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Entrevistas / HQ

Papo com Galvão Bertazzi, autor de Vida Besta: Fim do Mundo: “Gosto dos meus personagens vivendo normalmente em todo esse ambiente incendiário e voraz”

Entrevistei o quadrinista Galvão Bertazzi sobre Vida Besta: Fim do Mundo, coletânea recém-publicada pela editora Mino que reúne a leva mais recente de tiras do autor. Desde 2018 ele incorporou à sua produção o caos e o niilismo do governo Jair Bolsonaro e de uma pandemia que já matou mais de 680 mil brasileiros. Transformei esse papo com o autor em matéria para o jornal Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho a seguir a íntegra da minha conversa com Bertazzi:

“Comecei a sentir prazer em desenhar os personagens e os cenários pegando fogo”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

O que aconteceu em 2018 que te motivou a dar início a esse leva mais recente e apocalíptica da Vida Besta?

Não foi nada racionalmente pensado. Não pensei: ‘agora vou fazer tiras catastróficas’. Acho que foi um caminho natural dos desenhos e das temáticas que já povoavam meu trabalho de tiras.

Mas eu me lembro que certa hora comecei a sentir prazer em desenhar os personagens pegando fogo, os cenários pegando fogo e as ações acontecendo na história como se o desastre fosse a coisa mais natural do mundo. Pode ser que estejamos vivendo assim atualmente, fingindo uma normalidade enquanto a realidade desaba. Como as tiras sempre foram sobre nosso cotidiano, acho que foi natural que enveredasse para um cenário apocalíptico.

As tiras de Fim do Mundo foram publicadas entre 2018 e 2022, do início do governo Bolsonaro aos estágios mais atuais da pandemia. O quanto esse contexto recente da nossa realidade afetou a sua vida?

Eu vivi e senti a tragédia da chegada do atual governo em 2018. Eu vivi e senti a tragédia do início da pandemia em 2020 . Eu vivi e senti o agravante de se estar no Brasil, governado por Bolsonaro com o plus de uma pandemia. Eu desisti de tentar entender e racionalizar o misto de sentimentos, medos, anseios pelos quais fui atropelado nesse período de pré-pandemia, pandemia e pós-pandemia, com a abertura geral de tudo, aglomerações e gente feliz e contente na rua como se não existisse amanhã… 

Minha vida pessoal entrou em colapso e só agora, depois de passada uma gigantesca rebordosa pós-pandêmica estou conseguindo reestruturar um bocado de coisas que se quebraram.

Faz alguns meses que me entreguei às delícias da indústria farmacêutica moderna pra controlar uma ansiedade que saiu completamente do controle e estou adorando! 

Você vê a humanidade realmente caminhando para o fim de sua existência? Você nos vê de verdade mais próximo do fim do mundo?

Não sei se a humanidade vai deixar de existir, não. Seria bom, se acontecesse. Eu tenho tentado pensar num futuro mais brando, onde o atual sistema consumista não se sustente mais, mas sei que isso é utopia juvenil e eu já me enxergo velho e calejado demais pra imaginar um futuro bonito com todos de mãos dadas se respeitando e ajudando mutuamente. 

Mas não duvido da insistência e teimosia da nossa espécie e é capaz que duremos mais uns bocados de séculos, vagando por uma gigantesco pasto ou plantação de soja, carregando respiradores e roupas com fator UV elevado.

“Não tenho mais urgência em publicar diariamente”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

Vermelho, laranja e amarelo sempre estiveram muito presentes em seus trabalhos – e casam muito bem com o tom incendiário e infernal de Fim do Mundo. O que te atrai nessas cores?

Acho que é isso mesmo. Essa idéia de urgência incendiária sempre esteve presente na minha paleta, tanto nas tiras quanto nas ilustrações e pinturas. Eu gosto dessa coisa quente e exagerada e como eu falei ali em cima, gosto de colocar meus personagens vivendo normalmente em todo essa ambiente incendiário e voraz.

Fico com a impressão que seu traço, seus desenhos e seus personagens, estão cada vez mais simples e icônicos. Faz sentido para você? Se sim, como essa simplicidade contribui para a construção das suas tiras?

Acho que isso é relativo. Eu não sei se é uma simplicidade. Creio que é mais uma urgência em resolver a ideia mesmo. Minha noção de tempo está meio bagunçada nesse últimos tempos e tenho até produzido menos tiras do que deveria, justamente por isso. Eu gosto de desenhar, pra mim a tira tem muito mais a ver com o desenho do que com o enredo em si e o meu desenho sempre muda. Se você pegar as primeiras tiras e ir acompanhando até os dias atuais, vai notar que devagarinho os bonecos, os cenários vão se moldando até chegar onde está hoje. Provavelmente daqui uns anos, se o mundo não tiver acabado, eu vou estar desenhando de um jeito completamente diferente. 

A sua rotina de produção de tiras mudou muito ao longo dos anos? Desde o começo da Vida Besta, o que mais mudou na sua rotina? É mais fácil para você produzir hoje uma tira do que nos seus primeiros anos da série?

Mudou demais. Alguns anos atrás eu ainda desenhava diariamente com essa ânsia de desenhar, postar e deixar os seguidores verem quase que em tempo real a tira saindo do forno. 

Minhas tiras sempre foram primeiro pra internet do que pra qualquer veículo impresso. Faz anos que não publico em nenhum jornal ou revista e o feedback na internet sempre foi algo que me abastecia. Isso foi mudando. Eu não me cobro mais em ter essa urgência em publicar diariamente, acho que cansei dessa vida via de mão única das redes sociais e internet. Hoje em dia, eu gosto de sentar com mais calma e resolver uma ou duas tiras sem muita pressa e às vezes nem publicar online. 

E em termos de técnica, mudou muito? Quais materiais você usava quando começou a Vida Besta e quais materiais usa atualmente?

