é que como o Vania era um projeto a quatro mãos, as historias demoravam a sair e dependiam muito da disponibilidade não só minha como a do Góes também. Entre uma HQ do Vania e outra, a ideia de começar uma série paralela só minha, com historias mais soltas e sem necessariamente personagens recorrentes, foi fermentando na minha cabeça.
Acho que fazer quadrinhos sobre música foi uma sugestão da Cynthia Bonacossa na época em que a gente dividia um estúdio. Por volta de 2016 e começo de 2017 eu andava super frustrado com meu trabalho. Me dediquei a vários projetos que já não me davam prazer em produzir e ao que tudo indicava, não iam muito a lugar nenhum. O mercado pra ilustração estava (e continua) péssimo e os poucos trampos freelancer que eu pegava eram bem merda. Desenhar, de repente, não era mais divertido e não me dava nenhum tesão. Pra tentar reverter essa situação resolvi que ia voltar a fazer histórias curtas sobre coisas que eu gosto, não importa o quão de nicho elas são. Desde a adolescência que sou apaixonado por metal e punk, toquei em bandas, contribuí pra blogs de resenha de discos, fui em centenas de shows, etc. Mas também sempre ouvi mil coisas diferentes e me amarro em explorar microgêneros estranhos, discos raros e subculturas associadas a todo tipo de música e lugar, então esse tema de música underground sempre me foi muito querido.
A impressão que eu tenho é que o editor começou a gostar mais dos meus quadrinhos com o tempo haha. No começo ele criticava muito meus roteiros, mas à medida que o tempo foi passando meus enredos foram ficando mais sólidos, mais parecidos com uma história com início, meio e fim e não só uma piada, e senti que ele as aprovava com mais entusiasmo. Eu não faço a menor ideia se os leitores gostaram desde que a Vice acabou com a sessão de comentários. Mas mais gente começou a me seguir e acompanhar meu trabalho desde que eu comecei essas hqs, o que é um bom sinal.
A série se encerrou no começo desse ano, quando a sessão de quarinhos do portal da Vice foi abandonada. Uma pena, tinha muita gente boa publicando lá. RIP.
Você tinha um ponto de partida em comum para cada uma das HQs? Digo, algumas me soam como ficção, outras parecem ter elementos autobiográficos e outras são autobiográficas ao pé da letra. Você mantém algum caderno de ideias para essas histórias? Você conversava com amigos sobre histórias ambientadas no universo que é retratado na série?
Na verdade o único ponto de partida era que as historias tinham que se relacionar de algum jeito com o tema central da série. Fora isso era meio vale-tudo mesmo, o que foi bom, pois me fez experimentar com vários tipos de narrativa. Às vezes me dava na telha contar de um bar horrível que eu frequentava e fechou por causa de uma briga de faca, às vezes eu imaginava uma HQ em que uma banda de Black Metal se perdia na floresta enquanto gravava um clipe… A princípio eu usava tudo que dava espaço pra contar uma historia com começo, meio e fim em poucas páginas. A graça da série nesse primeiro momento era justamente me soltar e fazer as coisas sem muito filtro.
Depois de um certo tempo percebi que as HQs estritamente autobiográficas eram as que eu menos gostava de produzir. Sempre fica um pouco aquela dúvida no final de “será que eu só acho essa historia interessante por que ela aconteceu comigo?” ou: “será que essa é uma historia engraçada de se ouvir num bar mas não funciona como quadrinho?”. As minhas histórias fictícias quase sempre têm uma situação que aconteceu comigo ou com amigos e conhecidos misturada no meio, então acabei aposentando as auto-biográficas stricto sensu mais pra frente. Até porque parece que todo mundo produz quadrinhos autobiográficos hoje em dia. Eu mesmo já estou bem enjoado do gênero.
Em geral quando tenho uma ideia pra um roteiro novo eu a anoto num caderno. As primeiras anotações são sempre ideias super soltas, mas a partir delas eu vou dando carne à historia até ela parecer bem firme. Eu costumava evitar falar sobre minhas ideias antes de ter terminado meus quadrinhos, muito por medo de zicar mesmo, mas alguns dos roteiros dessa série eu discuti com o Nick Gazin antes. Primeiro porque se ele não gostasse do meu quadrinho ele não era publicado e eu não era pago haha. Mas depois vi que as críticas que ele fazia aos meus roteiros estavam me ajudando a fazer quadrinhos cada vez melhores e passei a curtir muito essa fase do processo.
