Papo com Richard McGuire, o autor de Aqui: “Eu sempre penso na possibilidade de que todas as coisas estejam acontecendo ao mesmo tempo, que o tempo é apenas uma ilusão”

Ficarei muito surpreso caso saia um quadrinho maior do que Aqui no Brasil em 2017. Maior em termos de qualidade, beleza, singularidade, ousadia e experimentação. O trabalho de Richard McGuire ganha edição em português três anos após seu lançamento nos Estados Unidos e 25 anos após a publicação da HQ do próprio McGuire que o inspirou a produzir a obra recém-publicada pela Companhia das Letras. Entrevistei o autor e transformei a nossa conversa em matéria para o UOL.

Recomendo uma lida no quadrinho, nos textos do Érico Assis sobre o livro lá no Blog da Companhia das Letras, na resenha da HQ no Guardian assinada pelo Chris Ware, depois no meu texto pro UOL e em seguida volta pra cá e leia a íntegra da minha conversa com o quadrinista. O que McGuire faz em Aqui é mágico. É a linguagem dos quadrinhos em seu estado mais elevado. Segue a entrevista:

“O ritmo do livro foi cuidadosamente concebido, mas a natureza não-linear da história convida o leitor a passear pelo livro, não é necessário uma leitura de página a página”

A primeira edição de Aqui foi publicada em 1989 em uma edição da Raw. Você lembra do momento em que teve a ideia de criar esse projeto e de explorar as ideias que gostaria nessa HQ?

Foram algumas etapas. Eu tinha acabado de me mudar para um apartamento, isso em 1988, e estava pensando em quem havia morado lá antes de mim. Eu tive a ideia de fazer um quadrinho que ficava indo e voltando no tempo. Eu escolhi o canto de uma sala porque poderia funcionar como uma tela dividida, como você vê de vez quando em filmes, de forma que o lado esquerdo fosse para frente e o lado direito para trás. Fiz alguns esboços simples. Depois um amigo me visitou e contou do computador dele com esse programa chamado Windows, foi quando ficou claro que eu poderia usar essa estrutura de janelas para mostrar múltiplas perspectivas do tempo simultaneamente.

Eu queria saber como foi a produção dessa versão expandida do livro. Você trabalhou com um roteiro? Eu li que você fez algumas pesquisas para recriar algumas características relacionadas ao passado do local no qual a casa está instalada, certo?

Demorou um tempinho para que eu descobrisse como expandir essa história de seis páginas para um livro. Na primeira versão não era um local real, depois eu decidi ambientar o livro na casa em que eu cresci. Eu estava resistindo à ideia de fazer algo autobiográfico, porque eu não queria que fosse um livro sobre mim. Mas eventualmente eu concluí que a minha família precisava ser o coração do livro. Esse lugar fica em New Jersey, a 45 minutos de Manhattan. Eu comecei fazendo pesquisas nessa área. Eu pesquisei sobre as tribos nativo-americanas que viveram lá por milhares de anos, sobre os dinossauros que viveram lá antes deles, os movimentos glaciais anteriores a isso e sobre a formação do planeta. Eu reuni todas formas de imagens e também busquei muita coisa nos meus álbuns de família. Eu tinha cadernos repletos de informações e historinhas engraçadas que queria incluir. Eu fiz uma linha do tempo em um rolo de papel e pendurei nas paredes do meu estúdio. Eu comecei a acrescentar notas e datas. Eu fiz pesquisas sobre o futuro, li sobre as mudanças climáticas e robôs, tudo e qualquer coisa que acreditava ser relevante. Era como um grande quebra-cabeças. No começo eu pensei que deveria ser focado em alguns personagens e cheguei a escrever diálogos, mas logo percebi como aquilo estava ficando diferente do original, o diálogo estava tornando tudo mais lento. Precisava ser movimento, porque era exatamente sobre isso, passagem do tempo, não era sobre personagens e diálogos. O próprio tempo era o protagonista e eu queria ele em ação como um rio revolto.

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As cores têm um papel muito importante em Here. Como você chegou nas paletas de cada período em que estava retratando?

Enquanto eu reunia as imagens comecei a apreciar as paletas de fotografias desbotadas, a química era diferente em cada período, então elas envelhecem de forma distinta. Eu comecei a usar essas paletas de cores como um sistema de codificação para a passagem do tempo, mas eventualmente eu desisti dessa ideia por ela ter acabado se tornando limitante. Eu tomei consciência que dependendo do momento do dia e do clima mesmo um quarto branco poderia mudar para todos os tipos de cores. A medida que o projeto continuava e os meus prazos ficavam cada vez mais curtos eu busquei ajuda de algumas pessoas. Eu tive muita sorte de conhecer a Maelle Doliveux, uma ilustradora muito talentosa, também cartunista e criadora de fantoches. Ela me ajudou muito com sugestões de ideias para as cores.

