Rafael Coutinho e os sete anos de produção de Mensur – Parte I: “Cheguei a encarar como um projeto que eu nunca iria acabar e que eu teria que viver com essa dívida”

O quadrinista Rafael Coutinho acredita que o lançamento do álbum Mensur marca o término de alguns ciclos em sua vida. A HQ foi idealizada em 2010, durante o período de divulgação da aclamada Cachalote, ilustrada por ele e roteirizada por Daniel Galera. Na época, Coutinho pensava que 12 meses seriam suficientes para finalizar o projeto, mas foram precisos sete anos. “Vejo um fim de ciclo de livros que eu fiz, que me tomaram um longo tempo, cada um de um tamanho”, explica o autor em uma longa entrevista feita no dia 2 de fevereiro, mesmo data do envio do livro de duzentas páginas em preto e branco para a gráfica.

Ao longo dos últimos sete anos Coutinho não se dedicou exclusivamente a Mensur. Dentre outros projetos, ele publicou três volumes da série O Beijo Adolescente; criou a editora Narval, lançou vários títulos por ela e depois encerrou as atividades do selo; ilustrou o livro As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen; idealizou a coletânea O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015; organizou eventos e fez a curadoria de outros; e editou a Nébula.

“Eu basicamente me tornei um eterno ‘gato subiu no telhado’. Anualmente eu tinha que dar uma desculpa”, diz Coutinho sobre a relação com seus parceiros na produção de Mensur. A HQ chega às livrarias com o selo da Companhia das Letras e da RT Features, empresa do produtor Rodrigo Teixeira que detém os direitos de adaptação do quadrinho para audiovisual. “Acho que cheguei em um lugar que fechou um ciclo mesmo. Gostaria muito de fazer uma pausa, um balanço, não sei o que vai ser depois”, reflete o artista. A folga pedida pelo autor também envolve seu primeiro afastamento do protagonista da HQ após um longo período. O personagem Gringo é um dos raros brasileiros iniciados na prática do mensur, duelo de espadas surgido na Europa do século XV e incorporado na vida acadêmica de algumas universidades locais no final do século XIX.

“Tivemos conversas mentais constantes sobre a vida, mas só fui aprender sobre alguns aspectos de sua personalidade no quarto ou quinto ano de nosso convívio”, diz o quadrinista. O álbum mostra seu personagem principal em uma viagem à cidade sede da república na qual foi apresentado ao mensur quando era estudante e onde viveu eventos traumáticos, que marcaram tanto a sua vida quanto a de seus colegas de duelo. Ao longo dos próximos três dias o Vitralizado publica a íntegra da conversa sobre os anos de Coutinho produzindo Mensur, definitivamente o primeiro grande quadrinho brasileiro de 2017. Nessa primeira parte, o foco está nas inspirações da HQ, os primeiros anos de criação da obra e o sentimento do autor ao finalmente ver seu trabalho sendo lançado. Segue o papo:

[OBS: A entrevista a seguir não revela informações específicas sobre o desenrolar da trama de Mensur, mas pode apresentar interpretações que alguns considerariam spoiler. Fica o alerta caso prefira guardar para ler a conversa após a leitura da obra]

“Esse é o tipo de história que eu sou afim de contar. Uma história que eu vivo, na qual os fluidos naturais da vida vão entrando, compondo e constituindo com um pouquinho mais de naturalidade”

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Eu queria começar a conversa lá atrás, no instante que você teve a ideia pro quadrinho. Você lembra desse momento?

Lembro. Eu tinha entregado a Cachalote, pra editora e pra RT Features, que tinha comprado os direitos pra audiovisual. O Rodrigo Teixeira da RT na época me falou: ‘Vamos fazer outro. Me apresenta umas ideias e a gente desenvolve a partir daí’. Eu tava bem empolgado, Cachalote tinha ido muito bem e eu tinha ganhado relativamente bem pra fazer também. Tava achando que era isso que eu tinha que fazer, quadrinhos, quadrinhos longos. Apresentei as duas que tive pra ele, Mensur e O Beijo Adolescente.

Apresentou pro Rodrigo Teixeira? Antes da Companhia?

Isso, antes da Companhia. Até porque é isso, né? Nenhuma editora é capaz de bancar um projeto de dois ou três anos. Diferente de outros autores eu dei a sorte de quando comecei a fazer histórias longas logo encontrei a RT e o Rodrigo, que foram fundamentais na construção da minha identidade como quadrinista. A possibilidade de fazer histórias longas, com desenhos mais bem rebuscados e muitos detalhes, do que que eu estava me sentindo à vontade para fazer, envolvia um trabalho muito longo e o Rodrigo apresentava uma viabilidade financeira concreta. Então apresentei pra ele, ele gostou das duas, mas mais do Mensur. Aí eu fiquei um ano desenvolvendo o Mensur.