Lá no começo eu desenhava muito com caneta, nanquim e lápis de cor e depois escaneava. Mas isso não durou muito. Eu desenho no tablet, desses de formato antigo de mesa, desde o século passado. As tiras e ilustrações se resolvem muito bem pra mim assim, direto no digital. Consigo simular bem meu traço no papel. Ando ensaiando em voltar um pouco pro papel e lápis de cor, mas tô com preguiça. Mas uma hora vai acontecer.

“A realidade tende ao pessimismo”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

A minha leitura de Vida Besta me dá a impressão que você é uma pessoa pessimista. Ou pelo menos alguém que se encontra atualmente pessimista. Você é pessimista?

Cara, não me considero pessimista, apesar de muita gente ao meu redor me achar pessimista. Eu tenho 44 anos agora e já vi muita coisa acontecendo e com tempo você consegue perceber que elas são cíclicas, quase que como um padrão. O mundo é pessimista por si, a realidade tende ao pessimismo e acho que é isso que eu retrato nas tiras. Nada impede que na vida real, coisas boas aconteçam e aí você se surpreende e dá valor nessas pequenas coisas. Mas fiquei aqui pensando enquanto digito essa resposta e olha… Acho que sou sim pessimista. E isso é uma merda.

Fim do Mundo reúne sua fase cobrindo a Laerte na Ilustrada quando ela esteve com Covid. Como foi essa experiência para você?

Ah, foi um misto de emoções. Primeiro porque me coloquei uma responsabilidade gigantesca nas costas pra produzir tiras com uma qualidade alta, mas que nem de perto chegaram perto da genialidade da Laerte e isso me aterrou na labuta da produção diária, num jornal que tem tanto alcance como a Folha. Não escondo de ninguém que gostaria muito de publicar diariamente pra Folha e em outra situação eu teria comemorado. Mas o convite de manter o espaço da Laerte funcionando enquanto ela se recuperava do Covid, me deixou meio confuso. Eu não fiz alarde e procurei fazer o meu trabalho da melhor maneira possível, ansiando loucamente para devolver o posto pra Laerte.

O que vem depois do fim do mundo? Você já nos vê saindo do atual cenário apocalíptico que vivenciamos nos últimos anos? O que você aposta para o nosso futuro?

Eu não aposto em nada porque eu sempre perco. Mas quero muito ver essa era Bolsonaro se acabando e que por mais que demore, quero que o legado desse desgoverno fique apenas como uma memória ruim de uma geração meio burra que não soube cuidar de si mesma e nem pensar nas gerações futuras. Mas eu queria mesmo era que meio kg de café voltasse a custar R$5 reais. Tá foda!

A capa de Vida Besta: Fim do Mundo, obra de Galvão Bertazzi publicada pela Mino (Divulgação)


HQ / Matérias

Galvão Bertazzi fala sobre incêndios, catástrofes e Vida Besta: Fim do Mundo

Desde 1998 o quadrinista Galvão Bertazzi retrata na série Vida Besta a banalidade da vida cotidiana e a falta de um sentido maior para a existência. Nos últimos anos ele incorporou à sua produção o caos e niilismo do governo Jair Bolsonaro e de uma pandemia que já matou mais de 680 mil brasileiros. O álbum Vida Besta: Vida do Mundo reúne as tiras produzidas pelo autor de 2018 para cá, seu periodo mais apocalíptico.

Conversei com o autor sobre a coletânea publicada pela editora Mino e transformei esse papo em texto para a Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui.

Entrevistas / HQ

Papo com Ed Brubaker, autor de Pulp e Criminal: “De repente, é como se algumas pessoas não quisessem admitir que os nazistas eram os bandidos”

Não lembro do meu primeiro contato com um quadrinho com roteiro do norte-americano Ed Brubaker. Talvez tenha sido Batman – O Homem que Ri ou a série Gotham Central, originalmente publicada em português como Gotham City Contra o Crime. Lembro que gostei muito das duas leituras, mas só passei a dar atenção especial aos trabalhos dele após ler os primeiros encadernados de Criminal, lá para o fim dos anos 2000.

Há alguns meses reli os primeiros Criminal, terminei a série e fui atrás de outros títulos do roteirista em parceria com o ilustrador Sean Philips. Me impressiona a regularidade e o volume de trabalho dos dois. Eles não se propõem a refletir ou experimentar em relação às possibilidades da linguagem dos quadrinhos, mas são claros e extremamente eficazes em sua proposta de divertir.

Aproveitei o anúncio do lançamento de uma série de títulos de Brubaker e Philips em português, pela editora Mino, e fui atrás do roteirista. Entrevistei o escritor e transformei esse papo em texto para a edição de julho da Sarjeta, minha coluna sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. A conversa rolou no início de junho, algumas semanas antes dos dois troféus do Prêmio Eisner recém-conquistados pelo autor – melhor novo álbum gráfico, por Pulp, e melhor quadrinho digital, por Friday, parceria com Marcos Martin.

O foco principal da entrevista com Brubaker foi em Pulp, primeiro dos títulos dele com Philips a ser lançado pela Mino. Mas ele também falou sobre a construção do universo de Criminal, comentou sobre sua dinâmica de trabalho com o parceiro criativo de mais de 20 anos e expôs algumas das mágoas que guarda de sua passagem pela Marvel. Você lê a Sarjeta clicando aqui e confere, a seguir, a íntegra da minha entrevista com Ed Brubaker:

“É um faroeste, mas ambientado na década de 1930”

Quadros de Pulp, HQ de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Eu quero começar sabendo como você está. Como você está lidando com a pandemia? A pandemia afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?

Sim, para o bem e para o mal. Finalmente voltei a ler livros o tempo todo, o que é bom, e decidimos fazer graphic novels em vez de séries mensais, então o trabalho foi realmente produtivo. Mas não saí muito, nem fiz muitos exercícios, e estou pagando por isso agora, tentando voltar um pouco à forma.

E como você acha que isso vai afetar o seu ambiente profissional? Imagino que você esteja conversando com outros autores e com seus editores sobre isso tudo. Como você acha que isso pode mudar a forma como se produz e vende quadrinhos?

