Acompanhei durante três noites em Belo Horizonte os quatros debates e sete shows da mais recente edição do festival Traço – Música e Desenhos ao Vivo*. Cerca de uma semana antes do evento começar, publiquei por aqui uma entrevista com o Jão, quadrinista e um dos organizadores do Traço junto com a jornalista Helen Murta. No meu texto, foquei no principal chamariz do festival, a reunião em um mesmo palco de músicos e quadrinistas/ilustradores nacionais. No término da minha primeira noite em BH ficou claro para mim que a proposta do evento é bem mais ampla: a reunião entre autores de HQs/desenhistas e músicos é a síntese de um encontro que se propõe a debater os rumos da forma como se vende, consome e pensa arte e cultura nos dias atuais.
Antes dos shows realizados no palco da casa A Autêntica entre os dias 4 e 6 de agosto, quadrinistas, músicos e produtores de diversas áreas de atuação debateram questões relacionadas ao mercado editorial, à receptividade do público a obras autorais e à busca por novas possilidades de fazer arte e viver de cultura.
Em seguida, as apresentações casadas entre ilustradores, bandas e cantores refletiam algumas dessas mesmas questões, colocavam artistas em ação fora de suas zonas de conforto e propunham novos cenários e perspectivas para o uso de suas respectivas linguagens. Ao longo dos três dias de evento, foram apresentadas parcerias entre Di Souza e Criola, Iconili e André Dahmer, Fadarobocoptubarão e Jão, O Lendário Chucrobillyman e Rafael Coutinho, Astigmatrio e Alves, Sara Não Tem Nome e Lovelove6 e Curumin e Karina Buhr. Variou de show para show a dinâmica entre quadrinistas/ilustradores e seus colegas de apresentação: enquanto alguns dos desenhistas pareciam ter elaborado seus trabalhos antes de cada show, outros pareciam ter subido ao palco dispostos a conceber ao vivo suas ilustrações.
Após o meu retorno de Belo Horizonte, mandei um longo email com várias perguntas aos dois responsáveis pelo evento. Helen Murta e Jão fizeram um balanço sobre a mais recente realização do Traço, casada com uma edição da feira de publicações independentes Faísca – ambos eventos realizados pela Pulo Comunicação e Arte (produtora cultural de propriedade dos dois). Eles também comentaram alguns dos tópicos mais constantes debatidos durante as conversas entre seus convidados. Recomendo a leitura da minha entrevista curta com o Jão feita previamente ao evento e um assistida no vídeo a seguir, que lista a programação do Festival. Depois, tira um tempinho aí pra ler o nosso papo, conversa bem boa mesmo. Ó:
Eu queria que vocês falassem um pouco de cada performance durante os shows, tanto das bandas quando dos artistas. Em relação aos quadrinistas, foram dinâmicas muito diferentes. A maior parte delas parece ter sido freestyle, outras parecem ter sido pensadas previamente aos shows e outras em parceria com os músicos. Alguma apresentação específica chamou a atenção de vocês? Jão, em relação ao seu trabalho durante o show do Fadarobocoptubarão: o quanto você já tinha pensado da sua ilustração quando começou a criar?
Helen: Tenho bastante dificuldade em destacar uma apresentação. Escolhemos os trabalhos para estarem ali por realmente gostarmos de cada um deles, e pela vontade de vê-los em outros âmbitos, que não o da produção particular de cada desenhista ou de cada banda.
De qualquer forma, penso em um destaque como um todo. Depois que pensamos a junção das bandas e desenhistas, lá na fase de pré-produção do festival, mesmo já tendo em mente que cada performance será uma experimentação – que o trabalho de música e desenhos realmente vai surgir na hora, sendo ele planejado previamente ou não –, o que acontece ao vivo sempre me surpreende. Pra mim, é esta a melhor parte do Traço: as apresentações serem inusitadas, inesperadas, mesmo pra quem criou e organiza o festival.
Jão: O que vi em cada apresentação:
Di Souza e Criola: O Di Souza, que abriu a primeira noite, foi um músico que já queríamos incluir no Traço há algum tempo. Ele preparou um figurino personalizado para o festival, algo que tinha a ver com nossa identidade visual, com riscos e papéis. Junto com ele estava a Criola, que é uma grafiteira que acompanhamos também, e que tem um trabalho muito forte voltado para a cultura negra e para a mulher. Acredito que ela já tinha preparado algo, pois o trabalho foi pensado em uma mescla de colagem e desenhos com canetas coloridas. O público respondeu super bem à apresentação.
