Paul Gravett: “Não é mais possível ignorar os quadrinhos no ambiente acadêmico”

O jornalista, pesquisador e curador britânico Paul Gravett é um dos convidados das 3as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, evento que será realizado na USP entre os dias 18 e 21 de agosto de 2015. Uma das maiores autoridades do mundo em HQs, Gravett começou seu envolvimento profissional na área em 1983, quando ele lançou a revista e editora Escape. Em 1989 a revista chega à sua 19ª e última edição, dois anos após o lançamento de Violent Cases pela Escape, o primeiro trabalho de Neil Gaiman com Dave McKean, editado por Gravett. Seu nome também está associado a eventos e iniciativas de preservação da história das HQs britânicas. Responsável pela curadoria de várias exposições, tanto no Reino Unido quanto em outros países, ele organiza desde 2003 o Comica, Festival Internacional de Quadrinhos de Londres.

Dentre seus livros, os mais famosos são Manga: 60 Years of Japanese Comics (2004) e 1001 Comics You Must Read Before You Die (2011), com cinco obras brasileiras listadas. Em 2014 conversei com Gravett em Londres, na abertura da exposição Comics Unmasked: Art and Anarchy in the UK, da qual ele era um dos curadores. Fiz uma nova entrevista com o jornalista para saber mais sobre as expectativas dele em relação à sua nova vinda ao Brasil, onde já esteve em 1991 e 2010. Conversamos sobre quadrinhos brasileiros, a receptividade crescente dos quadrinhos no mundo acadêmico, algumas transformações pela qual a linguagem das HQs vem passando e leituras recentes dele. As imagens que ilustram o post são capas do livro de Gravett. Ó a nossa conversa:

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Essa não é a sua primeira visita ao Brasil, certo?

Não, estive duas vezes antes, em 1991 e 2010, mas para festivais de quadrinhos no Rio. Essa será a minha primeira visita a São Paulo. Estou bastante empolgado!

Vi indicações no seu site a trabalhos como Cumbe do Marcelo D’Salete e Tungstênio do Marcello Quintanilha, obras muito elogiadas aqui Brasil. No 1001 Comics To Read Before You Die você também menciona Turma da Mônica, Sábado dos Meus Amores, Piratas do Tietê e O Dobro de Cinco. Como você acompanha os trabalhos feitos aqui no Brasil?

Confio bastante na minha rede de amigos e alguns companheiros ativistas de quadrinhos, como o Carlos Baptista e o Rafael Lima, aqui em Londres, que me recomendam livros e autores. Eu recentemente estive em contato com o Marcello Quintanilha em Barcelona. Ele produziu uma quadrinho inédito de duas páginas para uma edição especial da revista de arte contemporânea ArtReview. Fico bastante satisfeito que ele esteja recebendo esse tipo de exposição, ele é sem dúvidas um autor de graphic novels de primeira classe. Também estou desenvolvendo uma possível colaboração com o artista e quadrinista Tito Na Rua, para uma exposição na qual serei co-curador aqui na Inglaterra no próximo Verão.

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E pelo que você conhece de quadrinhos brasileiros, você vê algum elemento tipicamente brasileiro que possa acrescentar à produção de quadrinhos de outros países?

Para ser honesto, acho difícil determinar uma característica especificamente brasileira. Talvez após essa visita e uma nova imersão eu possa ter uma noção melhor da cena atual. Talvez nos dias de hoje, na era da internet, temas, estilos e espíritos da arte dos quadrinhos cruzem fronteiras o tempo todo e sejam mais fluidos e absorvíveis do que nunca. O que está claro para mim é que o Brasil possui talentos de grandeza mundial que podem atingir e cativar um público global.

Você está vindo para uma conferência sobre quadrinhos sediada em uma das principais universidades da América Latina. Não é novidade a presença de quadrinhos no mundo acadêmico, mas talvez ela nunca tenha sido tão grande, intensa e em tamanha variedade de temas. Você vê algum motivo especial para isso?

