Estamos a poucos dias do anúncio do título, da editora e da sinopse do próximo quadrinho do artista Thiago Souto. Estou trabalhando no projeto como editor e tenho publicado por aqui nas últimas três semanas a série Thiago Souto e a Av. Paulista, na qual o quadrinista fala sobre suas inspirações e o desenvolvimento da HQ. O álbum tem como foco a via mais famosa da maior cidade brasileira e a dinâmica de seu funcionamento aos domingos, quando é fechada para carros e aberta para pedestres, skatistas e ciclistas.
Após falar sobre suas memórias antigas relacionadas à Avenida Paulista e lembrar de suas primeiras idas ao local com ele aberto para os pedestres, hoje o autor trata da origem de seu novo quadrinho e das reflexões que o inspiraram a desenvolver esse novo projeto e faz um comparativo com sua obra prévia, Labirinto (Mino). Recomendo o seu retorno ao blog nos próximos dias para novidades sobre a HQ. Enquanto isso, aspas de Thiago Souto:
Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #3: “Experimento voltado para a desconstrução”
“Bolhas sociais”
“No começo íamos à Paulista pra a Alice brincar e eu e a minha esposa darmos uma andada. Nesse início eu não tinha essa percepção do monte de coisa que acontecia ao mesmo tempo. O sentimento na época era mais de encantamento com o espaço, aquele centro de comércio e negócios agora aberto para pessoas, convívio e interação. Era isso que me impressionava quando fomos pelas primeiras vezes. Conforme o tempo foi passando, fui observando outras coisas e superando esse sentimento de deslumbramento. Eu passei a me perguntar: ‘Como pode tanta gente? Como tem tanta gente e tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo?’. Eram muitas coisas contrastantes. A música das bandas, por exemplo, você entrava na Paulista e estava tocando forró, dois passos depois era rock, três passos e você ouvia funk,… ‘Cara, como tá acontecendo tudo isso junto?'”.
“Você via uma família ‘comportada’ e ‘tradicional’ andando ao lado do cara loucaço. E todo mundo fechado no seu próprio rolê, sem se dar conta de que tudo aquilo estava acontecendo no mesmo espaço”.
“Quando comecei a perceber isso, pensei que talvez fosse possível fazer alguma coisa… Talvez uma história que não precisasse de um roteiro tradicional. Não precisava ser sobre o personagem que começa a história de tal jeito, passa por toda uma saga e acaba diferente. Talvez o movimento da história não precisasses ser sobre os conflitos de um personagem ou sobre o que acontece com ele, mas mais sobre o fluxo de um determinado lugar. As coisas estariam acontecendo e ele percebendo aquilo tudo. Seria uma experiência meio estranha – no bom sentido, para quem gosta de coisas estranhas (risos) Seria chamar atenção para as coisas que ninguém tá ligando muito, do que está acontecendo enquanto estão todos fechados em suas próprias histórias”.
“Jornadas diferentes”
“Como eu acabei de sair de um trabalho com uma estrutura narrativa bastante tradicional, o Labirinto, eu tava afim de fazer uma coisa que fugisse disso, pra poder continuar em movimento. Eu não achava que estaria indo pra frente se fizesse uma história igual à anterior, no sentido da forma. Não que eu não vá fazer novamente uma história naqueles moldes, mas me permitir algo diferente, em relação ao uso da linguagem, é uma forma de romper um pouco a inércia, de propor uma experimentação. Não uma experimentação no sentido pretensioso da palavra, a ideia não era tentar fazer algo diferente de tudo o que já foi feito, não. Digo experimentação no sentido de tentar algo me desafiasse de alguma maneira”.
“Acho que há algumas formas de fazer essa experimentação. Antes do Labirinto eu tinha tido um processo de experimentação muito relacionado ao aprendizado. Era o meu contato com a produção de um quadrinho, então eu estava descobrindo, tudo era novo. Até então eu compreendia o processo como um leitor que gostaria de fazer quadrinhos, mas não como alguém que produzia já há algum tempo e parou pra pensar na linguagem e tudo mais. Era mais uma experimentação por parte de alguém descobrindo a linguagem. Isso é muito legal, você tem muita liberdade e não está preso a nenhum tipo de amarra”.
“O Labirinto foi história muito longa, um processo de produção mais fechado dentro de uma estrutura tradicional no sentido do uso da linguagem. Que me fez aprender muito sobre esses elementos. Mas quando acabei o Labirinto, comecei a ter vontade de experimentar coisas diferentes, desta vez uma experimentação mais voltada para a desconstrução do que pro aprendizado, como havia sido antes. Eu já compreendia um pouco melhor da linguagem e queria experimentar com o que havia aprendido nesses processos”.
“No caso de um personagem principal, por exemplo. Um protagonista geralmente é trabalhado de determinada forma, ele tem suas relações de conflito e vão surgindo tensões crescentes até chegar em um momento de clímax. Quando pensei a história da Avenida Paulista concluí que não precisava trabalhar o personagem principal exatamente dessa forma. Pensei que ele poderia ter uma jornada diferente. Da mesma forma, também optei por trabalhar o desenho de forma diferente, removendo os requadros, por exemplo. É uma experimentação distinta da qual me propunha no começo. Então foi isso, a intenção era trabalhar algo novo para mim com quadrinhos”.
“Todo mundo no seu próprio microcosmo”
“E a ideia era expressar isso tudo tratando desse lugar democrático, que permite livremente toda forma de manifestação, sejam lá quais forem as bandeiras… Às vezes com a borracha da polícia, né? (risos) Então não tão livremente assim, mas mesmo assim você tem todo tipo de pessoa lá, do cara mais conservador ao mais progressista”.
“É engraçado… Eu lembro que no começo algumas pessoas evitavam ir à Paulista por essa abertura aos domingos ser muito associada à gestão do Haddad e do PT. Mas o espaço de convivência acabou se mostrando maior do que isso, as pessoas conseguiram até deixar isso de lado. O que é impressionante quando você leva em conta essa aversão tão gigantesca que existe ao PT . Mas todas as pessoas tomaram aquele espaço como sendo delas e assim foi realizado o objetivo de fato da proposta: ser um espaço democrático. É isso que é o melhor, mesmo sendo um espaço meio esquizofrênico, também frequentado por pessoas que flertam com o fim desse espaço democrático”.
“E é isso, você tem lá o cara pedindo intervenção militar e pessoas manifestando as causas mais progressistas, contra o racismo, contra a homofobia… Enfim, a Paulista sempre foi esse espaço democrático. É o palco da Parada do Orgulho LGBT, por exemplo, mas o movimento Cansei também usou a Paulista de palco. Quando você abre aos domingos, tudo isso é ainda mais potencializado. Todo tipo de gente convivendo, todos mais ou menos fechados no próprio microcosmo, mas as pessoas estão lá e na maioria das vezes de forma pacífica”.
CONTINUA…
ANTERIORMENTE:
>> Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #2: “É muita gente diferente compartilhando o mesmo espaço”;
>>Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #1: “Parecia coisa de ficção científica”.