Iconili e André Dahmer: Para fechar o dia, o Iconili, que é outra banda que tem tudo a ver com o Traço e que já havíamos tentado investidas para incluí-los antes, subiu ao palco junto com o André Dahmer. É impressionante como as músicas deles se aproximaram dos desenhos, da construção da coisa em si. E o show foi uma mescla de experimentação, ou jam, sobre músicas já prontas. Sobre o Dahmer, ele estava muito seguro para produzir imagens em frente ao público. Lembro que algo que ele queria dizer para a banda era “contem comigo”, e acho que aí que está o espírito. A produção do cara é monstruosa, foram feitos diversos desenhos, usando tintas ecoline e nanquim, durante o show e ele ainda escreveu poemas que complementavam a apresentação. Um ponto interessante de notar foi que o público aplaudia o André quando ele finalizava cada desenho, mesmo que a música ainda estivesse em curso.
Fadarobocoptubarão e Jão: Na segunda noite, quem abriu fomos eu e a banda Fadarobocoptubarão. Segundo os integrantes, foi o último show do Fada e acho que foi um encerramento muito legal. Apesar de ser uma banda instrumental, os temas tratados nas apresentações são nonsense e irreverentes, mas, ao mesmo tempo, contemplativos. De minha parte, queria tentar algo diferente do que já tinha feito antes. Não foi algo completamente programado, mas quis homenagear os dois anos do Traço e me inspirar na primeira identidade visual do festival. Como o Fada tem temas diversos em suas músicas, quis partir disso para criar uma espécie de cartaz, algo mais ligado à ilustração.
O Lendário Chucrobillyman e Rafael Coutinho: A performance que encerrou a segunda noite do Traço tinha algo especial, já que a banda era formada por apenas uma pessoa, então tivemos apenas os dois artistas no palco, o que, ao mesmo tempo, contemplava todos os aspectos do festival. O público pirou no show do Chucrobillyman, é impressionante como ele consegue fazer tudo aquilo junto. Já o trabalho do Rafa eu vi como uma crítica ao que o rock se tornou: esquecimento de suas raízes e de suas contestações. Ele é um desenhista fantástico e muito seguro de seu trabalho também.
Astigmatrio e Alves: O último dia de festival começou com o show de uma banda que foi uma surpresa pra gente: o Astigmatrio. Lembro quando estávamos fechando a programação e faltava apenas uma última banda para finalizar o sábado, nós descobrimos o trabalho dos caras, que são de Lagoa Santa, e piramos. O som deles tinha tudo o que queríamos. Sobre os desenhos, o Alves é, sem dúvida, um dos artistas mais talentosos que conheço. Fazia tempo que queríamos incluí-lo na programação também. Suas ilustrações, diretamente com canetas, ficaram incríveis. Foi uma pena que, pelas particularidades do público de BH, quem pegou ingresso antecipado chegou mais tarde e, sendo a primeira apresentação da noite, haviam poucas pessoas no início do show, mas, da metade para o final, a casa encheu e muitos puderam ver o espetáculo. Considero um dos pontos altos do festival.
Sara Não Tem Nome e Lovelove6: O show da Sara, o segundo do sábado, foi forte e poderoso, como sempre. Para além do som, acho muito legal a parte performática da artista e isso com certeza enriquece muito uma apresentação no Traço, que já se propõe como um encontro de modalidades artísticas. A experimentação da Lovelove6 nos desenhos encaixou super bem ao show e fiquei muito feliz de termos conseguido trazê-la. Foram diversas ilustrações que se misturavam às músicas e isso foi muito legal.