Eu não sei, honestamente. Acho que intensificaram coisas como a publicação via Kickstarter, mas as grandes editoras americanas parecem ter sobrevivido muito bem. Na verdade 2020 foi um dos maiores anos para os quadrinhos em muito tempo, eu acho, em termos de vendas. Mas acho que mais pessoas estão pensando em vender direto aos consumidores e coisas do tipo.

Pulp é protagonizado por fora-da-lei aposentando tentando viver em um ambiente urbano, mas não apenas. Qual era a sua proposta quando você começou a escrever esse quadrinho?

O livro foi feito principalmente para ser um estudo de personagem sobre um fora-da-lei que envelhece à medida que o fascismo está varrendo o mundo. Vendo aquela ligação entre os proprietários de terras do Velho Oeste com seus próprios exércitos privados, e a semelhança entre isso e o fascismo, como o capitalismo sempre teve esse lado sombrio. No final das contas, é um faroeste, mas ambientado na década de 1930.

“Pulp também é sobre eu quase morrendo”

Página de Pulp, HQ de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Quadrinhos seguem sendo vistos por muitos como obras escapistas. Qual você considera o papel de bons escapismos em contextos tão tristes e pessimistas como o cenário de Pulp e a atual realidade mundial?

Eu acho que realmente depende. Eu sei que nos últimos anos, do jeito que o mundo tem andado, eu tive menos interesse em escrever histórias deprimentes, e quero trazer algo mais divertido para nossos leitores… Mas eu sempre tendo a adicionar algum tipo de tragédia ou tristeza de alguma forma. Isso é apenas vida, eu acho. Quero que as pessoas possam se identificar com as histórias que contamos, bem como se distrair um pouco com elas. Mas é possível fazer as duas coisas. Eu acho O Grande Gatsby tanto imensamente divertido quanto incrivelmente comovente, então esse é sempre o objetivo.

Você pode me falar, por favor, sobre a sua relação com publicações pulp? O que você vê de mais interessante nelas?

Tenho muitas lembranças nostálgicas desse tipo de coisa, desde a infância. Havia essas brochuras de Men’s Adventure quando eu era criança – como The Executioner, The Destroyer, etc – e também reimpressões de personagens antigos como Doc Savage e Conan, com capas pintadas realmente incríveis. Essas coisas realmente me atraíram, e ainda gosto da aparência de todos esses livros daquela época. A estética da coisa toda. Isso é o que nos inspirou, recentemente, para os livros de Reckless, a aparência e sensação daqueles velhos livros de bolso dos anos 1960 e 1970.

Acho que uma grande sacada de Pulp é ser um quadrinho pulp sobre obras pulp. O que veio primeiro: a história de Pulp ou a ideia de desenvolver um quadrinho pulp? Ou veio tudo junto (uma HQ pulp sobre obras pulp)?

Tudo começou porque Sean queria um faroeste e eu não tinha nenhuma ideia. Então comecei a pensar em meus filmes de faroeste favoritos, e aí me lembrei que havia alguns homens nos anos 1930 que afirmavam ser o Butch Cassidy (nenhum deles realmente era, no fim das contas) e a partir daí a história começou a se encaixar. Gostei da ideia de um velho fora-da-lei escrevendo histórias pulp que eram a versão mais feliz de sua juventude.

Além disso, o livro também é muito sobre eu quase morrendo e me preocupando em deixar minha esposa sem nada. Isso me assombrou por cerca de um ano antes de eu finalmente escrever Pulp, então foi uma maneira de processar esses sentimentos como ficção.

“Várias pessoas me acusaram de ser um esquerdista maluco”

Página de Pulp, HQ de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Vivemos um período de ascensão do fascismo em todo o mundo. Foi de alguma forma satisfatório para você ter um herói em uma missão de encarar fascistas?

Sim, eu pensei que seria muito “pulp” ter os bandidos como nazistas, mas sendo o mais realista possível. Todas aquelas coisas no livro realmente aconteceram em Nova York naquele momento. Muitas pessoas ainda ficam surpresas ao saber sobre aquele comício nazista naquela noite, o que é triste. E várias pessoas me acusaram de ser um esquerdista maluco por fazer dos nazistas os bandidos de uma obra de ficção histórica, o que não passa de insanidade. De repente, é como se algumas pessoas não quisessem admitir que os nazistas eram os bandidos. Eu nunca pensei que isso aconteceria na minha vida, honestamente.

Aliás, a maior parte dos seus trabalhos que li são sombrios, violentos e pessimistas de diferentes maneiras. Você se considera uma pessoa pessimista? 

Acho que depende do dia. Sou pessimista em relação às pessoas e ao nosso futuro. Sou pessimista sobre as mudanças climáticas e nossa capacidade de lidar com elas. Mas na maioria das vezes eu tento não pensar sobre essas coisas e apenas vivo a minha vida da melhor maneira que posso e aproveitando cada dia. Às vezes escrevo coisas sombrias porque são histórias de crime e porque acho que tenho algumas coisas dentro de mim que precisam aflorar.

Apesar de My Heroes Have Always Been Junkies ser um spin-off de Criminal, ela funciona como uma obra autônoma, assim como Pulp. Como é essa experiência para você? Trabalhar tendo em visto um número limitado de páginas? Como esse tipo de restrição espacial contribuiu para o desenvolvimento das suas histórias?

Eu odeio ter que me preocupar com o tamanho de uma história. Prefiro apenas escrevê-las, sem ter uma contagem de páginas definida, mas por causa da realidade do mercado de quadrinhos e dos prazos, temos que ter um objetivo geral antes de começarmos a trabalhar, para descobrirmos quanto vai custar a impressão e coisas do tipo e quanto tempo o Sean vai levar para desenhar.

“Quando já está tudo desenhado, deixo o Sean maluco pedindo um monte de pequenos ajustes”

Página de Pulp, HQ de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Você tem planos para outras obras fechadas como Pulp e My Heroes Have Always Been Junkies?

