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Posts por data agosto 2022

HQ

A produção da capa de Pato Gigante, de Gabriel Dantas, por Douglas Utescher: “Para funcionar bem, teria que ser um bordado de verdade”

Quando entrevistei o quadrinista Gabriel Dantas e escrevi sobre Pato Gigante, chamei atenção para a capa da edição da Ugra Press. Fiquei curioso se a arte era algum filtro de programa de edição de imagem ou um bordado de verdade. Dantas me explicou que a arte é de autoria de Darcy Cantuária, mãe de Daniela Utescher, sócia da Ugra.

“Quando o livro foi fechado, tentei pensar em várias capas, mas não conseguia tirar da cabeça essa ideia de que deveria ser um bordado”, me falou o quadrinista na nossa conversa às vésperas do lançamento da HQ.

Ele depois explicou sua inspiração: “Os jogos da Nintendo, principalmente o Yoshi’s Crafted World. Quando falei que queria algo assim para o Douglas [Utescher, sócio e editor da Ugra], já esperava receber um não pela possível dificuldade em fazer isso acontecer, mas na real ele se animou muito e topou no mesmo segundo”.

Quis saber um pouco mais sobre essa produção meio analógica/meio digital da capa de Pato Gigante e pedi um making of desse trabalho para o pessoal da Ugra. Saca só o que veio:

por Douglas Utescher

“Tudo começou em uma das conversas que eu tive com o Gabriel Dantas, quando estávamos começando a planejar a edição do Pato Gigante. Ele comentou que gostaria que a ilustração da capa tivesse uma textura de bordado e que havia tentado emular este efeito no próprio desenho, mas o resultado não ficou satisfatório. Imediatamente concluímos que o caminho, para a ideia funcionar bem, teria que ser um bordado de verdade. Mas quem poderia fazê-lo? Para nossa sorte, a resposta estava bem perto: Dona Darcy, minha sogra!

Convite feito, convite aceito. Mãos à obra!”

O primeiro passo foi do Gabriel, que criou a ilustração e me mandou por email
“Recebida a ilustração, eu criei no Photoshop uma versão preto e branco dela, apenas com as linhas”
“Esta versão PB foi a referência que utilizei para fazer o traço à caneta no tecido de cânhamo que serviria de base para o bordado. Comprei uma caneta para tecido, mas a primeira tentativa ficou uma porcaria, porque o traço borrou e os detalhes se perderam. Foi meio desanimador”
“Tentei fazer um novo teste, desta vez usando uma caneta comum de desenho, e funcionou direitinho. Opa, agora vai!”
“Passei para o tecido apenas uma parte do desenho e enviei à Darcy para que ela também pudesse testar os pontos do bordado e ver se os detalhes estavam em bom tamanho. Ela fez este teste utilizando as linhas que tinha em casa mesmo, só para vermos se estávamos no caminho certo. E sim, estávamos!”
“Testes feitos, hora de partir para a capa definitiva. A Darcy informou qual era a linha ideal para o trabalho e eu encontrei no site do fabricante um catálogo com todas as cores disponíveis”
“Fiz um print colorido da ilustração do Gabriel e anotei nele quais cores deveriam ser usadas em cada parte”
“Ao todo, foram utilizadas 12 linhas diferentes. Juntamos os carretéis, o tecido desenhado e o print com as anotações e mandamos para a Darcy”
“(aqui, minha sogra contempla o tamanho da enrascada em que a colocamos)”
“O bordado tinha a dimensão de 42 x 21 cm e levou pouco mais de duas semanas para ficar pronto”
“Bordado feito, foi a hora de fotografar, tratar a imagem, aplicar os elementos e voilà, temos uma capa! Foi um processo longo e trabalhoso, mas ficamos muito felizes com o resultado. Esperamos que os leitores também!”
Entrevistas / HQ

Papo com Galvão Bertazzi, autor de Vida Besta: Fim do Mundo: “Gosto dos meus personagens vivendo normalmente em todo esse ambiente incendiário e voraz”

Entrevistei o quadrinista Galvão Bertazzi sobre Vida Besta: Fim do Mundo, coletânea recém-publicada pela editora Mino que reúne a leva mais recente de tiras do autor. Desde 2018 ele incorporou à sua produção o caos e o niilismo do governo Jair Bolsonaro e de uma pandemia que já matou mais de 680 mil brasileiros. Transformei esse papo com o autor em matéria para o jornal Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho a seguir a íntegra da minha conversa com Bertazzi:

“Comecei a sentir prazer em desenhar os personagens e os cenários pegando fogo”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

O que aconteceu em 2018 que te motivou a dar início a esse leva mais recente e apocalíptica da Vida Besta?

Não foi nada racionalmente pensado. Não pensei: ‘agora vou fazer tiras catastróficas’. Acho que foi um caminho natural dos desenhos e das temáticas que já povoavam meu trabalho de tiras.

Mas eu me lembro que certa hora comecei a sentir prazer em desenhar os personagens pegando fogo, os cenários pegando fogo e as ações acontecendo na história como se o desastre fosse a coisa mais natural do mundo. Pode ser que estejamos vivendo assim atualmente, fingindo uma normalidade enquanto a realidade desaba. Como as tiras sempre foram sobre nosso cotidiano, acho que foi natural que enveredasse para um cenário apocalíptico.