Antes disso, o Mensur nasceu porque eu comecei a ler um livro quando estava no finalzinho do Cachalote. Um livro do Peter Gay, O Cultivo do Ódio, e acho que o segundo ou terceiro capítulo é sobre mensur. Nunca tinha ouvido falar e fiquei muito encantado. Dei um Google e fiquei muito chapado.

Na época que a gente estava divulgando a Cachalote e viajando, eu e o Daniel Galera fomos pra Ouro Preto, em um evento de literatura, fomos super bem cuidados e tal. Aí eu descobri que lá tinham muitas fraternidades e repúblicas. Na minha cabeça elas dialogavam muito com esse universo. Aí eu perguntei pra menina que tava ciceroneando a gente se ela tinha uma entrada em uma dessas repúblicas e ela disse que não só tinha como também tinha se formado em uma de meninas. Ela disse que tinha uma relação muito boa com a de meninos. As repúblicas femininas e masculinas possuem uma relação muito particular e curiosa. A casa dos meninos meio que “protege” a casa das meninas, tem um bom relacionamento entre elas, tem as festas…E tem uma coisa absolutamente machista, inerente ao formato dessas fraternidades, em que os homens meio que cuidam das mulheres. Embora essa menina que estava com a gente seja muito querida, sensível e maneira, ela abriu com muito orgulho que não teve que pagar um centavo de nada na época da faculdade porque os meninos pagavam tudo. Tudo aquilo, cara, o machismo e a estrutura hierárquica de dentro das repúblicas, dialogava imediatamente com o que eu tinha lido sobre as fraternidades de mensur nessa Alemanha do século XVIII e XIX. Foi aí, ‘cara, vou fazer o Mensur em Ouro Preto’.

E depois? Você fechou o tema, apresentou pro Rodrigo e o que aconteceu?

Ele gostou. ‘Tá, beleza, vamos desenvolver’ e me deu um ano pra fazer.

Isso foi quando? 2010? Ele te deu um ano?

Isso, começo de 2010 e ele me deu um ano. Era uma história de 100 ou 120 páginas. Talvez menos, umas 80. Era uma coisa pra ser resolvida em um ano. A principal exigência dele era essa. ‘Cara, tenho grana pra um ano, quero resolver nesse período, você consegue resolver?’. Falei, ‘claro!’ e aí foi isso, comecei a desenvolver e acabei usando um ano inteiro só pra roteiro. Fiquei de fato escrevendo durante um ano. Claro, tinha frilas e outras coisas, tava pintando na época, algumas coisas com a Choque Cultural… Na verdade nem lembro exatamente o que estava fazendo naquela época. Eu lembro que fiquei um ano escrevendo. Comecei a desenhar algumas coisas no segundo semestre de 2011, no finalzinho saíram aquelas páginas que publiquei lá na Rev.Nacional do J.R. Duran, a convite dele. Mas eu tava confiante de que em dois anos eu dava conta e sairia.

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Como foi a produção desse roteiro? Foi você sozinho trancado escrevendo?

Não, eu escrevi, escrevi muito. Foram algumas versões, tenho 200 arquivos só desse ano de 2010. Pedaços, excertos, trechos, estudei muito, fui atrás da galera de mensur, guardei muita foto e referência, achei uma galera que fazia. Troquei correspondência com um cara dos Estados Unidos que era mensuren.

Esse é o sujeito que você já contou que começou a conversar e depois ele sumiu?

É. Ficou claro pra mim, nas minhas pesquisas e a partir do blog dele também, que mensur nos Estados Unidos, mesmo sendo uma coisa pequena, envolvia um ruído político no meio que diz respeito ao posicionamento da esquerda e da direita em relação à prática. São homens lutando espadas e se golpeando, as pessoas questionam se isso é criminoso ou não. Ele defendia muito o ritual, era um apaixonado por mensur e mantinha um site não só sobre mensur, mas sobre lutas de espada de uma forma em geral, fancing, espadas variadas, fotos antigas e registros, esse cara me ajudou muito e o blog dele foi muito importante pra mim. Eu consegui o contato dele, mandei uns emails, falei que estava fazendo um livro sobre mensur, mandei umas dúvidas, ele respondeu, mandei outras e nunca mais respondeu. Sumiu. Entendi que não tava afim de entrar por aí e que não era capaz de falar sobre mensur sem nunca ter lutado, nunca ter visto uma luta e não entender essa cultura e a cultura alemã. Basicamente sem compreender a cultura alemã e os porquês e por ondes uma coisa dessa existia até hoje dentro de uma cultura como a ocidental.

