Papo com Powerpaola, autora de Todas as bicicletas que eu tive: “Ao andar de bicicletas me permito conhecer o mundo e me conhecer dentro dele”

Todas as bicicletas que eu tive é o terceiro título solo da quadrinista equatoriana-colombiana Powerpaola lançada no Brasil. Antes foram publicados os excelentes Vírus Tropical (Nemo) e QP (Lote 42). Também editado pela Lote 42, com tradução de Nicolás Llano Linares, o novo álbum da autora está entre as minhas melhores leituras no ano.

Entrevistei a artista e transformei esse papo em matéria exclusiva aqui para o blog. Você lê sobre a trama de Todas as bicicletas que eu tive, a produção da HQ e as reflexões de Powerpaola em torno de quadrinhos e bicicletas clicando aqui. Compartilho a seguir, a íntegra da minha conversa com a autora:

“Bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras”

Você pode falar um pouco sobre o ponto de partida de Todas as bicicletas que eu tive? Houve algum estímulo em particular para você dar início à criação desse livro?

Na minha cabeça existem alguns livros que eu tenho em mente e que quero fazer nesta vida, depois eles acabam virando outra coisa, mas isso não importa. As bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras e principalmente nestes últimos anos da minha vida, por isso era algo que insistia em ser desenhado e escrito. Um dia eu contei à Maitena que estava começando a desenhar uma história em quadrinhos sobre todas as bicicletas que eu havia tido e ela me emprestou um livro da Cecilia Pavón que tinha um conto lindo chamado Todas as bolsas que eu tive e me animou ainda mais a ideia de continuar. Justo naquela época vi que ela estava dando uma oficina de poesia, então entrei em contato e estive na sua oficina durante todo 2020.

Você conta no livro sobre a primeira bicicleta que teve, mas você se lembra do instante em que compreendeu a liberdade que uma bicicleta poderia lhe dar e as novas possibilidades que elas te dariam?

Sim, eu me lembro claramente, tinha 11 anos e vivia em Quito com a minha mãe. Saí para o parque La Carolina com a minha bicicleta e senti que podia trocar de direção e ir ainda mais longe, me perder um pouco pela cidade, fazer o percurso que fazia no ônibus do colégio. Foi maravilhoso experimentar isso. Nunca na minha vida eu tinha ido tão longe sozinha, comprei umas bolachas deliciosas com chips de chocolate na volta e levei para a minha mãe para que não me desse uma bronca por não ter seguido o combinado inicial que era ir até o parque.

Você já viveu em várias cidades e países. A sua relação com bicicletas durante a infância e a circulação permitida por elas influenciaram de alguma forma essa sua vida nômade?

Não sei se foram as bicicletas em si que me influenciaram, mas com certeza foram elas que me permitiram conhecer profundamente as cidades em que vivi. Termino fazendo um desenho com elas nesse labirinto que é a própria vida. 

Mais do que um quadrinho sobre bicicletas, Todas as bicicletas que eu tive me soou mais como uma obra sobre encontros e desencontros proporcionados por movimento/fluxo/circulação. O que bicicletas significam para você?

São o dispositivo que permitem me deslocar em total liberdade, me tornar dona de mim, ir aonde eu quero ir, ir quando eu quero ir, o mais parecido com a felicidade e a independência. 

Tem uma fala no início do livro que você diz: “Quando você desenha e escreve, compreende os eventos que acontecem na vida”. Os seus quadrinhos são relatos muito pessoais em primeira pessoa de várias experiências da sua vida. Qual a importância que desenhar e escrever tem na sua vida? Além do aspecto profissional e financeiro, como fazer quadrinhos contribui para a sua compreensão da sua vida?

O desenho e a escrita têm me ajudado a inventar meu próprio universo, a me relacionar com os demais, a estar imersa no fazer, me apropriar da vida, da minha vida, e é parecido com andar de bicicleta, eu decido aonde eu quero ir, me permito conhecer o mundo e me conhecer dentro dele. 

“Sempre me proponho usar técnicas diferentes em cada livro”

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

Imagino que sejam tempos estranhos para pessoas nômades como você. A pandemia limitou a nossa circulação e há um conservadorismo crescente ao redor do mundo, muito simpático a fronteiras e contrário ao fluxo de pessoas. Como você viveu os últimos anos?

Tem sido os anos mais difíceis da minha vida, mas meus amigues, o desenho e a bicicleta têm me sustentado. Me salvaram.