As tiras de Fim do Mundo foram publicadas entre 2018 e 2022, do início do governo Bolsonaro aos estágios mais atuais da pandemia. O quanto esse contexto recente da nossa realidade afetou a sua vida?

Eu vivi e senti a tragédia da chegada do atual governo em 2018. Eu vivi e senti a tragédia do início da pandemia em 2020 . Eu vivi e senti o agravante de se estar no Brasil, governado por Bolsonaro com o plus de uma pandemia. Eu desisti de tentar entender e racionalizar o misto de sentimentos, medos, anseios pelos quais fui atropelado nesse período de pré-pandemia, pandemia e pós-pandemia, com a abertura geral de tudo, aglomerações e gente feliz e contente na rua como se não existisse amanhã… 

Minha vida pessoal entrou em colapso e só agora, depois de passada uma gigantesca rebordosa pós-pandêmica estou conseguindo reestruturar um bocado de coisas que se quebraram.

Faz alguns meses que me entreguei às delícias da indústria farmacêutica moderna pra controlar uma ansiedade que saiu completamente do controle e estou adorando! 

Você vê a humanidade realmente caminhando para o fim de sua existência? Você nos vê de verdade mais próximo do fim do mundo?

Não sei se a humanidade vai deixar de existir, não. Seria bom, se acontecesse. Eu tenho tentado pensar num futuro mais brando, onde o atual sistema consumista não se sustente mais, mas sei que isso é utopia juvenil e eu já me enxergo velho e calejado demais pra imaginar um futuro bonito com todos de mãos dadas se respeitando e ajudando mutuamente. 

Mas não duvido da insistência e teimosia da nossa espécie e é capaz que duremos mais uns bocados de séculos, vagando por uma gigantesco pasto ou plantação de soja, carregando respiradores e roupas com fator UV elevado.

“Não tenho mais urgência em publicar diariamente”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

Vermelho, laranja e amarelo sempre estiveram muito presentes em seus trabalhos – e casam muito bem com o tom incendiário e infernal de Fim do Mundo. O que te atrai nessas cores?

Acho que é isso mesmo. Essa idéia de urgência incendiária sempre esteve presente na minha paleta, tanto nas tiras quanto nas ilustrações e pinturas. Eu gosto dessa coisa quente e exagerada e como eu falei ali em cima, gosto de colocar meus personagens vivendo normalmente em todo essa ambiente incendiário e voraz.

Fico com a impressão que seu traço, seus desenhos e seus personagens, estão cada vez mais simples e icônicos. Faz sentido para você? Se sim, como essa simplicidade contribui para a construção das suas tiras?

Acho que isso é relativo. Eu não sei se é uma simplicidade. Creio que é mais uma urgência em resolver a ideia mesmo. Minha noção de tempo está meio bagunçada nesse últimos tempos e tenho até produzido menos tiras do que deveria, justamente por isso. Eu gosto de desenhar, pra mim a tira tem muito mais a ver com o desenho do que com o enredo em si e o meu desenho sempre muda. Se você pegar as primeiras tiras e ir acompanhando até os dias atuais, vai notar que devagarinho os bonecos, os cenários vão se moldando até chegar onde está hoje. Provavelmente daqui uns anos, se o mundo não tiver acabado, eu vou estar desenhando de um jeito completamente diferente. 

A sua rotina de produção de tiras mudou muito ao longo dos anos? Desde o começo da Vida Besta, o que mais mudou na sua rotina? É mais fácil para você produzir hoje uma tira do que nos seus primeiros anos da série?

Mudou demais. Alguns anos atrás eu ainda desenhava diariamente com essa ânsia de desenhar, postar e deixar os seguidores verem quase que em tempo real a tira saindo do forno. 

Minhas tiras sempre foram primeiro pra internet do que pra qualquer veículo impresso. Faz anos que não publico em nenhum jornal ou revista e o feedback na internet sempre foi algo que me abastecia. Isso foi mudando. Eu não me cobro mais em ter essa urgência em publicar diariamente, acho que cansei dessa vida via de mão única das redes sociais e internet. Hoje em dia, eu gosto de sentar com mais calma e resolver uma ou duas tiras sem muita pressa e às vezes nem publicar online. 

E em termos de técnica, mudou muito? Quais materiais você usava quando começou a Vida Besta e quais materiais usa atualmente?

Lá no começo eu desenhava muito com caneta, nanquim e lápis de cor e depois escaneava. Mas isso não durou muito. Eu desenho no tablet, desses de formato antigo de mesa, desde o século passado. As tiras e ilustrações se resolvem muito bem pra mim assim, direto no digital. Consigo simular bem meu traço no papel. Ando ensaiando em voltar um pouco pro papel e lápis de cor, mas tô com preguiça. Mas uma hora vai acontecer.

“A realidade tende ao pessimismo”

Tira de Galvão Bertazzi publicada em Vida Besta: Fim do Mundo, da editora Mino (Divulgação)

A minha leitura de Vida Besta me dá a impressão que você é uma pessoa pessimista. Ou pelo menos alguém que se encontra atualmente pessimista. Você é pessimista?