Essencialmente, é porque se formou uma massa crítica suficientemente grande nos últimos 30 anos, mais ou menos – falo literalmente de uma massa de pessoas críticas, de pensamento crítico e de análises dessa mídia -, e é um fenômeno internacional, de modo que não é mais possível ignorar o tema dos quadrinhos no ambiente acadêmico. Não são apenas editoras universitárias ou especializadas em quadrinhos que estão publicando livros nessa área – por exemplo, editoras mainstreams, voltadas para as massas, como a Bloomsbury e a Abrams estão produzindo uma leva de título relacionados a quadrinhos. Meus dois livros mais recentes – Comics Art (2013) e Comics Unmasked (2014) – foram lançados pela Tate Publishing e The British Library, por exemplo. Também ajuda o fato de quadrinhos se relacionarem com tantas disciplinas, o que permite que pesquisadores das mais variadas áreas estejam aptos a abordarem os mais diversos aspectos. Já passamos muito tempo sem pesquisas sobre quadrinhos – tivemos estudos sobre filmes ao longo de décadas!

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E como é esse cenário no Reino Unido? Quadrinhos também são temas cada vez mais constantes no mundo acadêmico britânico?

Sim, também há essa expansão por aqui. Por exemplo, aqui temos nada menos que três publicações acadêmicas sobre quadrinhos: Studies in Comics (Intellect), The Journal of Graphic Novels & Comics (Routledge) e European Comic Art (Berghahn) – algo inimaginável há uns dez ou quinze anos. Conferências e cursos em universidades também são constantes. A Universidade de Dundee na Escócia está com sua primeira turma de Mestrado de Literatura em Quadrinhos. Desde 2014 temos um Comics Laureate, atualmente o Dave Gibbons, e há conversas avançadas sobre um professor de quadrinhos em Oxford. Talvez você também já tenha ouvido falar de Unflattening, uma graphic novel de Nick Sousanis que foi o primeiro trabalho de PhD da Universidade de Harvard apresentado como quadrinho.

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Recentemente você publicou um artigo em seu site sobre os quadrinhos como uma etapa para o mundo literário. Um dos principais temas do congresso na Usp é o uso de quadrinhos na educação. Pelo que você tem visto e lido, o quão eficazes os quadrinhos podem ser como porta de entrada de crianças e novos leitores para o mundo literário?

Há uma quantidade suficiente de evidências e técnicas iniciais de ensino, como os exemplos que citei no meu artigo sobre as escolas do Leste de Londres, para confirmar o que sempre acreditamos: quadrinhos são extremamente eficazes como ferramentas de ensino. Isso não deveria ser uma surpresa porque eles usam tanto palavras quanto imagens. Ainda há uma resistência considerável no sistema educacional britânico em relação ao uso de graphic novels na sala de aula. Velhos preconceitos custam a morrer. Mas assim como em vários outros temas, o tempo vai mudar isso tudo. Melhor do que punirmos baixos rendimentos em escolas que não conseguem ensinar com livros tradicionais e provas focadas em métodos de ensino voltados para avaliações, precisamos dialogar e encorajar esses jovens estudantes com dificuldades – quadrinhos são simplesmente uma forma vital de fazer isso e não podem mais ser ignorados e descartados. Imagino que o que devemos fazer é reunir todos os testes, as provas e evidências de todo o mundo e apresentar um conjunto inquestionável de fatos que banque uma mudança na grade curricular.

Ao mesmo tempo, tanto aqui no Brasil quanto nos Estados Unidos, há casos constantes de quadrinhos sendo retirados de bibliotecas escolares e de salas de aula. Você vê alguma razão para isso? As pessoas ainda têm muitos preconceitos em relação a quadrinhos? Isso acontece no Reino Unido?

Quase nunca no Reino Unido, ainda bem. É muito estranho para mim que uma reclamação, de um pai preocupado em relação a uma graphic novel em particular, possa ser levada tão a sério assim, a ponto dela acabar sendo banida ou proibida para todas as crianças ou adultos. O Comic Book Legal Defense Fund está fazendo um trabalho essencial para o meio nos Estados Unidos. Talvez o Brasil precise de algo parecido, não?