Curumin e Karina Buhr: Acredito que conseguimos encerrar com chave de ouro esta edição do Traço com o show do Curumin com a Karina Buhr desenhando. A parte musical foi impecável, uma vibe muito boa que o Curumin traz com suas composições. Já a Karina fez muitas ilustrações e pinturas. Lembro que quando eles começaram mandando um “Fora Temer”, com a Karina ilustrando isso, eu fui parar em outra realidade de tão feliz. Conversando com a produção dela, descobrimos que foi a primeira vez que ela participou de uma performance do gênero, o que é muito legal para o festival. Cabe dizer também que, para além da qualidade que esta apresentação trouxe para o Traço, mudou nossa percepção em relação ao potencial do evento: a possibilidade de apresentações inéditas reunindo nomes como o Curumin e a Karina Buhr engrandeceu o festival como um todo, não somente no dia da apresentação. Fez com que ele chegasse em mais gente, fez com que as pessoas olhassem de outra forma para ele. Isso afeta diretamente um de nossos principais focos, que é a formação de público para o Traço, para todos que se apresentam e para as linguagens que trabalhamos.
Sobre o freestyle: Foi interessante que esta foi uma edição em que quase todos os desenhistas partiram sem esboço, diretamente com canetas, pincéis e tinta sobre o papel. Isso é muito legal de ser pontuado. Eu mesmo, apesar de apenas uma vez, já fui com esboço para uma apresentação, mas acredito que o freestyle aproxima mais da proposta do festival. A improvisação é algo que faz parte de um show. E, como disse o André Dahmer em uma de nossas conversas, “não existe desenhar errado”.
Os debates do Traço não estavam limitados a quadrinistas e músicos. Havia a presença de muitos produtores culturais, pessoas de teatro, cinema e literatura. Em geral, as conversas estavam centradas principalmente em relação a fomento e difusão de cultura independente. Quando vocês conceberam o Traço em 2014, tinham em mente a abrangência potencial do evento? Vocês já tinham refletido sobre as várias demandas em comum entre diferentes formas de arte e expressão?
Helen: Quando concebemos o Traço, não tínhamos em mente essa abrangência possível de abordagem de temas como aconteceu nesta edição. A ideia sempre foi unir modalidades artísticas, públicos diferentes, mas as discussões mais aprofundadas surgiram ao longo do tempo. Hoje, percebemos que a reflexão sobre diferentes campos é mais um viés que surgiu por causa da Pulo como um todo, e não só do Traço.
Quando eu e Jão nos conhecemos, combinamos minha trajetória de produtora cultural, jornalista e assessora de imprensa, voltada para artistas independentes, à experiência dele no campo de artes gráficas, como quadrinista e editor, o que originou a Pulo. Como, além de sócios, somos um casal – namorando há quase três anos e meio, morando e trabalhando juntos desde o início de 2014 –, nossas vidas giram em torno dessas trocas e das possibilidades estabelecidas por elas.
A proposta da Pulo, desde o começo, é a de dar projeção para novos artistas. Inicialmente concebida como agência de comunicação, ela rapidamente se tornou empresa de artes gráficas e também produtora cultural, tendo o Traço e a Faísca como principais eventos. Viabilizamos, assim, conversas, pensamentos e experiências acerca de várias áreas. Fomos descobrindo o que havia em comum e o que havia de diferente ali, primeiro entre nossos campos de atuação, e, em seguida, com a realização da Faísca, os trabalhos da Pulo com produtores culturais e artistas de outras áreas, e com clientes como a Editora Miguilim.
As demandas semelhantes são muitas, mas confesso que acho mais complicada a atuação como produtora de eventos de artes visuais, ou assessora de comunicação desses trabalhos, que na área da música. Antes da Pulo, eu nunca havia imaginado que poderia existir um cenário mais complicado que o da música independente, eis que criamos o Traço e a Faísca pra constatar o contrário.
Comecei a enxergar pontos de evolução que se deram no mercado da música há muito mais tempo, e que ainda estão caminhando para os quadrinistas, ilustradores etc, e para quem faz os eventos ou a divulgação destes campos. As dificuldades perpassam todo o caminho, o da formação, da profissionalização, do reconhecimento, da mídia, das relações entre os agentes culturais, da formação de público.
Isso me faz pensar e me aflige constantemente, o que tentamos abordar de maneira um pouco mais ampla com o primeiro debate realizado no Traço, mas 1h30 foi pouco pra tudo o que podíamos debater, para tudo o que aqueles convidados tinham para dizer por ali… Na parte das artes cênicas mesmo, que foge mais da nossa atuação, temos muito pra conversar e discutir, esperamos que em breve, pois, com certeza, todas essas experiências podem contribuir muito umas com as outras, e de maneira mais integrada.