Cara, não me considero pessimista, apesar de muita gente ao meu redor me achar pessimista. Eu tenho 44 anos agora e já vi muita coisa acontecendo e com tempo você consegue perceber que elas são cíclicas, quase que como um padrão. O mundo é pessimista por si, a realidade tende ao pessimismo e acho que é isso que eu retrato nas tiras. Nada impede que na vida real, coisas boas aconteçam e aí você se surpreende e dá valor nessas pequenas coisas. Mas fiquei aqui pensando enquanto digito essa resposta e olha… Acho que sou sim pessimista. E isso é uma merda.

Fim do Mundo reúne sua fase cobrindo a Laerte na Ilustrada quando ela esteve com Covid. Como foi essa experiência para você?

Ah, foi um misto de emoções. Primeiro porque me coloquei uma responsabilidade gigantesca nas costas pra produzir tiras com uma qualidade alta, mas que nem de perto chegaram perto da genialidade da Laerte e isso me aterrou na labuta da produção diária, num jornal que tem tanto alcance como a Folha. Não escondo de ninguém que gostaria muito de publicar diariamente pra Folha e em outra situação eu teria comemorado. Mas o convite de manter o espaço da Laerte funcionando enquanto ela se recuperava do Covid, me deixou meio confuso. Eu não fiz alarde e procurei fazer o meu trabalho da melhor maneira possível, ansiando loucamente para devolver o posto pra Laerte.

O que vem depois do fim do mundo? Você já nos vê saindo do atual cenário apocalíptico que vivenciamos nos últimos anos? O que você aposta para o nosso futuro?

Eu não aposto em nada porque eu sempre perco. Mas quero muito ver essa era Bolsonaro se acabando e que por mais que demore, quero que o legado desse desgoverno fique apenas como uma memória ruim de uma geração meio burra que não soube cuidar de si mesma e nem pensar nas gerações futuras. Mas eu queria mesmo era que meio kg de café voltasse a custar R$5 reais. Tá foda!

A capa de Vida Besta: Fim do Mundo, obra de Galvão Bertazzi publicada pela Mino (Divulgação)


Entrevistas / HQ

Papo com Powerpaola, autora de Todas as bicicletas que eu tive: “Ao andar de bicicletas me permito conhecer o mundo e me conhecer dentro dele”

Todas as bicicletas que eu tive é o terceiro título solo da quadrinista equatoriana-colombiana Powerpaola lançada no Brasil. Antes foram publicados os excelentes Vírus Tropical (Nemo) e QP (Lote 42). Também editado pela Lote 42, com tradução de Nicolás Llano Linares, o novo álbum da autora está entre as minhas melhores leituras no ano.

Entrevistei a artista e transformei esse papo em matéria exclusiva aqui para o blog. Você lê sobre a trama de Todas as bicicletas que eu tive, a produção da HQ e as reflexões de Powerpaola em torno de quadrinhos e bicicletas clicando aqui. Compartilho a seguir, a íntegra da minha conversa com a autora:

“Bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras”

Você pode falar um pouco sobre o ponto de partida de Todas as bicicletas que eu tive? Houve algum estímulo em particular para você dar início à criação desse livro?

Na minha cabeça existem alguns livros que eu tenho em mente e que quero fazer nesta vida, depois eles acabam virando outra coisa, mas isso não importa. As bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras e principalmente nestes últimos anos da minha vida, por isso era algo que insistia em ser desenhado e escrito. Um dia eu contei à Maitena que estava começando a desenhar uma história em quadrinhos sobre todas as bicicletas que eu havia tido e ela me emprestou um livro da Cecilia Pavón que tinha um conto lindo chamado Todas as bolsas que eu tive e me animou ainda mais a ideia de continuar. Justo naquela época vi que ela estava dando uma oficina de poesia, então entrei em contato e estive na sua oficina durante todo 2020.

Você conta no livro sobre a primeira bicicleta que teve, mas você se lembra do instante em que compreendeu a liberdade que uma bicicleta poderia lhe dar e as novas possibilidades que elas te dariam?

Sim, eu me lembro claramente, tinha 11 anos e vivia em Quito com a minha mãe. Saí para o parque La Carolina com a minha bicicleta e senti que podia trocar de direção e ir ainda mais longe, me perder um pouco pela cidade, fazer o percurso que fazia no ônibus do colégio. Foi maravilhoso experimentar isso. Nunca na minha vida eu tinha ido tão longe sozinha, comprei umas bolachas deliciosas com chips de chocolate na volta e levei para a minha mãe para que não me desse uma bronca por não ter seguido o combinado inicial que era ir até o parque.

Você já viveu em várias cidades e países. A sua relação com bicicletas durante a infância e a circulação permitida por elas influenciaram de alguma forma essa sua vida nômade?

Não sei se foram as bicicletas em si que me influenciaram, mas com certeza foram elas que me permitiram conhecer profundamente as cidades em que vivi. Termino fazendo um desenho com elas nesse labirinto que é a própria vida. 

Mais do que um quadrinho sobre bicicletas, Todas as bicicletas que eu tive me soou mais como uma obra sobre encontros e desencontros proporcionados por movimento/fluxo/circulação. O que bicicletas significam para você?

São o dispositivo que permitem me deslocar em total liberdade, me tornar dona de mim, ir aonde eu quero ir, ir quando eu quero ir, o mais parecido com a felicidade e a independência. 