Eu li uma entrevista na qual você fala sobre a influência do Art Spiegelman no seu trabalho. Ele tem essa definição de quadrinho como tempo no espaço. Quando eu li Aqui pela primeira vez eu lembrei não apenas desse conceito, mas também de uma fala da Susan Sontag na qual ela diz que “o tempo existe para impedir que tudo não aconteça ao mesmo tempo…e o espaço existe para que tudo não aconteça com você”. Explorar essa relação entre tempo e espaço era um objetivo seu em Aqui?

Se não fosse pelo Art eu não teria feito quadrinhos. Eu era um fã da revista RAW, fui a uma palestra que ele deu sobre a história dos quadrinhos e foi isso que me fez tentar fazer alguma coisa. Nesse evento o Art falou que quadrinhos são essencialmente ‘diagramas narrativos’ e foi essa ideia que me fez pensar. Eu amo essa fala da Sontag. Eu sempre penso na possibilidade de que todas as coisas estejam acontecendo ao mesmo tempo, que o tempo é apenas uma ilusão. Que o tempo como dimensão é como uma luz refratada, apenas uma forma fragmentada de ver os acontecimentos.

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Você alterna no Aqui algumas páginas muito simples com outras repletas de informações. Algo muito particular do livro é como ele intercala vários ritmos distintos. Era importante para você que essa transformação constante do ambiente determinasse um ritmo de leitura inconstante pro leitor?

Essa composição foi deliberada, para mim o ritmo tem papel semelhante ao de uma trilha sonora. As páginas iniciais são muito vazias e a ação é apresentada de forma muito lenta, com a inclusão de alguns poucos painéis. Ganha velocidade a cada página, com alguns Crescendos e algumas pausas. O texto pode ser lido como um poema, tudo como apenas uma voz mesmo que venham de várias pessoas. O ritmo do livro foi cuidadosamente concebido, mas a natureza não-linear da história convida o leitor a passear pelo livro, não é necessário uma leitura de página a página.

Você tinha como objetivo com o livro propor uma reflexão pro leitor em relação a o que é possível se fazer com a linguagem das histórias em quadrinhos? Era importante pra você oferecer ao leitor uma nova perspectiva do que pode ser compreendido como uma HQ?

A graça da leitura é ver como as coisas se relacionam e fazer conexões à medida que a leitura avança, na esperança de que seja revelado cada vez mais a cada releitura. Na versão eletrônica do livro é possível escolher por um modo randômico, os painéis e os cenários se misturam e as novas combinações sugerem novas conexões e acabo ainda sendo surpreendido. Eu acrescentei algumas animações que são programadas para ocorrer ocasionalmente porque achava que seria divertido algo que parecesse estar ocorrendo em ‘tempo real’, mas sempre estive consciente de que não era um filme, não há efeitos sonoros ou música, eu tentei manter ao máximo como uma experiência de leitura. Eu amo livros e não tenho preferência pela versão no papel ao invés da eletrônica. O livro é um meio perfeito, ele não requer nenhuma outra fonte de energia além do seu cérebro.

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Alguns momentos de Aqui me soam como um sonho. Não um sonho que eu tive, mas como a minha mente funciona quando estou sonhando. Isso faz sentido pra você?

Eu entendo essa conexão com o estado de sonho, mas a nossa consciência diária quando estamos acordados não é muito diferente. Nós estamos sempre nos adiantando em nossos pensamentos, constantemente fazendo associações com memórias, um relance da infância, a lembrança de uma conversa ou de algo que você leu, ou uma cena de um filme. Os nossos sentidos são inundados com tantas informações que construímos constantemente o nosso mundo a partir de milhões de fragmentos.

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Qual a memória mais antiga que você tem de quadrinhos na sua vida?

Eu tinha dois irmãos mais velhos que liam quadrinhos de super-heróis, mas eu nunca fui muito interessado. Eu gostava do Peanuts do Charles Schulz. Eu lia as tiras diárias e colecionava as coletâneas, era imensamente popular na época. Eu gostava de Nancy do Ernie Bushmiller, o design era tão simples e forte. Eu lembro de cortar e guardar as edições. Eu também lembro de cortar os painéis e rearranjá-los criando as minhas próprias histórias. Eu lembro de comprar um livro muito grande do Krazy Kat do George Herriman na loja de um museu quando tinha cerca de 11 anos. Eu fiquei totalmente abalado por ele, era um dos meus livros favoritos e ainda é um dos meus quadrinhos favoritos de todos os tempos.

Além de quadrinista você também é músico e tem experiência em diferentes campos de atuação. Como você se define profissionalmente?

Eu penso em mim como um artista e me sinto muito confortável sendo multidisciplinar. Cada meio tem as suas potencialidades e eu não tenho preferências, eu amo fazer livros, filmes, objetos ou explorar novos meios. Eu tenho estado em meio a conversas sobre a possibilidade de uma versão em realidade virtual de Aqui, o conceito do livro parece ser perfeito para isso. Eu amo o que pode ser feito em colaboração com outros artistas, eu acho que isso é natural para mim por causa da minha experiência como músico. Levei toda uma vida de experimentações para chegar nesse ponto.

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