Não tem nada certo neste momento. Estamos fazendo livros com o dobro do tamanho agora, e acabando de terminar o terceiro do que será uma série de cinco em sequência.

Você pode me falar um pouco sobre a sua dinâmica com o Sean Phillips? Vocês são parceiros de longa data, como funciona a relação de vocês? Como um contribui para o trabalho do outro? Que tipo de troca ocorre entre vocês?

Fazemos o mesmo desde o início. Dou a ele uma vaga ideia de como será o livro e envio um roteiro de oito ou doze páginas por vez, ele desenha à medida que eu escrevo e nunca quer saber o que virá a seguir. Trocamos muitos e-mails e às vezes peço a ele para alterar algo que não funcione, mas na maioria das vezes nos entendemos perfeitamente. No final, quando já está tudo desenhado e com letras, eu deixo ele maluco pedindo um monte de pequenos ajustes no diálogo ou na narração, ou partes que quero cortar porque soa redundante.

Acho que as cores do Jacob Philips estão contribuindo imensamente para as suas parcerias com o Sean Phillips. Como é a sua dinâmica de trabalho com ele?

Assim como faço com o pai dele, eu envio ao Jake algumas instruções aqui e ali depois que as páginas chegam, e é isso. De vez em quando dou conselhos sobre carreira ou sobre Hollywood para seus outros quadrinhos. Normalmente apenas digo ao Jake o que gosto no que ele está fazendo. E quando Reckless estava começando, enviei a ele algumas fotos e cenas de filmes para ajudá-lo na paleta de cores de Los Angeles na década de 1980.

“Amo a sensação tátil de livros e quadrinhos, bem como as histórias que eles contam”

Página de Pulp, parceria de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Sobre Criminal, o quanto você já tinha traçado desse universo quando deu início à série lá em 2006? Como se dá essa construção e costura das tramas de Criminal? 

Eu tinha os primeiros três ou quatro livros mais ou menos mapeados e as ligações entre alguns dos personagens. Mas muito disso é apenas instintivo. Eu escrevo todas as histórias que sinto que precisam ser escritas para aquele mundo e não planejo mesmo com antecedência. Por exemplo, enquanto trabalhávamos no ano mais recente de Criminal eu não fazia ideia que ia acabar contando o arco maior de história que tinha em mente desde o começo, Cruel Summer, mas então pareceu certo e fui lá e fiz.

Aliás, vocês têm planos de dar continuidade a Criminal após os eventos de Cruel Summer? Vocês consideram explorar outras tramas com coadjuvantes como fizeram em My Heroes Have Always Been Junkies?

Claro, sempre espero retornar a Criminal para mais histórias.

No ano passado entrevistei um ex-parceiro de trabalho seu, o Jason Lutes, por causa do lançamento da edição brasileira de Berlim. Ele me falou algo que passa para os alunos dele sobre a importância da clareza em uma HQ. Não que elas devam ser desenhados com clareza, mas que as intenções e a forma como você está se expressando devem ser claras. Vejo muita dessa clareza nos seus trabalhos. O que você considera mais importante quando está criando uma história em quadrinhos?

Contar uma boa história, provavelmente. Manter os leitores envolvidos e dar a eles uma história que valha à pena e todo um pacote que valha seu dinheiro. Eu amo a sensação tátil de livros e quadrinhos, bem como as histórias que eles contam. Mas sim, eu, o Jason e todo o nosso grupo de amigos na década de 1990… Tínhamos um grupo semanal que se reunia e conversava sobre quadrinhos e mostrávamos nossos trabalhos uns aos outros, e todos nós estávamos muito interessados em quadrinhos como uma forma de arte a ser explorada. Portanto, não me surpreende que tenhamos várias propostas semelhantes com os nossos trabalhos.

“A Image é como ter a sua própria editora com outra pessoa que investindo todo o dinheiro”

Quadros de Pulp, HQ de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

A Image é uma editora que trabalha com a manutenção dos direitos das obras com seus autores. Como tem sido a sua experiência com eles até aqui?

Excelente. A Image é como ter a sua própria editora com outra pessoa que investindo todo o dinheiro. Consegui um acordo único com eles, que nos permite fazer qualquer coisa que quisermos sem ter que apresentar ideias ou tentar ser comercial e essa foi a melhor coisa que já aconteceu na minha carreira. Liberdade total, propriedade total e controle de todos os aspectos da impressão.

Você falou recentemente sobre sua decepção com a ausência de créditos ao seu nome nas adaptações da Marvel para o cinema com o Soldado Invernal. Esse tipo de crítica e questionamento com as grandes empresas da indústria do entretenimento não é de hoje, mesmo lendas dos quadrinhos como Jack Kirby, Joe Simon e Joe Schuster sofreram com isso. Qual lição você tira dessa sua experiência com os Estúdios Marvel?

Não se trata de falta de crédito, mas de falta de pagamento por esse crédito. Eles percorreram uma longa estrada ao dar mais reconhecimento aos autores dos trabalhos que eles exploram, mas não vai muito além disso. Mas eu sabia que eles eram assim quando trabalhei lá, não é nenhuma novidade. Minha reclamação é mais específica à minha situação pessoal e às coisas que me foram prometidas. Não é surpresa que essas corporações gigantescas não queiram tratar os criadores de maneira justa, essa é a história do mercado editorial e do cinema.

Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

São as tiras de jornal de Peanuts ou os desenhos animados da Marvel dos anos 60. Depois, quando eu tinha uns 3 ou 4 anos, meu pai deu para mim e para o meu irmão uma caixa enorme de quadrinhos que ele ganhou de amigos do escritório. Muitos quadrinhos antigos de várias editoras, Marvel, Archie, EC. Todo o tipo de coisa. Foi assim que vi pela primeira vez o Homem-Aranha.

Página de Pulp, obra de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

No que você está trabalhando no momento?

Estou tentando terminar o roteiro de Destroy All Monsters, o terceiro livro da série de graphic novels Reckless.

Fico curioso: o que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu trabalho é lido e interpretado em uma realidade tão distinta da sua?