Tem uma fala no início do livro que você diz: “Quando você desenha e escreve, compreende os eventos que acontecem na vida”. Os seus quadrinhos são relatos muito pessoais em primeira pessoa de várias experiências da sua vida. Qual a importância que desenhar e escrever tem na sua vida? Além do aspecto profissional e financeiro, como fazer quadrinhos contribui para a sua compreensão da sua vida?

O desenho e a escrita têm me ajudado a inventar meu próprio universo, a me relacionar com os demais, a estar imersa no fazer, me apropriar da vida, da minha vida, e é parecido com andar de bicicleta, eu decido aonde eu quero ir, me permito conhecer o mundo e me conhecer dentro dele. 

“Sempre me proponho usar técnicas diferentes em cada livro”

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

Imagino que sejam tempos estranhos para pessoas nômades como você. A pandemia limitou a nossa circulação e há um conservadorismo crescente ao redor do mundo, muito simpático a fronteiras e contrário ao fluxo de pessoas. Como você viveu os últimos anos?

Tem sido os anos mais difíceis da minha vida, mas meus amigues, o desenho e a bicicleta têm me sustentado. Me salvaram.

Eu tenho algumas curiosidades em relação aos aspectos técnicos desse seu novo trabalho. Ele me parece muito mais pensado e elaborado, exigindo mais reflexões, do que que o QP, por exemplo. Você chegou a fechar um roteiro antes de começar a desenhar? Você teve alguma rotina ou método de trabalho em particular para esse livro?

Claro que sim, menos mal! O tempo passa e a prática faz com que a gente melhore (espero).

QP eram quadrinhos que eu fiz enquanto aprendia a fazer quadrinhos (2006-2012). Em geral eu não trabalho com um roteiro prévio, sei que isso seria o correto, mas me entedia profundamente. Eu não faço quadrinhos para sobreviver economicamente, mas sim emocionalmente, e parte de me perder e experimentar com o texto e a imagem tem relação com esse prazer. Este livro foi o que me deu mais trabalho, já que fiz muitas coisas ao mesmo tempo: fiz todos os desenhos do filme Vírus Tropical, um livro chamado Terra Larga com Pablo Besse, onde assinamos como No tan parecidos; e ainda tinha que trabalhar como ilustradora. No meio tive um acidente, padeci uma doença… Então não tive rotina, fora encontrar a maneira de fazer o livro e terminá-lo. Estive em várias oficinas de escrita e no final consegui terminá-lo numa residência em Tigre (cidade da Argentina), fui desenhar e escrever sozinha durante uma semana no meio do Delta sem internet, somente assim consegui chegar ao fim. 

E você pode me falar, por favor, um pouco sobre suas técnicas? Quais materiais você usou? Houve algum elemento novo em relação aos seus trabalhos prévios?

Sempre me proponho usar técnicas diferentes e novas em cada livro, técnicas que tenham relação com a história e a narrativa. Por exemplo, fiz este livro todo com tintas preta, amarela e vermelha, algo completamente novo para mim, queria que fosse como se a bicicleta tivesse pisado uma poça cheia de lama e tivesse desenhado tudo com os pneus. 

Eu fiz Vírus Tropical com rotring, que era algo que vinha usando e podia contar tudo sem medo de errar e precisava algo de consistência e clareza ao contar todas essas histórias. QP eu fiz com técnicas diferentes, como te contei antes, foi minha maneira de aprender a fazer quadrinhos, então testei tudo. Em Todo va a estar bien desenhei com lapiseira 0.3, queria que fossem histórias mais lentas e queria ir devagar, me deter a observar e o leitor também. E em Nos Vamos, foi um diário de viagem e me propus a usar uma cor diferente em cada país que visitava. 

“Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem”

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

Você fez uso de cores em algumas páginas pontuais de  Todas as bicicletas que eu tive, mas trata-se de um livro quase todo em preto e branco – assim como QP. Você pode me falar um pouco, por favor, sobre a sua relação com o preto e branco? Como você acha que o preto e branco contribui para as suas histórias?

QP na verdade tem cores, mas imprimir um livro colorido é muito caro. Fazer uma história requer de muito tempo, reclusão e paixão. Eu adoraria fazer um quadrinho totalmente colorido, mas se em preto e branco eu demoro aproximadamente quatro anos, não consigo imaginar quanto demoraria em fazer colorido. Além do mais, os livros terminam ficando muito caros e eu quero que um adolescente possa comprar. De toda forma, minha grande influência é o comic underground dos anos 90, com muitos detalhes e feitos todos em preto e branco, adoro o que dá para criar com pouco. 

O que mais te interessa hoje em termos de quadrinhos, tanto como autora quanto como leitora?

Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem do comic em todo sentido, gosto das boas histórias e um desenho que também esteja me contando algo mais, que tenha uma linguagem própria e não se pareça aos demais. 

Qual sua memória mais antiga relacionada aos quadrinhos?

Meu pai me passando as tirinhas do jornal em Quito aos domingos de manhã. Especialmente Calvin e Haroldo, Mafalda, Garfield e Periquita.

Você poderia me dizer o que você mais gostou de ler, assistir e ouvir no momento?

De quadrinhos: Mouse in Residence de Anna Haifisch e Inframundo de China Ocho. Vendo: Um concerto de Helado Negro e outro de Das Flüff. Mas especialmente viajar de bicicleta com meu amigo Joris pela Alemanha.