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Recentemente entrevistei o Scott McCloud e perguntei sobre os tópicos mais relevantes da indústria de quadrinhos na última década. Ele me falou: “As questões tecnológicas que abordo em Reiventando so Quadrinhos, publicado em 2000, continuam a transformar dramaticamente as HQs. A ascensão das mulheres como leitoras e autoras também é extremamente importante na América do Norte”. Você concorda com ele?

O Scott está totalmente certo em relação aos dois tópicos. Estranhamente, mesmo com as possibilidades infinitas do formato digital, também vimos uma nova investida nas qualidades especiais da tinta no papel, em projetos como Building Stories, por exemplo, ou em projetos especiais de design e novas edições de graphic novels e em livros de arte – como as Artists Editions da IDW, impressas nos tamanhos originais da arte ou então nas coleções da Sunday Press, com tiras antigas de jornais norte-americanos em seus formatos e glórias originais. O refinamento de alguns atributos estéticos recentemente aplicados a algumas graphic novels acabam tornando essas obras em objetos de arte, colecionáveis e cobiçados. Posso acrescentar ao ponto sobre a ascensão das mulheres que ainda há espaço para a ascensão de uma diversidade ainda mais vasta de experiências e bagagens entre os criadores – idade, etnia, sexualidade, etnias, deficiências, tudo isso junto até. Isso tudo está pra acontecer. O editor da revista de mangá IKKI, infelizmente encerrada, uma publicação mensal verdadeiramente progressista, uma vez disse: “Ainda estamos apenas no despertar da era do mangá”. Eu acho que ele está certo – toda essa linguagem e seus criadores vão nos surpreender e impressionar de formas que nem imaginamos.

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Na última década foram lançadas obras como Building Stories, Asterios Polyp e Here. Juntos, seus autores, Chris Ware, David Mazzucchelli e Richard McGuire investem em potenciais e possibilidades nunca antes explorados nos quadrinhos. Você gosta desses trabalhos? Sou muito influenciado por quadrinhos norte-americanos, você consegue pensar em outras obras recentes que sejam tão inovadoras quanto essas?

Eu concordo, essas três obras são espetaculares e inovadoras como você diz. Na verdade eu espero que elas não sejam as obras-primas de seus autores, pois gostaria que eles lançassem trabalhos ainda mais incríveis do que estes. De cabeça eu incluiria outras obras-primas do século 21, como The Arrival do Shaun Tan; Tamara Drewe da Posy Simmonds; Walking The Dog do David Hughes; Sunny do Taiyo Matsumoto (que ainda terá seu sexto e último volume a ser lançado); Fun Home da Alison Bechdel; Beautiful Darkness do Kerascoët; Stigmata do Piersanti e do Mattoti; e Alpha do Jens Harder (o primeiro dos três volumes sobre a história do universo e na vida na Terra).

Eu também gosto muito de Bhimayana: Experiences of Untouchability, escrito por S. Anand e ilustrado pelos pintores Gondi da Índia, Durgabai e Subhash Vyam. Eles nunca haviam desenhado quadrinhos e rejeitaram a convenção de colocar seus personagens dentro de quadros ou painéis. Em vez disso, eles desenharam dentro de uma tradição local de decoração, na qual eles desenham em molduras e depois dividem as ilustrações em páginas. Também amo como eles inventaram novos formatos para os balões de fala. Alguns são no formato de pássaros para diálogos normais. Outros tinham olhos dentro, para mostrar que eram pensamentos vindos do olho da alma. E as coisas ruins ditas contra os Dalits ficam em balões com as pontas no formato do rabo de um escorpião. E talvez o quadrinho mais inovador que descobri recentemente é Shapereader do Ilan Manouach, um artista grego que mora na Bélgica, que inventou um sistema tátil de padrão de reconhecimento, como se fosse braille, para leitores com deficiências visuais. Veja com detalhes em http://shapereader.org. Nas minhas pesquisas recentes sobre quadrinhos asiáticos também explorei os webcomics coreanos, que estão explorando narrativa vertical dos quadrinhos digitais como nunca antes havia sido imaginado. Como alguém pode dizer alguma vez na vida que está cansado de quadrinhos?

PS: o Érico Assis também bateu um papo bem legal com o Paul Gravett. Tá lá na Pilha.


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