Eu tenho algumas curiosidades em relação aos aspectos técnicos desse seu novo trabalho. Ele me parece muito mais pensado e elaborado, exigindo mais reflexões, do que que o QP, por exemplo. Você chegou a fechar um roteiro antes de começar a desenhar? Você teve alguma rotina ou método de trabalho em particular para esse livro?

Claro que sim, menos mal! O tempo passa e a prática faz com que a gente melhore (espero).

QP eram quadrinhos que eu fiz enquanto aprendia a fazer quadrinhos (2006-2012). Em geral eu não trabalho com um roteiro prévio, sei que isso seria o correto, mas me entedia profundamente. Eu não faço quadrinhos para sobreviver economicamente, mas sim emocionalmente, e parte de me perder e experimentar com o texto e a imagem tem relação com esse prazer. Este livro foi o que me deu mais trabalho, já que fiz muitas coisas ao mesmo tempo: fiz todos os desenhos do filme Vírus Tropical, um livro chamado Terra Larga com Pablo Besse, onde assinamos como No tan parecidos; e ainda tinha que trabalhar como ilustradora. No meio tive um acidente, padeci uma doença… Então não tive rotina, fora encontrar a maneira de fazer o livro e terminá-lo. Estive em várias oficinas de escrita e no final consegui terminá-lo numa residência em Tigre (cidade da Argentina), fui desenhar e escrever sozinha durante uma semana no meio do Delta sem internet, somente assim consegui chegar ao fim. 

E você pode me falar, por favor, um pouco sobre suas técnicas? Quais materiais você usou? Houve algum elemento novo em relação aos seus trabalhos prévios?

Sempre me proponho usar técnicas diferentes e novas em cada livro, técnicas que tenham relação com a história e a narrativa. Por exemplo, fiz este livro todo com tintas preta, amarela e vermelha, algo completamente novo para mim, queria que fosse como se a bicicleta tivesse pisado uma poça cheia de lama e tivesse desenhado tudo com os pneus. 

Eu fiz Vírus Tropical com rotring, que era algo que vinha usando e podia contar tudo sem medo de errar e precisava algo de consistência e clareza ao contar todas essas histórias. QP eu fiz com técnicas diferentes, como te contei antes, foi minha maneira de aprender a fazer quadrinhos, então testei tudo. Em Todo va a estar bien desenhei com lapiseira 0.3, queria que fossem histórias mais lentas e queria ir devagar, me deter a observar e o leitor também. E em Nos Vamos, foi um diário de viagem e me propus a usar uma cor diferente em cada país que visitava. 

“Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem”

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

Você fez uso de cores em algumas páginas pontuais de  Todas as bicicletas que eu tive, mas trata-se de um livro quase todo em preto e branco – assim como QP. Você pode me falar um pouco, por favor, sobre a sua relação com o preto e branco? Como você acha que o preto e branco contribui para as suas histórias?

QP na verdade tem cores, mas imprimir um livro colorido é muito caro. Fazer uma história requer de muito tempo, reclusão e paixão. Eu adoraria fazer um quadrinho totalmente colorido, mas se em preto e branco eu demoro aproximadamente quatro anos, não consigo imaginar quanto demoraria em fazer colorido. Além do mais, os livros terminam ficando muito caros e eu quero que um adolescente possa comprar. De toda forma, minha grande influência é o comic underground dos anos 90, com muitos detalhes e feitos todos em preto e branco, adoro o que dá para criar com pouco. 

O que mais te interessa hoje em termos de quadrinhos, tanto como autora quanto como leitora?

Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem do comic em todo sentido, gosto das boas histórias e um desenho que também esteja me contando algo mais, que tenha uma linguagem própria e não se pareça aos demais. 

Qual sua memória mais antiga relacionada aos quadrinhos?

Meu pai me passando as tirinhas do jornal em Quito aos domingos de manhã. Especialmente Calvin e Haroldo, Mafalda, Garfield e Periquita.

Você poderia me dizer o que você mais gostou de ler, assistir e ouvir no momento?

De quadrinhos: Mouse in Residence de Anna Haifisch e Inframundo de China Ocho. Vendo: Um concerto de Helado Negro e outro de Das Flüff. Mas especialmente viajar de bicicleta com meu amigo Joris pela Alemanha.

Você está trabalhando atualmente em algum projeto específico?

Sim, sempre estou trabalhando ainda que não esteja trabalhando. Justo estava numa residência de literatura em Berlim (LCB) trabalhando em algo novo, mas ainda está em processo de pesquisa, então prefiro não falar muito disso.

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

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