Você está trabalhando atualmente em algum projeto específico?

Sim, sempre estou trabalhando ainda que não esteja trabalhando. Justo estava numa residência de literatura em Berlim (LCB) trabalhando em algo novo, mas ainda está em processo de pesquisa, então prefiro não falar muito disso.

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)
Entrevistas / HQ

Papo com Joe Ollmann, autor de Pai de Mentira: “É melhor não olhar muito atentamente para a vida de seus heróis”

Pai de Mentira é uma das minhas leituras preferidas de 2022 até o momento. A obra recém-publicada em português pela editora Comix Zone, com tradução de Érico Assis, é a primeira do quadrinista Joe Ollmann lançada no Brasil. Entrevistei o autor e transformei esse papo em matéria para o site Revista O Grito! Contei por lá sobre as origens do livro, a trama da obra e a produção da HQ. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho agora a íntegra da minha conversa com o autor. Saca só:

“Tiras de jornal sempre estiveram presentes na minha vida”

Quadros de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Pai de Mentira é uma história em quadrinhos sobre a relação entre um pai e seu filho e também sobre quadrinhos. Você poderia me contar um pouco sobre sua relação com seu pai e sobre a presença dos quadrinhos em sua vida? Qual é a sua lembrança mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

É engraçado, ninguém tinha perguntado sobre mim e meu pai. Nós nos dávamos muito bem. Eu sinto falta daquele cara todos os dias. Então, não há paralelo entre Jimmi Wyatt e o meu pai. Acho que um livro sobre um bom relacionamento entre pai e filho seria chato. Quando meu pai estava doente, eu ia visitá-lo e ele foi um leitor de jornais a vida toda, incluindo os quadrinhos, e como ele tinha opiniões! Ele me fez voltar a ler tiras de jornais, e ele estava sempre certo sobre quais eram os bons.

Minha memória mais antiga dos quadrinhos é de quando eu tinha cerca de nove anos, meu pai e eu estávamos no carro esperando minha mãe e ele me mandou para a loja com um dólar. Comprei dois quadrinhos, um Homem-Aranha e um Capitão América do [Jack] Kirby, o que me deixou maluco. Mas aqueles quadrinhos eram como um relâmpago, eu não entendia nada do que estava acontecendo, mas queria saber tudo. A partir daquele momento, fiquei obcecado, gastei cada centavo que consegui ganhar, emprestar ou roubar em quadrinhos. Eu memorizava quem escrevia, desenhava e letreirava cada edição, as minhas irmãs me interrogavam sobre elas. Eu desperdicei o resto da minha vida em quadrinhos.

Também fico curioso sobre sua relação com tiras de jornais. Você teve alguma rotina específica de leitura de tiras de jornais durante sua infância? Quais foram as suas favoritas? Você ainda as lê?

Tiras de jornal sempre estiveram presentes na minha vida. Minhas favoritas eram Peanuts e Family Circus. Mais tarde, senti vergonha por gostar de Family Circus, mas Peanuts ficou comigo, funciona em tantos níveis que cresce com você, é apenas uma tira engraçada quando você é criança, e quando você é mais velho parece uma tipo de humor mais sofisticado, você entende melhor a compreensão de [Charles M.] Schulz sobre a natureza humana e eu suspeito que quando eu for ainda mais velho e mais sábio vai me parecer um koan zen [narrativa budista com o propósito de levar à iluminação espiritual]. É uma tira muito perfeita. Meu sonho sempre foi ter a série inteira de Peanuts em volumes idênticos e então a Fantagraphics publicou Peanuts Completo. Acho que posso morrer agora. Eu ainda leio tiras de jornal todos os dias. Eles são muitas vezes horríveis, mas ficarei muito triste se desaparecerem.

Como você diz em Pai de Mentira, a mídia impressa está em crise, cada vez menos gente lê jornais e o espaço destinado a tiras é cada vez menor. Como você analisa esse cenário? Tiras de jornais estão fadadas à extinção? A internet é a saída para esse tipo de formato?

Eu acho que é uma forma de arte antiquada, então é subvalorizada. Ironicamente, eles estão tornando os jornais fisicamente menores, o que torna, tanto os jornais quanto os quadrinhos, mais difíceis de ler para o público-alvo, que são os idosos. Quero dizer, os jornais estão lutando para sobreviver. Suspeito que, à medida que os baby boomers se extinguem, provavelmente também chegarão ao fim todos os meios de comunicação impressos. Eu sou mais velho, então não gosto de ler na tela do computador, mas há todo um outro mundo de quadrinhos diários sendo feitos na web, então os quadrinhos diários sobreviverão, apenas de outra forma. É interessante quando a web pega uma obra antiga e faz algo completamente novo com ela, como Olivia James fez com Nancy. Ela está desbravando novos caminhos e mantendo-se fiel ao espírito do original. Isso é raro, na maioria das vezes “atualizam” quadrinhos antigos adicionando elementos modernos, mas os criadores são velhos demais para entender as nuances da sociedade moderna. Seria mais digno permanecer em um passado clichê e antiquado.

“Também é uma carta de amor aos quadrinhos”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Gostaria de saber um pouco sobre o ponto de partida do Pai de Mentira. Você teve algum momento ou incentivo em particular para começar a desenvolver esta série?