Sim, claro. E eu realmente espero que as traduções sejam ótimas.

Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido recentemente?

Claro. Se você conseguir encontrar, o sexto episódio da segunda temporada de Mythic Quest é um dos melhores episódios de série de televisão que já assisti. E recentemente assisti a todos os episódios de Columbo, que é bobo, mas divertido. No momento, estou atualizando os livros do [inspetor] Rebus, do Ian Rankin, eles são sempre viciantes.

A capa de Pulp, obra de Ed Brubaker e Sean Philips (Divulgação)

Entrevistas / HQ

Papo com Jason, autor de A Gangue da Margem Esquerda: “Estamos caminhando para uma catástrofe que mudará tudo. O futuro é muito incerto”

A Gangue da Margem Esquerda é o terceiro álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil. O primeiro trabalho do autor lançado por aqui foi Sshhhh!, coletânea de histórias curtas e mudas que vão do humor ao macabro. Depois saiu Eu Matei Adolf Hitler, sobre um assassino profissional contratado por um cientista para viajar no tempo, matar o líder nazista e impedir o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.

Entrevistei o artista pela primeira vez em 2017, na época do lançamento de Sshhh! por aqui, e, depois, no ano passado, quando Eu Matei Adolf Hitler chegou às livrarias nacionais. Bati agora um novo papo com Jason, dessa vez sobre A Gangue da Margem Esquerda, obra vencedora do Prêmio Eisner de Melhor Título Estrangeiro no ano de 2007. Transformei essa conversa em matéria que você lê por aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista mais recente com o autor norueguês. Ele falou sobre a concepção da trama sobre um roubo envolvendo Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway na Paris dos anos 1920; também tratou de suas técnicas e métodos de trabalho e expôs um pouco de seus temores sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus no mercado de HQs. Saca só:

“Parte de ser quadrinista é que você já é praticante de distanciamento social”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Antes de tudo, como você está? Como você está encarando a pandemia do coronavírus? O contexto de isolamento social afetou de alguma forma sua rotina diária?

Parte de ser quadrinista é que você já é praticante de distanciamento social. Você trabalha sozinho em casa a maior parte do tempo, fazendo uma corrida ou respirando ar fresco de vez em quando. Portanto, não há grandes mudanças. Eu tento trabalhar um pouco todos os dias. Mas, como sempre, o YouTube é o grande inimigo. Você pode perder facilmente algumas horas por lá. E sempre há livros ou quadrinhos para ler.

Como você acha que essa realidade que estamos vivendo vai afetar o seu ambiente profissional? Você tem conversado com outros autores e editores sobre essa situação?

Não, eu não conversei com mais ninguém sobre isso. Mas sou publicado na maior parte das vezes por editoras pequenas, administradas por duas pessoas. E o mercado já é difícil, pelo menos na França, com muitas publicações novas a cada semana. Espero que todos os meus editores ainda estejam por aí e que as lojas de quadrinhos também se saiam bem quando meu próximo livro for publicado na próxima primavera.

“Lembro dos meus 30 e poucos anos como uma época em que me preocupava em ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar aluguel”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Você pode me contar um pouco sobre o ponto de partida de A Gangue da Margem Esquerda? Você lembra de como surgiu a ideia desse livro?

Eu gosto do Hemingway e li muitas biografias sobre ele e sobre a Paris dos anos 1920. Foi um período emocionante, com muitas pessoas interessantes morando lá. Eu senti que era um bom lugar para ambientar uma história. Lembro dos meus 30 e poucos anos como uma época em que me preocupava em ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar aluguel e pensando se tinha feito a escolha errada estudando ilustração na escola de artes e depois tentando ganhar a vida como ilustrador e quadrinista. Eu consigo me relacionar com muitos dos escritores na Paris dos anos 1920 também preocupados com dinheiro. E, por último, assisti ao filme O Grande Golpe, de Stanley Kubrick, que foi a inspiração para contar a história de um assalto fora de ordem cronológica.

Por que utilizar autores e artistas reais? E por que transformá-los em quadrinistas?

Para criar um distanciamento dos artistas, deixando claro que isso é uma fantasia e não fatos biográficos. Usei alguns fatos, mas ao mesmo tempo tive liberdade para inventar uma história. Além disso, achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas.

“Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Eu estava pensando sobre os dramas e dilemas desses artistas e autores na vida real e como eles poderiam ser semelhantes aos de quadrinistas. Você crê em muitas similaridades entre a vida profissional e as dificuldades de um pintor ou escritor e a vida profissional e os dilemas de um quadrinista?

Sim, acho que são praticamentes os mesmos para todos os artistas, sejam escritores, quadrinistas ou artistas plásticos. Na maioria das vezes, não há muito dinheiro envolvido. Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado. Sem grandes apartamentos, sem férias caras, sem carros sofisticados. A menos que você seja daquele sortudo 1% que terá um sucesso ou conseguirá um contrato de cinema e poderá ganhar muito dinheiro. Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar.

O que você vê de mais especial na Paris dos anos 1920? Quais seriam as motivações para todos esses artistas se reunirem nesse mesmo local durante esse mesmo período?

Bem, a cidade era barata. E muitos desses expatriados americanos já haviam estado na Europa durante a guerra, como soldados ou motoristas de ambulância. Paris significava liberdade. Na América havia proibição. E talvez a distância torne as coisas mais claras. Hemingway viveu em Paris, mas escreveu histórias sobre sua infância e juventude nos EUA.

“Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

O quanto você acha que o mundo mudou nesse intervalo de 100 anos entre 1920 e 2020?

Eu não acho que as pessoas mudaram muito. A comunicação mudou. Há a internet e Iphones. Mesmo para mim, crescido nos anos 70, as coisas mudaram. Quando eu criança, na Noruega, havia uma estação de TV e uma estação de rádio. E as mudanças climáticas estão acontecendo agora, sabemos que o ambiente que nós demos como certo agora pode desaparecer, que estamos todos caminhando para uma catástrofe que mudará tudo. O futuro é muito incerto.