E aí? Qual foi a sua solução?

Aí comecei a lapidar essa história pro Brasil. Isso foi tudo ainda no começo, nos primeiros seis meses. Comecei a escrever o roteiro, escrevi vários trechos, escrevi um argumento longo e comecei esse período de leitura, fiz muita leitura de roteiros com amigos. O Bruno D’Angelo me ajudou muito, conversei muito com o Gabriel Bá, conversei com o Rafael Grampá, mas muito com o André Conti (editor de Mensur). Ele estava muito interessado no projeto desde o começo, de cara. Putz, ele participou muito intensamente. Mandei pro Galera também. Eu tava muito inseguro e a história tinha muitos problemas. Ela era fruto de uns desejos meio obsessivos da minha parte, com ideias que eu tentava forçar o roteiro a se adaptar. Foi um período muito formal pra mim, de construção de roteiro, de conduzir o roteiro formalmente para um ápice e seus ápices internos, encontrar seus antagonistas e protagonistas. Já tinha a menina e já tinha o Gringo, já tinha o Gordo, mas outros personagens começaram a aparecer. E tinha isso do mensur fazer sentido, às vezes ele aparecia em primeiro plano outras ele saia, eu também me perdia em questões… Foi difícil, foi confuso pra caralho. Não tinha muita manha de escrever roteiro, foi o meu primeiro longo, bati bastante cabeça.

Lembro do Conti me falando uma vez: ‘Cara, não tá bom, tem que mudar muita coisa, ainda não tá legal’. Daí foram sete versões do texto até fechar um roteiro. E parte desse roteiro ainda se modificou bastante nas outras etapas, de thumbnail e esboço e depois não mudou mais.

Quando você chegou nessa versão final, que tá sendo impressa?

Um mês atrás? (risos) O que aconteceu é que nesse período a minha vida passou por muitas mudanças. Eu tive dois filhos, o primeiro e quatro anos depois outro. Me mudei de casa, me mudei de bairro, publiquei três capítulos do Beijo Adolescente – eu não larguei a ideia que o Rodrigo tinha descartado, apenas fiz no meio (risos). Também vieram as necessidades, não só artísticas, mas também de grana, de continuar trabalhando, viver de quadrinhos, encontrar saídas. Tive a Narval, a Narval cresceu e depois diminuiu. Então eu fui vivendo a história, aos poucos ela ia mudando, encontrando outras estruturas, conforme eu ia vivendo também ia vivendo o roteiro. O Gringo também ia vivendo coisas que eu estava entendendo da minha vida. Quando eu vi estava de fato entendendo a história. Não era só sobre o Gringo e nem sobre um lutador de espadas. Sei lá, eu me endividei, o meu nome ficou sujo, aí entrou isso na história, virou uma parte importante, limpar o meu nome e questões de honra. Coisas que eu passei a ver na dinâmica entre os homens a minha volta. Como eu me sentia a respeito da violência masculina moderna, isso também foi mudando. Vi coisas e vivi coisas.

Eu também entendi que esse era um roteiro que eu queria que fosse um pouco mais aberto. Era um tipo de experimentação narrativa que me interessa mais que construir uma história com início, meio e fim. O Beijo foi muito educativo para mim. Era uma história que até não tenho todos os contornos, a cada volume eu acho peças dela. Entendi também que me viro bem dessa forma, criativamente vou forçando umas coisas e achando outras. Vou achando essas viradas. Ter estudados uns dois ou três anos de roteiro antes do Mensur foi fundamental. Entre o Cachalote e o Mensur eu escrevi um longa pro Rodrigo também, que não viu a luz do dia mas está lá. Escrevi também outros projetos, dirigi umas coisas. Então acho que aprendi mais sobre roteiro e consegui me desvencilhar dessa necessidade de construir arquetipicamente uma história.

Eu imagino que sete anos produzindo você entende melhor não só como se produz um quadrinho ou um roteiro, mas também como você mesmo funciona, né?