Fui co-curador de uma grande exposição de galeria de arte de quadrinhos canadenses em 2019. Começamos a trabalhar nessa mostra quase dois anos antes da abertura, então por muito tempo eu estive completamente imerso em quadrinhos e pesquisas sobre quadrinhos. Eu visitei muitos estúdios de cartunistas, olhando seus originais e falando sobre quadrinhos e eu realmente percebi o quão sortudo eu sou por fazer parte deste mundo. Então eu acho que isso me fez pensar em fazer um livro sobre quadrinhos. Por mais que o livro seja sobre um pai e um filho, também é uma carta de amor aos quadrinhos em geral.

Você poderia me contar sobre sua rotina de criação de Pai de Mentira? Você teve alguma rotina específica ao criá-la?

Minha rotina é sempre a mesma. Foco com tudo na escrita. Eu escrevo e planejo e edito e reescrevo e imagino o que os visuais serão por meses antes de começar a realmente fazer os primeiros rascunhos. Eu sou um cara de texto e planejamento. Penso no que [Alfred] Hitchcock disse sobre seus filmes, sobre a diversão estar na escrita e no storyboard, sendo a filmagem um exercício mais técnico. Eu sinto isso, mas ainda gosto muito desse processo de desenho. Uma vez que começo a desenhar, trabalho todos os dias, de oito a 12 horas por dia. Embora eu tenha ficado um pouco preguiçoso durante os lockdowns da COVID e parasse muito cedo para ler quadrinhos e ouvir discos, o que provavelmente foi mais saudável. Essa merda toda de trabalhar até a morte por quadrinhos é loucura. Fique chapado e ouça discos!

Você poderia me falar um pouco sobre as técnicas e materiais que você usou em Pai de Mentira?

Desenho inteiramente à moda antiga, tinta no papel. Eu uso principalmente bico de pena Hunt 107. Anos atrás tomei uma decisão consciente de que era velho demais para aprender novas tecnologias, então abracei completamente uma abordagem manual para meus livros. Geralmente desenho tudo em meus livros, logotipos, etc., tudo exceto o código de barras. Com este livro sendo o meu primeiro em cores – e como mencionei na introdução, sou daltônico – então usei um sistema simples usando tintas de cores primárias e teoria básica das cores e pintei os livros dessa maneira. Alguém me disse, ‘eu gosto de como você fez as sombras do rosto ficarem verdes’, e eu fiquei tipo, ‘ah, eu fiz isso?’.

Pai de Mentira é tanto sobre história dos quadrinhos quanto a linguagem das HQs. O que mais te interessava em quadrinhos quando você começou a criar Pai de Mentira? Qual é o seu principal interesse em quadrinhos atualmente?

Como sempre, meu principal interesse está em histórias sobre pessoas. Eu gosto de coisas que estão enraizadas na realidade e se são meio tristes, ah cara, isso me deixa feliz. Há exceções para mim, às vezes leio coisas de gênero e gosto, mas sou atraído principalmente por coisas de gênero que estão arraigadas nos personagens. Finalmente comecei a ler Junji Ito durante a pandemia e estou obcecado. Eu amo essas coisas, mas, novamente, são personagens fortes em meio a todo aquele horror. 

“É melhor não olhar muito atentamente para a vida de seus heróis”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Fico curioso sobre suas pesquisas e estudos para criar Pai de Mentira. Você menciona especificamente a biografia de Charles M. Schulz do David Michaelis. Quais dos livros que você leu e usou como referência foram mais importantes para você?

Eu tinha lido o livro de Michaelis assim que ele saiu e o usei algumas vezes como referência enquanto escrevia, mas a maioria das coisas de quadrinhos em Pai de Mentira é apenas meu próprio conhecimento adquirido de uma vida desperdiçada obcecada por quadrinhos e cartunistas. A exceção foi o material de Dennis, O Pimentinha, como mencionei na introdução. Quando decidi incorporar isso na história, li muito, principalmente na internet e artigos de revistas antigas. Li muitos livros sobre o Schulz ao longo dos anos, mas não li profundamente sobre muitos outros cartunistas. Muitas dessas coisas vieram de fofocas de cartunistas que ouvi ao longo dos anos. Descobri que aprendo muito com aquelas longas entrevistas que o Comics Journal faz com quadrinistas. É uma chance real de entrar no processo de pensamento de um artista.

E de todas essas leituras e estudos (e também da experiência de escrever um livro inteiro sobre o tema), você vê algum padrão ou comportamento comum entre autores de quadrinhos em suas vidas pessoais? Quero dizer, eu ouço e leio muito sobre como pode ser solitário trabalhar como autor de quadrinhos e as condições profissionais nem sempre são as melhores… Não parece ser o melhor ambiente para a saúde mental, certo?