Eu gosto muito quando um autor se impõe algumas restrições. Penso nos seus grides fixos, por exemplo. Você gosta desse exercício? Há alguma restrição particular que te interessa mais?

Não vejo o gride como uma restrição. Para mim, ele é apenas esteticamente mais agradável. E assim um painel não recebe mais importância que outro. Cabe ao leitor decidir qual é importante. Então, na maior parte do meu tempo como cartunista, usei grides de 4 painéis, 6 painéis, 8 painéis ou 9 painéis. Houve um período em que fiz muitas histórias silenciosas. Isso foi uma restrição, não usar palavras. Bem, na verdade, eu não gostava de escrever, então ficou mais fácil não usar palavras. E então, em algum momento, esse se tornou o desafio, escrever diálogos. E agora eu gosto de uma combinação. Ter diálogo, mas também ter painéis silenciosos, se isso contar a história de maneira mais eficaz.

“Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Você pode me falar um pouco sobre os seus métodos de trabalho? Você tem alguma rotina em particular? Você está mais habituado a alguma técnica em particular? A Gangue da Margem Esquerda foi todo com tinta e papel, certo?

Sim, é tudo tinta no papel. Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo. Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela. Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir. Às vezes eu tenho pedaços de diálogos. Outras vezes, as imagens aparecem primeiro e eu decido o diálogo enquanto desenho. Às vezes, faço esboços em miniatura, faço a maior parte do trabalho diretamente na página. Atualmente, eu desenho principalmente com um grid de 4 painéis. Não preciso trabalhar cronologicamente, trabalho em sequências e as coloco na ordem correta no final. Isso facilita a edição do livro. Se uma página ou uma sequência não funcionar, eu posso removê-la, sem precisar substituí-la por outra coisa.

Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?


Eu reli alguns quadrinhos que não pegava desde que comprei. Christophe Blain, o cartunista francês, já li muitas coisas dele. Eu pretendo ler alguns dos romances russos que desisti pela metade anteriormente, como O Idiota e Os Irmãos Karamazov. Estou revendo Memórias de Brideshead, a série de TV com Jeremy Irons. Eu revejo O Picolino e os velhos filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers. Columbo é sempre divertida de assistir e muito relaxante. Eu não tenho Netflix nem uso streaming, então tudo isso é DVD. Música, há muito para mencionar. Ouvi alguns CDs de John Renbourn que acabei de ganhar. 

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino
HQ

Especial Vitralizado: Jason fala sobre A Gangue da Margem Esquerda, os autores da Geração Perdida e o impacto da pandemia no mercado de HQs

“Por que a gente faz quadrinho?”, questiona Ezra Pound a Ernest Hemingway durante uma partida de pingue-pongue no reduto boêmio parisiense do Quartier Latin, em algum momento dos anos 1920. A resposta parte do também quadrinista James Joyce: “É porque líamos quadrinhos quando éramos crianças. Se tivéssemos jogado futebol ou subido em árvores, hoje seríamos normais. Teríamos trabalhos de verdade. Seríamos motoristas de ônibus ou carpinteiros e seríamos felizes”.

O autor irlandês encerra com um lamento: “Agora é tarde demais. É a única coisa que sei fazer. Não consigo dirigir um ônibus, nem acertar um prego com um martelo. Mas consigo contar uma história com desenhos e foder minha vista um pouco mais a cada dia. Estamos fodidos”.

Recém-lançado no Brasil pela editora Mino, com tradução de Dandara Palankof, A Gangue da Margem Esquerda apresenta quatro dos maiores nomes da literatura inglesa como autores de histórias em quadrinhos. Não só. Desenhados como animais antropomorfizados, Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway estão insatisfeitos com os rumos de suas carreiras e suas dificuldades financeiras, então arquitetam um assalto à mão armada. 

“Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Terceira obra do quadrinista norueguês Jason publicada no Brasil, a HQ rendeu ao autor o Prêmio Eisner de Melhor Título Estrangeiro no ano de 2007. Seu primeiro trabalho lançado por aqui foi Sshhhh!, coletânea em preto e branco de histórias curtas e mudas que vão do humor ao macabro. Depois saiu Eu Matei Adolf Hitler, sobre um assassino profissional contratado por um cientista para viajar no tempo, matar o líder nazista e impedir o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.

A Gangue da Margem Esquerda segue muito dos padrões dos demais trabalhos de Jason, como o uso de personagens antropomorfizados e a elegância narrativa caracterizada principalmente pelo uso de um gride constante de nove quadros por página. O contraste maior está na trama.

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

“Eu gosto do Hemingway e li muitas biografias sobre ele e sobre a Paris dos anos 1920. Foi um período emocionante, com muitas pessoas interessantes morando lá. Eu senti que era um bom lugar para ambientar uma história”, disse Jason em entrevista por email ao Vitralizado.

Jason consegue se relacionar com muitos desses escritores e artistas que viveram na Paris de 100 anos atrás. Na avaliação dele, na maior parte do tempo, a principal preocupação desses autores era a mesma que ele tinha quando estava em seus 30 e poucos anos, recém-saído da faculdade e tentando viver como quadrinista: ganhar dinheiro para pagar o aluguel. Para Jason, dificuldades financeiras tendem a ser um drama para 99% dos artistas.

“Na maioria das vezes, não há muito dinheiro envolvido. Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado. Sem grandes apartamentos, sem férias caras, sem carros sofisticados. A menos que você seja daquele sortudo 1% que terá um sucesso ou conseguirá um contrato de cinema e poderá ganhar muito dinheiro. Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”.

“Achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

E por que fazer dos quatro protagonistas autores de histórias em quadrinhos?

“Para criar um distanciamento dos artistas, deixando claro que isso é uma fantasia e não fatos biográficos. Usei alguns fatos, mas ao mesmo tempo tive liberdade para inventar uma história. Além disso, achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”.