É cara, sinceramente, acho que essa coisa de contar histórias, salvos alguns poucos exemplos, que contam muito com sorte também – como um autor jovem rapidamente chegar a uma estrutura e resolver ela bem, amarrar ela toda e ficar algo maravilhoso – é algo que você precisa de uma vivência muito intensa, aprender algumas coisas da vida, assumir algumas responsabilidades, fazer umas merdas e estudar, roteiro mesmo, escrever e praticar. Isso é algo que é pouco celebrado nos quadrinhos, a galera não pratica contação de história. Principalmente longa. A maior parte dos autores que conheço pula de 10 páginas pra de 100. Aí você vê os buracos acontecerem. Eu sofri com isso também, tive que realmente estudar muito, montei um grupo de estudos, foram dois anos estudando autores, roteiros, uma coisa um pouco obsessiva. E nem acho que cheguei na minha maturidade como roteirista. Acho que o Mensur tem vários problemas, coisas que não soube concluir, cacos desses sete anos que foram ficando, mas foi importante pra mim viver tudo isso. Mesmo nos cacos eu consegui construir. E esse é o tipo de história que eu sou afim de contar. Uma história que eu vivo, na qual os fluidos naturais da vida vão entrando, compondo e constituindo com um pouquinho mais de naturalidade.

Entendi. Mas aí você tinha esse contrato de um ano. Como foi administrar tanto com o Rodrigo quanto com o pessoal da Companhia das Letras? Você estava trabalhando com eles e para eles, foram aparecendo várias coisas no caminho e levou bem mais do que o período inicial de um ano. Foi de boa pra todo mundo esses sete anos?

Ah, não. Não vou dizer que foi de boa (risos). Foi difícil. Eu basicamente me tornei um eterno ‘gato subiu no telhado’. Anualmente eu tinha que dar uma desculpa. O André nunca me atormentou, nem me pressionou, nem nada, foi um grande amigo e que me ajudou de todas as formas possíveis, nunca me exigiu um prazo. Pelo contrário, uns dois anos atrás eu achei que a gente estava terminando e fiz a Companhia anunciar o livro. Quando eles viram que eu não ia concluir eles tiraram. Mas o livro também envolveu muita ansiedade da minha parte, de querer concluir e não conseguir. Foi difícil assumir, em várias etapas, que eu estava longe, não estava perto. Eu precisava de mais tempo e ter calma.

Já com o Rodrigo não. Com ele foi um pouco mais complicado. Ele precisava, ele tem toda uma estrutura de uma empresa que compra direitos e que investe. Ele precisa manter um ecossistema de investidores satisfeito com entregas e apresentações que eu não conseguia manter. A gente fez muitas reuniões e tal. Entre trancos e barrancos ele foi um lorde, sempre apostou em mim, nunca duvidou. A questão dele era mais burocrática, administrativa e contratual, no que dizia respeito a eu cumprir o contrato que tinha assinado com ele. Mas ele nunca duvidou que a história ia ficar boa, sempre me deu todo o espaço do mundo, nunca meteu um dedo, um bedelho, no livro. Pude fazer tudo o que eu quis. Até quando eu quis aumentar coisas que não agregavam à história, ele nunca disse nada.

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Então tá, sete anos, nós estamos conversando e a prova final está aí do seu lado…

Ela foi pra gráfica hoje.

Foi pra gráfica hoje, depois de sete anos. E aí? O que isso representa pra você? Você sentiu alguma coisa diferente quando fechou o arquivo e mandou pra editora?

(risos) Ai cara, não sei, é muito complicado de resumir. Acho que é… Enfim, uma analogia um pouco simplista: eu não consigo resumir o que é ser pai. Acho muito complicado, complexo, cheio de coisas, é bom e ruim, triste e alegre, maravilhoso, catártico e mundano ao mesmo tempo. Nesse sentido, claro, ter filho é uma coisa muito mais complexa, mas escrever um livro e fazer quadrinhos em geral, é uma sensação muito difícil de resumir. Ao mesmo tempo que é um grande alívio e bate uma baita felicidade, também rola uma ansiedade de ver as pessoas lendo e pegando na mão, tem um momento que é claramente só meu, de realização, de me sentir muito energizado e… Empoderado vai, pra usar a palavra da moda.

Ao mesmo tempo dá vontade de parar e nunca mais fazer. Parece um capricho totalmente desconectado da minha realidade. Há uns anos a gente discutiu Mensur lá em casa, como um problema, como um câncer que precisava ser tratado, não acaba o tratamento e toda vez que achava que tinha acabado parecia um foco maligno em algum outro lugar do corpo. Foi um peso no meu casamento. Foi difícil e a Marina foi maravilhosa. Mas em vários momentos eu senti uma depressão profunda de realmente encarar como um projeto que nunca iria acabar e que eu ia ter que viver com essa dívida. Acho que fazer uma história longa em quadrinhos é viver com uma dívida muito grande.