Não sei, a maioria dos quadrinistas que conheço não são diferentes dos contadores que conheço. Quando você diz às pessoas que você é um quadrinistas, às vezes há uma expectativa como, ‘ah caramba, esses caras vão ser um motim de risadas!’. Mas muitas vezes nem tanto. É definitivamente uma profissão solitária, não há feedback do público. É por isso que escrevo tantas cartas para quadrinistas, só para dizer que eles fazem um ótimo trabalho. Às vezes, um tapinha nas costas de um camarada é a única recompensa nessa coisa toda. Eu acho que as pessoas mais saudáveis ​​nos quadrinhos são aquelas que reduziram suas expectativas e apenas fazem quadrinhos porque amam fazer quadrinhos, porque financeiramente, pode ser muito sombrio na maior parte do tempo. Os quadrinistas muitas vezes ficam deprimidos com a falta de recepção de seu trabalho e se tornam amargurados. Eu apenas tento fazer meu trabalho e não penso na recepção. Só pode ser ruim para o trabalho se você começar a calcular o que vai chamar mais atenção e o que será melhor para o mercado. Quando você começa a antecipar a recepção do público, o trabalho vai perder.

Pai de Mentira mostra o passado pessoal deste autor famoso extremamente ausente como pai. Jimmi Wyatt é esse personagem repulsivo, mas seus fãs não o veem da mesma maneira. Ler e estudar sobre as origens dos autores de quadrinhos de alguma forma mudou a forma como você os percebe e percebe as obras deles?

Eu definitivamente sou uma daquelas pessoas que têm dificuldade em separar o artista da obra. Às vezes, é melhor não olhar muito profundamente para a vida de seus heróis, eles provavelmente o decepcionarão. Eu não acho que valha a pena tolerar o comportamento de nenhum “gênio”, em nenhuma arte, sabe? Fico chateado de verdade quando penso em Stanley Kubrick levando a pobre Shelley Duvall a quase um colapso mental no set de O Iluminado. Tudo isso para fazer um filme de terror medíocre com alguns cenários realmente memoráveis? Vale a pena? Provavelmente não. Quero dizer, pergunte à Shelley Duvall.

“Não posso acreditar na minha sorte com os quadrinhos”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Pai de Mentira foi bem recebido pela crítica, mas que tipo de retorno você teve de seus leitores? Existe alguma resposta particular à história de Caleb que de alguma forma chamou sua atenção?

Bem, os quadrinistas gostaram muito do livro, o que foi gratificante. Mas tiveram muitas entrevistas e cartas de pessoas discutindo o alcoolismo do Caleb e se relacionando de verdade com isso. Eu mesmo tive alguma experiência com bebida e sobriedade também, então acho que foi um pouco de escrever o que você sabe em um cenário ficcional. Mas fiquei grato que as pessoas acharam que isso foi bem tratado.

O que você pensa quando seu trabalho é publicado em um país como o Brasil? Você tem alguma curiosidade sobre como um livro que você fez será lido e interpretado em um ambiente tão diferente do seu?

Eu fui uma criança criada em uma fazenda. Toda vez que um dos meus livros é publicado em outro país e outro idioma, ou quando sou levado para algum evento de quadrinhos para falar sobre meus quadrinhos, sou como um caipira que acabou de cair de um trator. Não posso acreditar na minha sorte com os quadrinhos. Então, estou sempre animado em ser publicado em um novo país e em outro idioma. O mais interessante para mim na tradução é a arte de transferir piadas para algo que faça sentido em outra língua e cultura, dentro de outro contexto moral, com outra formação cultural. Fico sempre admirado com a arte de um bom tradutor. O Érico [Assis], que fez a tradução, me escreveu com perguntas e o nível de cuidado e detalhes que ele colocou foi surpreendente. Eu não leio português, mas tenho certeza que será uma ótima tradução!

Você poderia recomendar algo que você tenha lido/assistido/ouvido recentemente?

Acabei de reler toda a série Crickets, do Sammy Harkham, e precisei escrever uma carta para ele tarde da noite, fiquei muito impactado com tudo. Ele está fazendo coisas incríveis nessa série. Stone Fruit, de Lee Lai; Nod Away, de Josh Cotter; The Shiatsung Project, de Brigitte Archembault; e Keeping Two, de Jordan Crane, são coisas incríveis que li ultimamente. Tudo o que ouço hoje em dia é R&B dos anos 1970. Roberta Flack, Donnie Hathaway, Marvin Gaye, Isley Brothers, meu Deus, tão bom.

Você está trabalhando em algum novo projeto em particular no momento?

Contra todo o bom senso, estou trabalhando em uma coletânea de quadrinhos curtos. É sempre impopular, mas é o que eu tenho vontade de fazer, então estou seguindo meu próprio conselho e não pensando no mercado, risos. Mas estou me mantendo animado para descer as escadas e ir trabalhar nisso diariamente. 

A capa de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)


HQ / Matérias

Galvão Bertazzi fala sobre incêndios, catástrofes e Vida Besta: Fim do Mundo

Desde 1998 o quadrinista Galvão Bertazzi retrata na série Vida Besta a banalidade da vida cotidiana e a falta de um sentido maior para a existência. Nos últimos anos ele incorporou à sua produção o caos e niilismo do governo Jair Bolsonaro e de uma pandemia que já matou mais de 680 mil brasileiros. O álbum Vida Besta: Vida do Mundo reúne as tiras produzidas pelo autor de 2018 para cá, seu periodo mais apocalíptico.

Conversei com o autor sobre a coletânea publicada pela editora Mino e transformei esse papo em texto para a Folha de S.Paulo. Você lê o meu texto clicando aqui.