Jão: Para complementar o que a Helen disse, lembro que o Traço surgiu em um momento em que discutíamos sobre as dificuldades nos cenários da música autoral e dos quadrinhos e artes gráficas daqui de BH. O que poderíamos fazer para movimentar esses campos. Percebemos, nessa conversa, que, apesar de se tratarem de áreas artísticas e culturais, mesmo entre músicos e desenhistas não havia uma troca, muitos de uma área não conheciam os trabalhos das outras áreas e vice-versa. Isso também acontecia com o público. Pensando em quando criamos o festival, lá atrás, vejo que foi um dos principais motivadores para fazê-lo.
Há algo de metalinguístico na existência do Traço. Um tópico em comum em todas as conversas dizia respeito à articulação de projetos e ideias em um contexto de crise no qual cultura está em segundo plano. O Traço tem vários apoiadores e foi aprovado em uma Lei Municipal de apoio a cultura de Belo Horizonte. Durante a organização do evento, o quão receptivos vocês sentiram o poder público e privado para apoiar e incentivar uma proposta como o Traço? Que tipo de contrapartida e benefício vocês acreditam que esses investidores esperam por parte do festival?
Helen: Isso mudou bastante do início pra cá. Em 2014, quando o Traço ainda estava no papel, a primeira coisa que fizemos foi buscar apoios para viabilizá-lo. Batemos na porta de casas de shows a princípio, com a ideia de que elas fossem as primeiras financiadoras do evento, de forma integral, o que acabou não acontecendo – por uma conjunção entre o projeto ser embrionário e as dificuldades pelas quais passavam os próprios espaços culturais de BH.
Na conversa com o Stonehenge Rock Bar, primeira casa do festival, encontramos um meio termo para fazê-lo por meio da bilheteria. Aí veio nosso primeiro grande problema: como, na Pulo, a ideia é a valorização dos artistas, optamos por correr o risco (ah, aliás, o festival se chamava Risco naquela época, mas o nome foi alterado antes da estreia, outro dia contamos essa história…heheheh) de oferecer um cachê fechado para os artistas, mesmo que mais simbólico, e arcarmos com a diferença.
Naquele momento, apesar de não termos conseguido o financiamento do evento, encontramos lá uma das nossas grandes apoiadoras até hoje: desde o começo a gráfica Juizforana apostou no festival, e concedeu a impressão dos livretos do Traço, em cada um de seus momentos. Temos muito carinho por cada uma dessas peças, acreditamos que elas viraram uma das marcas registradas do Traço. Naquele primeiro livreto, contamos com um anunciante (depois de bater na porta de uns 30), a loja Real Vandal Graffiti.
Com tudo isso, no fim das contas, depois de um ano da fase independente, as entradas do público que esteve por lá custearam apenas algumas ações de divulgação. O restante (da grana e do trabalho) foi investido por nós. Ainda bem que o que veio na sequência valeu a pena: os convites do Sesc Palladium e do Verão Arte Contemporânea foram momentos em que o festival se custeou, mas o nosso trabalho ainda foi investimento.
Já com a aprovação no edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, esta foi a primeira vez que recebemos pra fazer uma parte das tarefas. Percebemos que, para conseguir outros apoiadores, precisávamos não só de algo mais pronto e coeso, que foi o próprio projeto aprovado, como de um pouco de reconhecimento (clipping, os eventos no Palladium e CCBB BH, e o próprio crescimento da Pulo, seja como empresa de comunicação, seja com a realização da Faísca).
Acredito que esses “selos” contaram mais para os apoiadores que as contrapartidas oferecidas no evento, como espaço de divulgação no local, ou a veiculação das marcas na comunicação. Penso que os investidores atentaram para a proposta do Traço, mas, mais que isso, precisavam enxergar que aquilo seria viabilizado de uma maneira profissional e mais ampla que na etapa independente. E, além disso, com uma programação também expressiva, seja nas performances e debates, seja com a junção entre o festival e a Faísca (esta teve receptividade, reconhecimento e alcance maiores que o Traço desde seu início).