Fitzgerald é mostrado lamentando a falta de interesse da esposa, Zelda, em suas HQs e Hemingway protagoniza uma cena na qual busca conselhos com a mentora Gertrude Stein – creditada como responsável pela criação do termo Geração Perdida para designar esse grupo de autores expatriados na Paris dos anos 1920.

“Que tipo de lápis está usando?”, questiona Stein, também transformada em quadrinista. Depois ela instrui: “Nunca copie uma foto. Se precisar desenhar um automóvel, saia, ache um e desenhe em seu caderno de rascunhos, certo?”.

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Já a ideia do roubo partiu de uma sessão de O Grande Golpe (1956), terceiro filme de Stanley Kubrick, com o ator Sterling Hayden no papel de um ladrão recém-saído de um período de cinco anos atrás das grades que planeja um último assalto antes de se casar e se aposentar da vida de crimes.

A metade final de A Gangue da Margem Esquerda, focada no crime executado pelo quarteto de quadrinistas, tem influência direta da narrativa fora de ordem cronológica do assalto mostrado no filme de Kubrick. A ação e os desdobramentos do roubo arquitetado por Hemingway com o auxílio de seus três amigos são apresentados sob os pontos de vista de sete personagens.

Em relação à produção do quadrinho, Jason diz ter seguido sua prática habitual de tinta e papel, sem uso de computador.

“Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

“Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo. Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela. Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir. Às vezes eu tenho pedaços de diálogos. Outras vezes, as imagens aparecem primeiro e eu decido o diálogo enquanto desenho. Às vezes, faço esboços em miniatura, faço a maior parte do trabalho diretamente na página”.

Hoje aos 54 anos, Jason reside desde 2007 na cidade francesa de Montpellier. Ele está atualmente confinado em casa, respeitando o isolamento social imposto pelas autoridades locais durante a pandemia do novo coronavírus. Mas ele conta que sua vida como o autor de quadrinhos já impõe certo distanciamento social ao trabalhar em casa na maior parte do tempo.

Ele acredita ainda estar cedo para mensurar o impacto da pandemia no mercado de quadrinhos, mas mostra-se pessimista: “Sou publicado na maior parte das vezes por editoras pequenas, administradas por duas pessoas. E o mercado já é difícil, pelo menos na França, com muitas publicações novas a cada semana. Espero que todos os meus editores ainda estejam por aí e que as lojas de quadrinhos também se saiam bem quando meu novo livro for publicado na próxima primavera”.

A capa de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino
Entrevistas / HQ

Papo com Jillian Tamaki, coautora de Aquele Verão: “A história de amadurecimento é perene em todo tipo de escrita”

Aquele Verão é dos quadrinhos mais premiados e aclamados dos últimos anos e deverá constar em várias listas de melhores HQs publicadas em português em 2019 quando o ano chegar ao fim. Parceria das primas Jillian e Mariko Tamaki, o álbum levou os prêmios Eisner e Ignatz de melhor graphic novel de 2014 e tornou suas autoras duas das artistas mais celebradas e concorridas da indústria norte-americana de HQs.

Eu já havia entrevistado Mariko Tamaki aqui pro blog em 2015, logo após Aquele Verão ser premiado com o Eisner. Agora, aproveitei a chegada da edição nacional da Mino às livrarias nacionais, em tradução de Dandara Palankof, para entrevistar Jillian Tamaki e perguntar um pouco mais sobre a origem, o desenvolvimento e a repercussão da HQ. Transformei esse papo em matéria para o jornal O Globo, disponível para leitura clicando aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista com Jillian, em tradução do tradutor/ pesquisador/ editor/ crítico Érico Assis (valeu, Érico!). Saca só:

“Não teve nenhum acesso de inspiração, a gente só tava se divertindo fazendo gibi e a receptividade foi boa”

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Você poderia contar um pouco sobre o início dos seus trabalhos com a sua prima em Aquele Verão? Como esse projeto teve início?

Nós já tínhamos trabalhado em outra graphic novel, chamada Skim, que saiu de um jeito um pouquinho mais orgânico. Skim era uma história de 24 páginas, a primeira HQ que a Mariko tinha escrito e a primeira HQ narrativa comprida e “básica” que eu já tinha feito. Não sei como aconteceu, mas alguém deu a ideia de ampliar e transformar em graphic novel. A graphic teve uma recepção muito boa, então a gente pensou, tipo, “vamos tentar mais uma”. Montamos uma proposta e acabamos vendendo. Desculpe, a história não tem nada de romântico! Não teve nenhum acesso de inspiração, a gente só tava se divertindo fazendo gibi e a receptividade foi boa.

Eu também gostaria de saber mais sobre a dinâmica do seu trabalho com a Mariko. Como era a interação entre vocês? Vocês trabalharam juntas em todas as etapas da produção da HQ?

Geralmente deixo que ela crie o argumento e escreva. Gosto do desafio de interpretar o roteiro e ela não precisa da minha ajuda na concepção. Na fase de esboço, eu tiro umas coisas, acrescento outras e tento moldar de um jeito que fique fiel à intenção dela, mas que também seja significativo pra mim. Editamos juntas num processo bem rigoroso. É óbvio que precisa de muita confiança dos dois lados.

“Acho que hoje em dia nos interessamos muito por histórias pessoais e por ‘identidade’, principalmente quando vêm de grupos marginalizados”

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Sobre a sua arte: quais técnicas você utiliza? Você tem alguma preferência por tinta ou digital?

Em Aquele Verão foi nanquim tradicional. Óbvio que é escaneado e montado no computador. Eu faço os esboços no digital, geralmente para facilitar, depois eu faço lápis, nanquim e separo numa mesa de luz. Outros álbuns, tipo SuperMutant Magic Academy e Boundless, foram 100% digital. Gosto de algumas coisas de cada método. Eu odeio escanear, odeio muito, então tem essa vantagem quando faço tudo digital.

Aquele Verão não é um trabalho autobiográfico, mas é inspirado em algumas memórias de infância da sua prima. Hoje em dia há muitos quadrinhos autobiográficos e HQs com histórias de amadurecimento. Você vê alguma razão em particular para isso?