HQ / Matérias

Powerpaola fala sobre Todas as bicicletas que eu tive: “Bicicletas permitem me deslocar em total liberdade, me tornar dona de mim”

A quadrinista equatoriana-colombiana Powerpaola vê paralelos entre andar de bicicleta e criar uma história em quadrinhos. Ela diz que as HQs a permitem inventar seu próprio universo, se relacionar com o mundo, estar imersa em suas práticas e se apropriar da própria vida. Da mesma forma, pedalando ela vai aonde quer, conhece o mundo e se conhece dentro dele.

Recém-lançado pela editora Lote 42, com tradução de Nicolás Llano Linares, Todas as bicicletas que eu tive une as duas paixões de Powerpaola. Ela narra em quadrinhos, como diz o título, a relação dela com todas as bicicletas que passaram por sua vida.

“As bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras e principalmente nestes últimos anos da minha vida, por isso era algo que insistia em ser desenhado e escrito”, conta a autora sobre as origens de seu mais novo título.

O projeto começou a tomar forma quando Powerpaola contou para a colega de profissão argentina Maitena sobre seus planos para uma HQ sobre suas bicicletas. Como resposta, foi informada de um conto da escritora argentina Cecilia Pavón chamado Todas as Bolsas que eu Tive. Estimulada pela coincidência, ela participou de uma oficina de poesia de Pavón ao longo de 2020.

Todas as bicicletas que eu tive foi produzido aos trancos e barrancos. Ela diz se entendiar com roteiros e lembra que quadrinhos não são sua principal fonte de renda – apesar de fazê-los “para sobreviver emocionalmente”. Então, em meio a vários outros projetos e alguns problemas de saúde, acabou se tornando sua obra mais trabalhosa.

“Não tive rotina, fora encontrar a maneira de fazer o livro e terminá-lo”, lembra a autora. “Estive em várias oficinas de escrita e no final consegui terminá-lo numa residência em Tigre [cidade argentina]. Fui desenhar e escrever sozinha durante uma semana no meio do Delta [encontro dos rios Tigre e Luján] sem internet, somente assim consegui chegar ao fim”.

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

O resultado final é um livro de 112 páginas que costura as memórias de Powerpaola sobre suas bicicletas, suas moradias e seus relacionamentos. Nômade, ela lembra de pessoas com quem conviveu e se relacionou e de bicicletas usadas por ela em passagens por países como Equador, Argentina, El Salvador, Colômbia e França. Uma ausência de endereço fixo, aliás, muito impactada por sua vida em duas rodas.

“Com certeza foram elas [bicicletas] que me permitiram conhecer profundamente as cidades em que vivi. Termino fazendo um desenho com elas nesse labirinto que é a própria vida”.

Powerpaola conta no livro, por exemplo, a origem de sua primeira bicicleta, que ganhou da mãe em um Natal, quando tinha 11 anos. O presente foi usado para impressionar um grupo de garotos que frequentava um parque de Quito.

Ela lembra da experiência: “Saí para o parque La Carolina com a minha bicicleta e senti que podia trocar de direção e ir ainda mais longe, me perder um pouco pela cidade, fazer o percurso que fazia no ônibus do colégio. Foi maravilhoso experimentar isso. Nunca na minha vida eu tinha ido tão longe sozinha. Comprei umas bolachas deliciosas com chips de chocolate na volta e levei para a minha mãe para que não me desse uma bronca por não ter seguido o combinado inicial, que era ir até o parque”.

São narradas histórias de bicicletas que ela herdou ou ganhou e outras que a acompanharam em inícios, ápices e términos de diferentes relacionamentos. Ela apresenta tramas que refletem o próprio significado das bicicletas em sua vida: “São os dispositivos que permitem me deslocar em total liberdade, me tornar dona de mim, ir aonde eu quero ir, ir quando eu quero ir, o mais parecido com a felicidade e a independência”.

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)

E a autora retratou essas memórias e sentimentos em torno de bicicletas em preto e branco, com usos pontuais de amarelo e vermelho.

“Sempre me proponho usar técnicas diferentes e novas em cada livro, técnicas que tenham relação com a história e a narrativa”, explica a artista. “Fiz este livro todo com tintas preta, amarela e vermelha, algo completamente novo para mim. Queria que fosse como se a bicicleta tivesse pisado uma poça cheia de lama e tivesse desenhado tudo com os pneus”.

Ela diz que até gostaria de fazer uma HQ toda colorida, mas que não consegue imaginar quanto tempo levaria finalizando um projeto do tipo. Sua preferência por publicações mais baratas também pesam (“Quero que um adolescente possa comprar”). Ela ainda atribui o visual da obra à sua influência das HQs underground norte-americanas dos anos 1990.

A obra de Powerpaola dialoga, por exemplo, com os trabalhos da canadense Julie Doucet – publicada pela primeira vez na América do Sul em 2022, pela editora Veneta, com Meu Diário de Nova York – um título também extremamente pessoal e em primeira pessoa, assim como os trabalhos prévios da autora publicados em português, Vírus Tropical (Nemo) e QP (Lote 42). Todas as bicicletas, no entanto, tem ares mais poéticos.

É uma abordagem que também ecoa os atuais interesses da autora como leitora de HQs: “Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem do comic em todo sentido. Gosto das boas histórias e um desenho que também esteja me contando algo mais, que tenha uma linguagem própria e não se pareça aos demais”.

Página de Todas as biciletas que eu tive, obra de Powerpaola publicada pela Lote 42 (Divulgação)