Jão: É importante lembrar que, apesar de toda a repercussão gerada, o Traço não foi aprovado para receber recursos pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte para a próxima edição. Então, apesar da realização de um evento muito legal agora, ainda estamos no caminho das pedras para fazer o festival continuar existindo. Talvez tenhamos que buscar patrocinadores privados ou recorrer ao financiamento coletivo. O que está nos planos também é colocar o evento em turnê pelo país, promovendo encontros e intercâmbios com artistas de Minas Gerais e de outros estados. Vamos ver quais serão os próximos passos.
Muito se falou sobre pluralidade nos debates do Traço. As apresentações também pareceram ter uma preocupação muito grande em relação a diversidade. Um questionamento bastante citado dizia respeito a como criar a integração de diferentes mídias/linguagens e públicos. Na minha avaliação, o Traço conseguiu ser bastante plural, mas tendo uma linha editorial bem clara. Como é esse esforço de conciliar demanda de público com a criação de um evento que parece ter diversidade como princípio sem que ele soe esquizofrênico?
Helen: Na verdade, fico muito feliz com estas observações que você fez. Analiso esta edição sob dois aspectos: a de uma organização maior em relação à diversidade de estilos, de produções dos artistas, e na divisão por dias versus o fato de que não conseguirmos ainda uma diversidade de público como poderíamos. Explico por pontos:
Em termos de linguagem e estilo, sempre buscamos uma variabilidade, mas ela era completamente caótica em 2014 e em 2015. Na parte dos desenhos, a miscelânea era melhor recebida, mas, na tentativa de combinarmos bandas com propostas diferentes na programação de um mesmo dia, virou uma salada bem maluca. Ao invés da união que buscávamos, muitas vezes o público se sentia perdido.
Percebemos que era bom contemplar vários ritmos em uma só edição, mas não em uma mesma noite. Parte do público, especialmente do rock, não estava aberto para ver também outras bandas ali para além do que já se ouvia… E, bem, isso não deu certo. Nesta edição, optamos por misturar um pouco, mas não por estilos tão opostos em uma só noite. Então, conseguimos organizar isso melhor. O que não mudou, nem temos a intenção de alterar, foi: continuamos a experimentar em uma só edição combinações mais “naturais” entre os trabalhos musicais e os de desenhos a combinações talvez mais “improváveis”.
Falei tanto de estilos artísticos que não cheguei à diversidade do público, então vou ser mais direta em relação a essa defasagem que considero no Traço: seja em um espaço rock’n’roll como o Stonehenge Rock Bar, já mais tradicional no calendário da cidade, em um local novo e que busca a pluralidade de apresentações como A Autêntica, em centros culturais da capital como o Sesc Palladium ou o CCBB BH, seja cobrando entrada ou oferecendo eventos gratuitos, o Traço precisa melhorar muito em termos de diversidade e de representatividade. Acho que esse é o mais atual, o maior desafio que temos pela frente.
Algo que também foi bastante falado diz respeito a uma euforia crescente de novos espaços de consumo e difusão de cultura. Essa edição mais recente do Traço também contou com a realização da Faísca. Comparando as primeiras edições da Faísca com essa mais recente, vocês têm números relacionados à presença de público, artistas e publicações em cada edição? Que balanço vocês fazem em relação à presença de público e artistas entre a primeira edição e a atual?
Helen: A Faísca tem crescido desde que estreou, mas estimo que o público desta edição não foi maior que o das outras. Seria bom perguntar pra cada expositor, mas tive a impressão de que, em termos de público e de venda, a feira gráfica do Traço realizada na quinta-feira deu mais retorno. Isso, proporcionalmente, é difícil de analisar, já que o encontro de sábado contou com um número de expositores três vezes maior. Assim, talvez tenham sido vendidos mais produtos, porém as vendas podem ter ficado mais diluídas entre as mesas. Recebemos dois retornos diferentes de alguns artistas: uns disseram que a circulação foi bem mais ampla, outros que foi menor…hehehe…
De qualquer forma, neste pouco mais de um ano de uma feira que é mensal, é exatamente o que acontece: uma oscilação muito grande de um evento para o outro. A Faísca não é um evento anual ou bienal, que as pessoas ficam esperando pra ir, que se reúnem todas em um único momento. É uma feira com a proposta de exibição, projeção e realização constantes, com todas as vantagens e desvantagens que se tem nisso. Sempre troco ideias com os expositores, e quem já participou de várias edições da Faísca costuma ter essa percepção da oscilação mesmo. É sempre uma aposta de cada um de nós estar lá.