“Tenho gostado cada vez mais de escrever tudo antes de fazer o planejamento visual, mas ainda sou muito inquieto, fico querendo desenhar logo”
Você pode contar um pouco sobre os seus métodos de produção dessas HQs? Você chegava a finalizar um roteiro antes de começar a desenhar? A coisa saia toda ao mesmo tempo? Você seguia algum padrão específico na produção desses quadrinhos?
As primeiras historias eu fiz sem um roteiro escrito, só storyboard. Eu sempre faço storyboards porque eles me ajudam a planejar tudo bem mais rápido e ter uma ideia do tamanho da HQ no final, mas eu tenho pouquíssima paciência pra sentar em frente ao computador e ficar escrevendo no Word. Um pouco mais pra frente eu passei a escrever roteiros “de verdade” porque as HQs foram ficando mais compridas e verborrágicas, e organizá-las direto no storyboard ficou muito difícil. Tenho gostado cada vez mais de escrever tudo antes de fazer o planejamento visual, mas ainda sou muito inquieto, fico querendo desenhar logo.
Eu também queria saber sobre os materiais que você usa. Você usa tinta e papel ou trabalha com o digital?
Tirando as cores (que são feitas no Photoshop) faço tudo do jeito mais tradicional possível. Uso pincel, bico de pena, nanquim e canetinhas.
Na hora de finalizar meus desenhos eu sigo o mesmo método do Peter Bagge: pincel nos personagens e objetos moles ou fofos e bico de pena/caneta nos objetos mais retos ou sólidos. É meio estranho mas funciona bem.
Ultimamente eu tenho substituido as canetinhas por bico de pena, porque elas ficaram muito vagabundas e caras. A tinta dessas UniPin apaga muito quando você usa a borracha, e isso é um inferno quando você vai escanear a página.
“Aposto que se algum outro cartunista visse meu processo do começo ao fim ia ficar chocado com o quão tosco ele é”
Você pode falar sobre a paleta de cores? Acredito que exista uma paleta predominante nas histórias, certo?
Sim, todas as historias seguem mais ou menos a mesma paleta. Como o tema que conecta todas as historias é muito solto, achei que eu precisava compensar isso fazendo elas com visual bem coerente entre si.
Eu sou um péssimo colorista e não me lembro exatamente como cheguei nessa paleta. Mas tenho quase certeza que comecei copiando as cores de algum quadrinho ou ilustração que eu gosto e fui ajustando os tons e valores de cada cor individual até chegar em algo que me agradava e diferia o suficiente do material original no qual eu me inspirei. Eu não tenho uma educação formal em artes plásticas ou design, então muitas vezes faço as coisas na base da tentativa e erro. Aposto que se algum outro cartunista visse meu processo do começo ao fim ia ficar chocado com o quão tosco ele é. Também apago tudo mil vezes e encho a página de corretivo.
Aos poucos fui fazendo pequenas mudanças na paleta, mas ela permaneceu praticamente a mesma desde o começo da série. Fui acrescentando sombra e focos de luz nas últimas histórias e diferentes tonalidades de acordo com a hora do dia, mas sempre fico cabreiro de tentar complicar demais as coisas e estragar tudo. Em geral trabalho melhor com paletas bem reduzidas.
A capa dessa edição é sensacional. Como você chegou nela? Foi difícil definir essa capa?
Pô, valeu! Haha
Eu fiz várias capas antes de chegar nessa. Uma delas acabei usando de 4ª capa. O desenho ficou legal e tudo mais, mas achei que tinha alguma coisa faltando. Mandei pro Nick Gazin e pedi a opinião dele. Ele disse que o que faltava algum elemento mais humano. Não tem nenhuma pessoa no desenho, só uns amplificadores quebrados, com várias garrafas, latas de cerveja e bitucas de cigarro em cima. Ninguém ia se identificar com essa imagem.
Na versão final eu quis dar uma ideia de movimento, de quebradeira, bem forte. Uma das primeiras coisas que me vieram à cabeça foi um mosh gigante e alguém pulando do palco. Aí foi questão de olhar um monte de referências (umas fotos do Fugazi tocando ao vivo, principalmente) e tentar descobrir o jeito mais dinâmico de desenhar a capa. Depois disso foi tranquilo.