Realmente não sei como funciona pros europeus, parte de mim quer mesmo que eles se fodam, ter que trabalhar e correr atrás das coisas, resolver do jeito que a gente tem que resolver e viver a identidade do quadrinista, de fato, 100%, a entrega inteira, é uma coisa absolutamente antinatural. Não é bom. É muito ruim, muito ruim.

E a gente vive um momento muito bonito. Todo mundo se juntou e acho que essa união, esse momento muito produtivo dá um alento maravilhoso, estimula, faz a gente querer continuar a produzir, como classe, abre perspectivas de melhora. As pessoas começam a chegar na mesa de negociação de uma editora com toda a sua categoria junto de você. Isso é muito importante, ver os livros saírem, ver o livro do Wagner Willian, ver que a gente está chegando em um nível de excelência muito grande e alto dá um tensão e uma inspirada. Trocar umas mensagens de apoio no Facebook com uns colegas. Grande parte do Mensur, e eu digo isso com todo respeito do mundo aos leitores, é fruto da minha relação absolutamente linda com os meus colegas. É uma vanguarda. A única palavra que consigo encontrar é vanguarda. São pessoas que se apoiam e não é o dinheiro que conduz, é a sede de produzir, experimentar, descobrir, desbravar esse mundo pouco desbravado, de chegar em um lugar novo com os nossos trabalhos. Muito do Mensur eu devo a eles. Mandei muitas partes para muitos deles durante esse processos.

Eu queria deixar esse papo sobre cena brasileira mais pra frente, mas você já entrou nele. Em 2014 o Érico Assis fez aquele texto chamado Seis Propostas Para os Quadrinhos Brasileiros, estamos falando de três anos atrás e parece um universo bem diferente desse que você está falando, referente ao nosso presente. Uma das coisas que ele sugeria eram obras de fôlego, na época, mesmo quatro anos após o lançamento, a Cachalote com 320 páginas ainda era o que tínhamos de mais longo.

Hoje já passaram o Cachalote várias vezes. Fazendo um adendo ao que o Érico disse na época, acho que faltava mais ainda naquela época era esse ecossistema, esse amálgama. Junta uma geração e deixa ela produzir independentemente do que acontecer, totalmente alimentada por si mesma, pelo desejo de todos os envolvidos de ir mais longe, mais a frente, por estarem acompanhando uns aos outros e estarem excitados. Eu vejo as vanguardas de outros países e é a mesma coisa. No Japão, na Suíça, na Bélgica, na Inglaterra agora, nos Estados Unidos e no Canadá, enfim, você conversa com as pessoas envolvidas e todas falam: ‘foi nóis aqui ó’ (apontando o dedo pro próprio peito). Sei lá, dez pessoas insanamente empolgadas fazendo, uma pagando pau pra outra, querendo ir pra um lado e buscando, essas pequenas migrações internas…

Já ouvi mais de uma vez alguém reproduzindo uma fala do Art Spielgeman ou da Françoise Mouly quando eles vieram pra uma FLIP dizendo que essa cena brasileira lembrava a época áurea de uma RAW nos Estados Unidos dos anos 80.

O Paul Pope veio aqui no final do ano passado e disse a mesma coisa, que nós parecemos a Nova York dos anos 80. Tá muito excitante. Ele falou que quer vir pra cá, ia ser engraçado (risos).

Voltando pro Mensur, você falou desses cacos da obra. Chegar à conclusão de que o quadrinho jamais estaria perfeito e fechado como você gostaria faz parte do amadurecimento pelo qual você passou durante esse período de produção da obra?

Totalmente faz. Sei lá, eu não sou um sujeito totalmente obsessivo. Quero dizer, eu entendo as pessoas que sejam, tenho colegas que são, mas existe um nível de obsessão que passa a minha capacidade de lidar com aquilo. É quando o processo criativo começa a perder a graça. Eu chego sempre nesse limitezinho. Eu consigo levar os projetos que estou fazendo até esse limite, mas quando chego aí, eu freio algo interno, que é similar a dizer ‘deixa aí, deixa levar, deixa aí’. Se eu desse um passo atrás pra analisar, me parece realmente todo o porquê de eu fazer mesmo. Eu faço arte pra chegar nesse lugar aí e falar, ‘pronto, é isso’.

Foto: Rafael Roncato
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