Acho que outro consenso nos debates, entre os artistas das mais diversas áreas presentes no evento, diz respeito à necessidade da pessoa responsável pela obra também ser o vendedor e o distribuidor daquele trabalho ao mesmo tempo. Isso não é novidade e é algo bem típico da cultura independente, mas me parece ganhar contornos cada vez mais profissionais ao longo dos anos. Como organizadores tanto do Traço quanto da Faísca vocês precisam lidar bastante com artistas. Vocês conseguem notar essa profissionalização?
Helen: Isso é uma questão bem complexa, né… Acho que é uma solução que vem junto com novos problemas. Ao mesmo tempo em que vejo como profissionalização esses artistas darem conta, cuidarem de tantos aspectos, serem tão polivalentes e cada vez melhores nessa atuação ampla, vejo como uma enorme dificuldade.
Como comunicóloga e produtora, é algo que eu gostaria muito de mudar, mas isso exigiria uma modificação no cenário todo. Não falo em transformar a parte de cada um ter conhecimento em relação a tantos âmbitos que envolvem seu trabalho. O saber é ótimo, mas eu gostaria que o artista pudesse se dedicar mais, ou exclusivamente, à própria criação artística.
Que tivesse alguém pra cuidar do restante, que é tão importante quanto. Que cada um deles pudesse contar com um ou mais profissionais responsáveis por sua produção, gestão de carreira, divulgação. É muito estressante cuidar de tudo e bastante complicado. Enquanto pode viabilizar oportunidades, já que muitas vezes os artistas não têm recurso para bancar estas contratações, faz com que eles tenham menos tempo – e cabeça – para criar mesmo.
Na música, é mais comum que se tenha produção, assessoria, etc. Não que seja o mais habitual, mas, nas artes gráficas, vejo muito pouco. Na Faísca, essa ausência é um dos pontos mais difíceis de se trabalhar. O expositor tem coisa demais pra resolver e não tem um produtor. Ele deixa de prestar atenção em informações básicas da feira, se esquece delas, perde datas, se desorganiza e, assim, torna a coordenação da Faísca mais complexa. Recebo as mesmas dúvidas todos os dias, e não é porque estes artistas não compreendem as coisas com facilidade, é porque eles estão lotados de afazeres.
O mesmo em relação à comunicação. Como os artistas visuais não costumam ter assessoria, diversas vezes mandam textos sobre seus trabalhos com pouquíssimas informações, não têm muitas imagens de divulgação, ou são difíceis de encontrar para marcar entrevistas. Uns porque estão fazendo mil outras coisas, dando aulas, estudando, dormindo por terem passado noites trabalhando… outros por não terem esse costume de se relacionar com a imprensa, e acabam perdendo oportunidades. Ou seja: por não terem um profissional cuidando da comunicação deles.
Outra coisa engraçada que percebo no meu trabalho de assessoria de imprensa, em especial das obras do Jão, é a relação com os próprios veículos de comunicação especializados, principalmente dos quadrinhos. Muitos destes veículos estranham a existência de uma assessoria de imprensa, acho que pela falta de costume mesmo, de existir alguém representando esta parte para um quadrinista. Muitos obstáculos já passados pelos veículos mais tradicionais em relação a essa recepção ainda estão distantes de serem derrubados nesse círculo.
Voltando à discussão anterior, em resumo, num mundo ideal na minha concepção, o exercício da produção seria para produtores, edição para editores, comunicação para comunicadores, arte para artistas. Mas é claro que isso não é viável e, assim, o movimento tem sido contrário na maioria das vezes. Isso funciona bem para muitos artistas, mas é comum trazer esses problemas que pontuei.
Aliás, também se falou muito sobre essa reflexão constante e crescente relacionada a como tornar cultura viável e fazer dinheiro para que esses bens girem e continuem sendo produzidos. Como negócio, o Traço mostra-se viável para vocês?
Helen: O Traço não, mas a Faísca sim. A feira, desde seu início, se sustenta com o apoio do BDMG Cultural. Isso não é garantido que continue a acontecer, mas, ao contrário do que o Jão pontuou em relação ao Traço, a Faísca foi aprovada no último edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, tendo a possibilidade de ampliação, se captarmos os recursos. Como coloquei antes, foi a primeira vez que recebemos pelo Traço, mas talvez por um décimo das tarefas que cada um de nós dois executou. Como negócio, o festival continua sendo um investimento árduo, daí nossa ideia de fazermos edições anualmente daqui pra frente.