O título originalmente ia ser no estilo de um logo de banda metal extremo, completamente ilegível, mas me convenceram de que era uma péssima ideia.
“Talvez a minha coisa favorita das HQs nacionais são aquelas histórias longas dos Pirata do Tietê, tanto pelo desenho insano quanto pelos enredos”
Eu vejo no seu traço e nas histórias que você conta uma relação com autores americanos que se propõe a narrar eventos banais e corriqueiros – e torná-los de alguma forma interessantes e/ou engraçados. Tô pensando nuns quadrinistas-cronistas como o Daniel Clowes e o Charles Burns, por exemplo. Essa galera é influência pra você?
Sim, sou fã dos dois! Vivo relendo os livros do Clowes que eu tenho aqui em casa e nunca me canso deles. Sou muito influenciado pelas coisas da Laerte e do Angeli da época da Circo e Chiclete com Banana também, que tinham essa coisa de misturar o dia a dia na cidade de São Paulo com situações bem absurdas e escrotas. Talvez a minha coisa favorita das HQs nacionais são aquelas histórias longas dos Pirata do Tietê, tanto pelo desenho insano quanto pelos enredos.
Mas meu favorito de todos os americanos em relação a roteiro é o Peter Bagge. Quase todo ano eu releio Hate de cabo a rabo, e cada vez mais me impressiona como cada personagem ali dentro parece real. Quanto mais tempo passa mais me identifico com o Buddy Bradley e é meio assustador o quanto que eu passei por situações parecidas com a de alguns personagens depois de ter lido Hate.
É dose, sou muito paga-pau da “geração Fantagraphics” mesmo.
E eu fiquei pensando também na relação do livro com os primeiros quadrinhos do Joe Sacco. Acho que você não se propõe a fazer jornalismo, mas tá ali registrando e narrando o que viu – e também tem o termo “notas” no título, presente constantemente nos quadrinhos do Joe Sacco. Ele também foi/é uma influência pra você?
Na verdade não. Eu li O Derrotista quando estava na faculdade e gostei bastante, mas os quadrinhos dele nunca mexeram muito comigo.
O título do meu gibi é uma brincadeira com o Notas do Subterrâneo do Dostoiévski. Nas traduções em português às vezes ele aparece como “Diário do Subterrâneo” também, mas preferi usar a palavra ‘notas’ porque tem uma conotação mais informal que se relaciona bem com as historias curtas. Além do mais, ‘diário’ ia fazer parecer que o gibi inteiro é composto por historias autobiográficas.
No que você está trabalhando atualmente? Você tem algum livro novo nos seus planos?
Estou terminando uma HQ do Harry e do André, aqueles dois personagens adolescentes que aparecem algumas vezes no Notas. Não sei ainda o que vou fazer com ela, nem aonde essa história vai ser publicada, já que eu não estou mais na Vice e fechei meu Tumblr. Veremos qual espaço virtual passarei a habitar!
Espero nos próximos meses terminar um projeto grande que eu negligenciei completamente no último ano, mas não vou falar muito aqui pra não zicar. E também quando você fala que vai fazer uma coisa as pessoas vão cobrar depois, é mó chato.
A última! Você pode recomendar algo que esteja lendo /assistindo/ ouvindo no momento?
Esses dias quase que só tenho assistido/lido mangás e animes dos anos 80. Finalmente peguei Berserk pra ler uns meses atrás e já virou uma das minhas HQs favoritas. O negócio é desgraceira atrás de desgraceira e tem um ritmo absurdo. Cada volume é um disco de Death Metal em forma de gibi, dá vontade de fumar um cigarro depois de terminar de ler. Fora isso tenho acompanhado JoJo’s Bizarre Adventure religiosamente, mas tudo que o mundo menos precisa agora é de mais alguém falando de JoJo.
De música não tenho descoberto nada muito novo… Tem um DJ de House que eu tenho ouvido sem parar quando estou desenhando, chamado Bill Jobs. Se alguém quiser uma recomendação de um som bem obscuro, ouça Circle Of Ouroborus. Principalmente um split deles com o Drowning The Light que chama Moonflares. Essa banda é criminalmente desconhecida, e eu acho ela muito única. Escute sem saber o que esperar.
Pode uma recomendação de videogame também? Joguem Nidhogg.