Bom, eu nunca escrevi memórias, então talvez não seja a melhor pessoa para se perguntar. Acredito que nenhum livro surge do zero. Ele sempre vai ser moldado pela experiência de vida da pessoa. Quanto à popularidade desse tipo de trabalho… A primeira pessoa, o “eu”, é muito envolvente e direta. Acho que hoje em dia nos interessamos muito por histórias pessoais e por “identidade”, principalmente quando vêm de grupos marginalizados. É uma coisa boa. A história de amadurecimento é perene em todo tipo de escrita. Aliás, acho que nos próximos anos vamos ver cada vez menos histórias assim nos quadrinhos. As editoras estão apostando sério na graphic novel e, embora a predominância seja do young adult, nem tudo vai ser explicitamente história de formação. Se é que isso faz sentido. Pode ser que elas pilotem uma nave, que tenha aventuras no espaço etc.

“Eu entendo que minha função é botar as personagens a ‘atuar’ da melhor maneira possível”

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Você tem em mente alguma obra em particular que tenha influenciado seu trabalho em Aquele Verão?

Quando eu penso nas coisas que foram influência na HQ, eu penso em filmes. Especificamente Conta Comigo. Ou naqueles filmes de terror que a Windy e a Rose assistem no laptop: A Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13 e outros do tipo.

Uma das coisas que mais gosto em Aquele Verão está no realismo das posturas e do diálogos das personagens. Todo mundo foi criança uma vez na vida, mas nem todo mundo consegue lembrar da forma como agia, pensava e falava quando era criança. Você ainda tem muitas memórias de infância frescas na sua cabeça? Se sim, como elas influenciaram o seu trabalho em Aquele Verão?

Acho que há pouco tempo eu cruzei aquele limiar em que as memórias de infância perdem a importância que tinham. Eu tenho uma memória sensorial bem forte, então é fácil pra mim aproveitar muito dessa memória. Mas meus trabalhos mais recentes tratam de uma transição mais explícita pra maturidade – o fim da adolescência, a fase dos vinte anos, até do trinta. Quanto a ter autenticidade na voz, isso é especialidade da Mariko. Eu entendo que minha função é botar as personagens a “atuar” da melhor maneira possível.

“A influência vem de mangás antigos, que às vezes se imprimiam em tinta azul escura ou roxa”

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Eu também gosto muito dos tons azuis do livro. Você pode me contar um pouco sobre a sua escolha por essa paleta? Por que ela?

Eu escolhi em um catálogo Pantone na sede da First Second. A influência vem de mangás antigos, que às vezes se imprimiam em tinta azul escura ou roxa. Tem um pouco de mangá em Aquele Verão, mas, pra ser sincera, foi uma escolha barata, de estilo. Tem um pouquinho de melancolia nessa cor. E me pareceu que ia ser uma coisa singular da HQ – pelo menos na época.

O livro foi um grande sucesso de crítica. Há alguma leitura ou interpretação em particular da obra que tenha chamado sua atenção?

Eu me interessei muito em ouvir interpretações de leitores de várias idades. O público se identifica com personagens que tenham idade parecida. Acho que só adultos conseguem entender todo o escopo da HQ. Putz, hoje eu entendo muito mais sobre coisas tipo aborto do que quando eu trabalhei na HQ.

“Vejo que tem gente reagindo, que é corajosa, que sabe unir as lutas e que consegue vislumbrar outros modos de existir”

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Eu fico curioso para saber sobre a sua leitura do mundo hoje. Vivemos em uma realidade no qual Donald Trump é presidente dos Estados Unidos e o presidente do Brasil é Jair Bolsonaro – uma versão provavelmente mais estúpida, xenófoba, reacionária e pior do que Trump em todos os sentidos. O que você acha que está acontecendo com o mundo? Você é otimista em relação ao nosso futuro?

Crueldade, cobiça e sofrimento sem limites. Dito isso, eu vejo que tem gente reagindo, que é corajosa, que sabe unir as lutas e que consegue vislumbrar outros modos de existir. Me parece uma coisa que não tem antecedentes desde que eu existo, mas admito que às vezes parece que não basta.

“O futuro” significa um monte de coisas. Não existe um ponto final em que toda a injustiça vai ser erradicada pra todo sempre. Acho que é um envolvimento para toda a vida, intenso, que leva em conta as pessoas que não são só você e a sua vida. E sempre foi assim.

O que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado em um país como o Brasil? Você fica curiosa em relação à forma como seu quadrinho será lido e interpretado em uma realidade tão diferente daquela em que você vive?

Sempre fico surpresa quando traduzem meus quadrinhos. O jeito como eu escrevo é descaradamente da perspectiva de uma mulher canadense suburbana e ex-alternativinha. As ambientações costumam ser bem específicas. Ainda assim uma pessoa de outra cultura consegue se ver na história e nos personagens. Uma pessoa do Brasil, da Polônia, da Coreia, consegue se ver nesse verão estranho como se fosse essas duas meninas? Gibi é uma coisa sensacional. Haha.

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?

Pen15. Quero que elas façam seriado ou filme de SuperMutant Magic Academy. Ia ser perfeito.

Você está trabalhando em algum projeto novo atualmente?

Tenho um livro infantil que sai no segundo semestre.

Quadros de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino

Você pode me falar como é seu ambiente de trabalho?

Trabalho no meu apartamento. Tenho uma sala separada, o que é essencial. Não é um estúdio legal de se ver, pra ser sincera. Tem só as coisas do computador, uma mesa com mesa de luz e outra mesa com um scanner. E a caixinha da minha gata.

A última. Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

Minha irmã organizava a coleção dela de Archie pela cor da lombada. Muitos anos antes de isso virar moda. E as coletâneas de Herbie que meus pais tinham e que eu não entendia nada… Ainda não entendo, pra ser sincera…

A capa de Aquele Verão, HQ de Jillian e Mariko Tamaki publicada no Brasil pela editora Mino