Jão: O Traço ainda não atingiu o potencial que pensamos para ele, então sempre tentamos melhorá-lo. Acaba que isso gera custos e trabalhos a mais pra gente, mas vemos como um investimento. Como a Helen disse, a ideia de torná-lo anual pode permitir que arredondemos mais o evento e aí sim fechá-lo em um formato consistente, para pensar e colocar na ponta do lápis tudo o que será necessário e como receber adequadamente pelos serviços.
E uma coisa bastante comentada nos debates diz respeito a essa necessidade dos artistas irem aprendendo, tanto em relação à produção artística quanto aos aspectos comerciais, a medida que fazem e criam. Imagino que não seja muito diferente para vocês enquanto produzem o Traço e a Faísca. Quais as principais lições que vocês tiraram desse evento mais recente?
Helen: A principal lição, pra mim, foi basicamente que não dá mais pra fazer sem ter recursos para a contratação de mais profissionais na produção. Nesta edição, o festival foi sendo ampliado e a equipe não cresceu proporcionalmente para atendê-lo. A segunda lição foi que chegamos a um patamar novo, que não havíamos alcançado antes, de público e de projeção. Mas, ao invés de isso ser uma conquista, foi uma forma de percebermos que temos muito pela frente.
Ouvi mais de uma vez os convidados de vocês falando da necessidade de “criar novas possibilidades de fazer arte” e de “descobrir novas formas de gerar público”. Belo Horizonte parece ter uma cena cultural bastante agitada – em termos de quadrinhos é um dos polos nacionais. Vocês conseguem mensurar a repercussão que o Traço tem dentro desse contexto?
Jão: Acredito que a cena de quadrinhos de BH é bem importante para a criação de um evento como o Traço, pois ele surge em uma brecha que não era contemplada antes: a formação de público entre quem frequenta eventos culturais, como shows. Aqui na cidade nós temos o FIQ, que é um dos maiores encontros do país, mas me parece que é mais voltado para quem já está por dentro da cena (ou para quem é fã do Batman ou da Turma da Mônica). O que fizemos com o Traço foi buscar e tentar trazer um público diferente, são pessoas que gostam de música, de literatura, de cinema, que estão abertas para receber a produção de quadrinhos, mas que ainda não tiveram essa experiência. Mostrar para essas pessoas que existe uma intensa quantidade de gente fazendo quadrinhos de qualidade aqui no país, no estado, na cidade, é fundamental para movimentar e ampliar nosso mercado. Já sobre o outro lado, um dos objetivos que a Helen já colocou é que precisamos valorizar o trabalho e tempo dos artistas que participam. O Traço é também um lugar para manter a produção de quem está fazendo arte na cidade. Você vai participar e vai receber um cachê por isso. Não digo que é a salvação da arte, nem nada do tipo, mas apenas que se todos os convites que surgirem forem pagos torna-se viável você pensar em viver disso. É importante ter essa visão, não só para as organizações de eventos, como dos próprios artistas, pois, para a profissionalização, é necessário que hajam recursos para viabilizar todos os aspectos da execução.
Helen: Minha percepção é a de que BH tem muita gente fazendo, mas muito separadamente. Cada um está atrás do próprio corre, ainda não conseguimos a integração que sonhamos. Ainda tenho dificuldades para avaliar plenamente a repercussão do Traço nesse contexto, talvez eu saiba daqui a um tempo.
Em determinado momento o Rafael Coutinho falou do que chamou de “conflito pós-moderno e neoliberal de criar e produzir mais também fazer dinheiro”. Jão, o quanto o seu envolvimento em empreendimentos como o Traço e a Faísca influenciam a sua produção como quadrinista? Me refiro não só à dificuldade de conciliar as duas coisas, mas também o quanto as reflexões propostas e implícitas aos eventos influenciam na sua criação?
Jão: A Pulo permitiu o sustento que era necessário para continuar produzindo meus quadrinhos e acaba que eu vejo as iniciativas que criamos aqui, como o Traço e a Faísca, como parte de minha obra, mesmo fazendo em parceria e não sendo exatamente uma narrativa sequencial. É engraçado porque esse mercado é tão esquizofrênico que com o quadrinho em si você não ganha praticamente nada, mas se você faz algo em torno disso, algo ligado à criação de público, é possível tirar alguma grana. Já sobre as influencias, acho que os eventos me trouxeram uma percepção muito maior sobre o que está sendo feito, o que está sendo produzido, o que gera um impacto direto em meus trabalhos. Trocar experiências com desenhistas e músicos do Traço abriram meus horizontes para muitas possibilidades, assim como ver os diversos trabalhos que são expostos na Faísca todos os meses. É sim uma dificuldade conciliar as coisas, pois o festival e a feira ocupam um tempo grande em minha agenda. Lembro de uma conversa com o Leo Moraes, sócio da casa de shows A Autêntica, em que ele dizia que havia aberto o estabelecimento para tocar mais com sua banda Valsa Binária, mas viu que tinha ficado muito mais difícil por conta dos diversos problemas que surgem com o empreendimento. E ele retomou isso no primeiro debate do Traço. Acho que no caso da Faísca, passa muito por isso: queria fazer uma feira mensal para produzir mais, mas acaba que é muito mais difícil fazer algo novo para expor. Ao mesmo tempo que no Traço eu sempre tento conciliar os afazeres básicos do festival com experimentações e coisas que eu curto criar, então, por exemplo, na última edição eu consegui dedicar um tempo às animações para os vídeos de divulgação, o que era uma coisa que eu estava muito pilhado para fazer.
Helen: Aqui, não tenho uma observação como artista, mas gostaria de pontuar uma questão em relação ao conflito se fazer dinheiro ou mesmo uma carreira com produção cultural, principalmente em BH.
Começamos na Pulo prestando serviços de produção e comunicação especialmente para bandas, e o investimento e o desenvolvimento tanto do Traço quanto da Faísca têm muito a ver com a falta de retorno financeiro destas primeiras empreitadas de prestação de serviços. Pensamos: já que é tão difícil se ganhar dinheiro com a produção cultural, vamos apostar nisso para os nossos próprios projetos. Assim, pelo menos os resultados, mesmo que não sejam financeiros, podem voltar diretamente. E o que desenvolvemos no Traço e na Faísca, assim como o Jão pontuou que influencia o trabalho dele, tem impacto direto na minha atuação profissional em outros projetos.
Pra finalizar: acredito estar bem claro o esforço de vocês em fazer do Traço um evento de porte nacional, com a presença de quadrinistas e músicos de diferentes regiões do país. Um dilema comum vindo de todas essas pessoas participando dos eventos – e também de outros encontros que já estive – diz respeito a fomento e criação de público. O quanto vocês acham que o Traço contribui para essa cena?
Jão: Como disse antes sobre a apresentação do Curumin com a Karina Buhr, e isso se estende para todos os convidados desta edição, a ideia é gerar apresentações únicas, promover a troca entre públicos distintos, formar novos públicos para uma área ou outra, ou para todos os artistas que participam do festival, mas sempre ter em mente que precisamos incluir novos artistas na programação. Oferecer a possibilidade de renovação cultural também. Outro ponto que acho importante destacar é que, apesar de já existirem performances semelhantes antes da criação do Traço, como festival ele é o primeiro do gênero no país (e, até onde tenho conhecimento, o primeiro no mundo – posso estar muito enganado, mas sei do Concertos Desenhados, que estreou no ano seguinte ao início do Traço, no Festival Internacional de BD de Beja, e não descobri nenhum outro). Ou seja, por si só já existe uma contribuição importante para todo o cenário cultural em que vivemos. O que precisamos agora é fazer com que a ideia chegue a mais gente.
Helen: Acho que quanto mais ele cresce, mas aumenta o dilema. E percebemos que a formação de público pode ser proposta por eventos, mas que, realmente, a solução seria num âmbito estrutural mesmo de educação, investimento na cultura, em mais atividades de formação… De qualquer forma, continuamos em busca de fazer o que podemos para contribuir nesse contexto.
*Estive em Belo Horizonte a convite dos organizadores do Traço – Música e Desenhos ao Vivo por meio do apoio da Casa dos Quadrinhos.